versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.36 no.1 São Paulo jan./mar. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20140001
Juventude, da qual tudo é perdoado, nada perdoa; idade, que perdoa tudo, de nada é perdoada.
George Bernard Shaw
A proporção de idosos na população em geral é cada vez maior em todo o mundo, com crescimento mais rápido em países de rendas baixa e média.1 Essa mudança demográfica deve ser comemorada, porque representa a consequência do desenvolvimento socioeconômico e uma melhor expectativa de vida. No entanto, o envelhecimento da população também tem implicações importantes para a sociedade em diversas áreas, incluindo os sistemas de saúde, mercados de trabalho, políticas públicas, programas sociais e dinâmicas familiares.2 Uma resposta bem sucedida ao envelhecimento da população vai exigir aproveitar as oportunidades que esta transição oferece, assim como efetivamente enfrentar seus desafios.
A doença renal crônica (DRC) é um importante problema de saúde pública que se caracteriza por maus resultados de saúde e elevados gastos com saúde. A DRC é um grande multiplicador de risco em pacientes com diabetes, hipertensão, doença cardíaca e acidente vascular cerebral - que são as principais causas de morte e incapacidade em pessoas mais idosas.3 Uma vez que a prevalência da doença renal crônica é maior em pessoas mais velhas; o impacto do envelhecimento da população na saúde dependerá, em parte, de como a comunidade renal responde.
O dia 13 de março de 2014 vai marcar a comemoração do Dia Mundial do Rim9 (DMR), um evento anual patrocinado conjuntamente pela Sociedade Internacional de Nefrologia e a Federação Internacional de Fundações do Rim. Desde a sua criação em 2006, o DMR tornou-se o esforço mais bem sucedido para sensibilizar legisladores e o público em geral sobre a importância da doença renal. O tema do DMR para 2014 é "DRC na terceira idade". Este artigo analisa as principais relações entre função renal, idade, saúde e doença - e discute as implicações do envelhecimento da população na atenção a pessoas com DRC.
Os principais motores do envelhecimento da população são o desenvolvimento socioeconômico e aumento da prosperidade - que resultam em menores taxas de mortalidade perinatal, de lactentes e crianças; menor risco de morte no início da idade adulta, devido a acidentes e condições de vida inseguras; e melhor sobrevida das pessoas de meia-idade e mais velhas, devido ao controle de doenças crônicas. O resultante aumento na expectativa de vida (em conjunto com as menores taxas de natalidade, que normalmente acompanham o desenvolvimento socioeconômico) significa que as pessoas mais velhas são responsáveis por uma proporção maior da população geral.1 A extensão das alterações resultantes nas características da população pode ser surpreendente, especialmente para países em desenvolvimento (Figura 1).
Figura 1 Alteração na distribuição etária da população em geral na china, 1990-2050. U.S Census Bureau, International Data Base.
Em contraste com a situação até duas gerações atrás, as pessoas podem esperar viver por muitos anos após a idade convencional da aposentadoria. Por exemplo, os homens e mulheres do Reino Unido com 65 anos em 2030 podem esperar viver até 88 anos a 91 anos, respectivamente.4 A expectativa de vida prevista para as crianças de hoje é controversa, mas especialistas estimam que 50% das crianças britânicas nascidas em 2007 viverão até pelo menos os 103 anos.4 Embora seja claro que as pessoas estão vivendo mais, ainda não se sabe quanto do aumento da expectativa de vida vai se traduzir em anos de boa saúde. Estas alterações demográficas têm potenciais implicações dramáticas para doenças como a DRC, para os quais a prevalência aumenta com a idade.
Sabe-se há décadas que a taxa de filtração glomerular estimada (TFGe) declina em paralelo à idade.5 A prevalência de DRC entre as mulheres na população chinesa geral aumentou de 7,4% entre aquelas com idades entre 18-39 anos para 18,0% e 24,2% entre aquelas com idade entre 60-69 e 70 anos respectivamente.6 Aumentos relativos na prevalência de DRC com a idade são igualmente relevantes para as populações nos EUA, Canadá e Europa,7-9 embora existam diferenças entre países na prevalência absoluta.
Em idades mais avançadas, um aumento da proporção de casos prevalentes com DRC tem apenas baixa taxa de filtração glomerular (em comparação com albuminúria isoladamente, ou de ambas: baixa TFGe e albuminúria).10 Embora isto possa sugerir que espera-se que muitos idosos com DRC possam ter taxas mais baixas de perda da função renal, os dados disponíveis são inconclusivos - e o conhecimento atual não permite aos médicos distinguir de forma confiável entre aqueles cuja DRC vai progredir e aqueles em quem isso não acontecerá.
Quanto a outros grupos etários, a incidência de insuficiência renal dependente de diálise tem aumentado de forma constante entre os idosos ao longo das últimas décadas: nos EUA, foi relatado um aumento em idade-ajustada de 57% no número de octogenários e nonagenários entre 1996 e 2003.11 Apesar deste aumento, os pacientes com idade > 80 anos ainda são menos propensos a iniciar diálise do que aqueles com idade entre 75-79 anos - apesar de um grande estudo recente sugerir que o risco de desenvolver muito baixa taxa de filtração glomerular (< 15 ml/min/1,73 m2) é semelhante entre adultos jovens e mais velhos.12 Não se sabe ainda se esta discrepância se deve a diferenças etárias na verdadeira taxa de perda de função renal progressiva, o risco de morte por causas concorrentes, opiniões dos pacientes sobre a diálise, ou prática médica.12,13 Independentemente da explicação, o envelhecimento da população irá provavelmente conduzir a um aumento contínuo no número de pessoas idosas com doença renal crônica grave.
Assim como os mais jovens, os idosos com doença renal crônica avançada possuem maior risco de morte, insuficiência renal, infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral em comparação com pessoas semelhantes que tenham TFGe normal ou discretamente reduzida.14,15 Embora a morte seja de longe o mais comum desses resultados adversos, isso não significa que os pacientes mais velhos com DRC clinicamente relevante não possam se beneficiar de oportuno encaminhamento ao especialista.
Com tratamento adequado, os pacientes com DRC avançada (independentemente da idade), podem se beneficiar da perda mais lenta da função renal (potencialmente prevenindo a insuficiência renal); melhor controle das consequências metabólicas, tais como acidose, anemia e hiperfosfatemia; menor risco de eventos cardiovasculares; e (para aqueles interessados em substituição renal) uma escolha mais bem informada a cerca da modalidade de substituição renal, incluindo a instalação oportuna de acesso vascular.16 O envelhecimento da população provavelmente vai levar a um aumento contínuo do número de pessoas mais velhas que possam necessitar desse encaminhamento, coisa que deve ser considerada nas avaliações da capacidade futura dos profissionais em nefrologia.
Nos países desenvolvidos, a estratégia de tratamento padrão para idosos com insuficiência renal parece ter mudado de conservadora para início de diálise.17 Em média, a expectativa de vida após o início da diálise é relativamente curta para os pacientes mais velhos: a sobrevida mediana entre os pacientes em diálise nos EUA com idades compreendidas entre 80-84 anos é de 16 meses - e de apenas 12 meses entre aqueles com idade entre 85-89 anos.11 Ao mesmo tempo, estas estatísticas medianas refletem uma distribuição bimodal de tempo de sobrevida em pacientes idosos em diálise: embora uma grande proporção evolua para óbito dentro de 6 meses após o início da diálise, uma minoria substancial pode viver por anos. Esta heterogeneidade da mortalidade parece ser causada por diferenças em comorbidade basal. Por exemplo, a análise de um pequeno grupo de pessoas no Reino Unido com insuficiência renal avançada sugeriu que o início da diálise não foi associado ao aumento da sobrevida para aqueles com idade > 75 e com duas ou mais comorbidades.18,19 Da mesma forma, a presença de 2 a 3 comorbidades em pacientes em diálise nos EUA com idade > 65 anos foi associada a um aumento substancial de mortalidade em comparação com aqueles em melhor estado de saúde.11 Quando o estado funcional basal é pior, o início da diálise muitas vezes sinaliza o início de novas quedas: entre 3.702 residentes de um lar para idosos que iniciaram diálise, 58% morreram e 87% já haviam sofrido perda adicional de função em 1 ano.20 Embora os dados disponíveis tenham limitações, a qualidade de vida parece razoável entre os pacientes mais velhos em diálise selecionados - e pode manter-se estável, apesar de níveis moderados ou altos de comorbidade.21,22
Estes dados sugerem que a diálise é uma adequada opção de tratamento para pacientes com insuficiência renal mais velhos e bem informados - especialmente para aqueles com boa qualidade de vida basal. Por outro lado, resultados muito pobres foram relatados naqueles com mais comorbidade ou pior estado funcional no início do estudo, que demonstram claramente que a diálise não melhora os desfechos clínicos para todos os idosos com insuficiência renal - e que a boa avaliação clínica e comunicação cuidadosa serão cada vez mais necessárias à medida que a população em geral continua a envelhecer.
É geralmente aceito que a idade avançada por si só não impede o transplante renal em candidatos adequados. No entanto, pacientes idosos com insuficiência renal têm maior probabilidade de terem contraindicações absolutas e relativas ao transplante, e têm menores probabilidades de serem colocados na lista de espera de transplante de rim. Não é surpreendente que as probabilidades de sobrevida de 5 anos de paciente e enxerto sejam mais baixas entre os receptores de transplante renal dos EUA com idade ≥ 65 anos, em comparação com aqueles com idade entre 35-49 anos (pacientes: 67.2% vs. 89.6%; enxerto: 60.9% versus 75,4%, respectivamente).23 Além disso, as pessoas mais velhas, que são potenciais receptores de transplantes renais, enfrentam várias desvantagens potenciais em comparação com suas contrapartidas mais jovens (Quadro 1).
Quadro 1 Necessidades não satisfeitas por transplante renal em pacientes idosos com DRC
• | Falta de órgãos |
• | Escassez de doadores vivos |
• | Políticas de alocação de órgãos que adequadamenteconsideram a probabilidade de benefício a partir do transplante, assim como a idade cronológica do indivíduo. |
• | Garantir encaminhamento adequado de receptores mais velhos viáveis para avaliação para transplante. |
• | Questões éticas associadas à oferta de rim a um paciente idoso ao invés de um paciente mais jovem. |
• | Excelente esquema de imunossupressão |
Adaptado a partir da referência bibliográfica 29.
No entanto, o transplante parece reduzir a mortalidade entre os pacientes de todas as idades. Por exemplo, entre aqueles com idade de 74 anos, receber um transplante de doador falecido foi associado a um risco relativo de mortalidade de 0,67 (95% intervalo de confiança 0,53, 0,86) em relação ao restante em diálise.23 O uso de doadores falecidos com critérios expandidos,24,25 assim como o uso mais liberal de doadores mais velhos26 também parece reduzir a mortalidade entre os idosos com insuficiência renal, em comparação com pacientes semelhantes que permanecem na lista de espera para transplante (Quadro 2). Estas duas últimas estratégias são especialmente atraentes para uso em países em desenvolvimento, onde o crescimento da prevalência de pessoas mais velhas tem sido mais pronunciado. No entanto, uma vez que própria cirurgia de transplante aumenta temporariamente o risco de morte, os benefícios no tocante à mortalidade associados ao transplante renal (independentemente do tipo de doador) são restritos a pessoas com expectativa de vida basal razoável e sem aumento significativo do risco peroperatório.27
Quadro 2 Satisfazendo a crescente demanda por transplante renal em pacientes idosos com DRC
• | Transplante preferencial de órgãos de doadores idosos para receptores idosos |
• | Aumentar o número de doadores ao aceitar doadores com critérios estendidos: ≥ 60 anos de idade ou ≥ 50 com qualquer uma das seguintes 2 condições: história de hipertensão, creatinina sérica ≥ 1.5 mg/dl ou morte por acidente vascular cerebral. |
• | Transplante de dois rins em condições marginais ao invés de um só |
Adaptado da referência 29.
Embora muito se saiba sobre a doença renal crônica em populações mais velhas, ainda há muito a ser aprendido. Muitos ensaios avaliando tratamentos para a doença renal crônica têm excluído pacientes mais velhos,28-29 - e muitos não fornecem orientações sobre como tratar comorbidades que frequentemente acompanham a DRC, mas podem levar a prioridades terapêuticas concorrentes. É necessário mais informação sobre a forma de identificar com precisão as pessoas que irão progredir para insuficiência renal - e entre estes, o subconjunto que pode esperar expectativa de vida e qualidade de vida razoáveis, se optarem por tratamento por diálise. Estudos futuros deverão testar novas formas de comunicar informações sobre os riscos e benefícios da diálise (em comparação com o tratamento conservador), para facilitar decisões bem informadas por parte do paciente. Acima de tudo, precisamos de mais estudos que demonstrem como otimizar a qualidade de vida e tratar os sintomas de pessoas idosas com doença renal crônica - incluindo aqueles que escolheram o tratamento conservador.
O envelhecimento da população em geral significa que as pessoas idosas agora representam uma proporção muito maior de pacientes com/ou em risco de desenvolver doença renal e insuficiência renal. A grande heterogeneidade clínica desta população indica a necessidade de atenção mais cuidadosa. A idade cronológica por si só não será suficiente como base para decisões clínicas, e se faz necessária uma abordagem mais detalhada - com base nas comorbidades, estado funcional, qualidade de vida e preferências de cada paciente individualmente. Os médicos podem ter a certeza de que diálise e transplante renal podem aumentar a expectativa de vida - e trarão qualidade de vida razoável para determinadas pessoas idosas com insuficiência renal. Talvez o mais importante seja que os médicos, os pacientes e suas famílias possam se sentir melhor ao saber que a avaliação especialista oportuna pode ajudar a melhorar os desfechos e reduzir os sintomas em pessoas idosas com doença renal avançada - tendo selecionado o tratamento conservador ou diálise como o seu plano de tratamento.