versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.41 no.2 São Paulo abr./jun. 2019 Epub 06-Set-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0081
A DRPAR acomete aproximadamente 1:20.000 nascidos vivos1 e, embora menos frequente que a forma dominante, representa uma forma comum de ciliopatia herdada na infância, causada por mutações no gene PKD1.2 Seus efeitos podem abranger vários sistemas, e uma abordagem multidisciplinar é necessária, pois, além do acometimento policístico renal, a presença de fibrose hepática ao nascimento é quase universal, pois uma das proteínas expressas pelo PKD1 é a fibrocistina/poliductina, presente nos túbulos renais (principalmente túbulo coletor e porção espessa da alça de Henle), ductos biliares no fígado e nos ductos pancreáticos.3 Essas alterações biliares também podem determinar dilatação da árvore biliar e surgimento da síndrome de Caroli, entidade que frequentemente acompanha pacientes com fibrose hepática e predispõe a episódios de colangite de repetição por estase biliar.4 Esses episódios, juntamente com a ruptura de varizes esofágicas, são as principais complicações com risco de morte na infância e vida adulta.2
Paciente A.P.A., sexo feminino, 16 anos de idade, estudante, natural e procedente de Jaraguá do Sul, SC, dá entrada no pronto-socorro com quadro de tosse seca e dispneia havia 4 dias, evoluindo com hematêmese e fezes diarreicas e sanguinolentas. Relata histórico de doença renal policística diagnosticada na primeira consulta de puericultura, em acompanhamento com nefrologista pediátrico e já encaminhada para transplante renal por doença renal crônica, também em tratamento de hipertensão arterial sistêmica (HAS) e anemia secundárias ao acometimento renal. Ao exame físico estava hipocorada, lúcida, atenta, contactuante, orientada, com tensão arterial (TA) de 140x70 mmHg, ausculta pulmonar com murmúrio vesicular presente e estertores crepitantes em base direita, ausculta cardíaca com ritmo regular em 2 tempos, sem sopros, taquicárdica (frequência cardíaca de 140 bpm), taquipneica (frequência respiratória [FR] de 20 irpm), abdômen indolor com baço palpável e membros inferiores sem edema. Exames realizados havia três meses mostravam hemoglobina de 8,0 g/dL e creatinina de 2,5 mg/dL (clearence de creatinina estimado pela fórmula de Cockroft-Gault de 32,21 mL/min). Já os exames da admissão mostravam hemoglobina de 5,8 g/dL e hematócrito de 15,9%, 22.500 leucócitos sem desvio à esquerda, 122.000 plaquetas, creatinina de 5,39 mg/dL (clearence de 14,94 mL/min), ureia de 158 mg/dL, proteína C reativa de 81,8 U/L, sódio sérico de 141 mEq/L e potássio sérico de 3,9 mEq/L. Radiografia de tórax com imagem sugestiva de consolidação em lobo superior direito e infiltrado pulmonar em campos médio e inferior esquerdos. Iniciados ceftriaxona, hidratação e infusão de 2 unidades de concentrado de hemácias como condutas iniciais.
Durante o primeiro dia de internação evoluiu com piora do padrão respiratório, piora da taquipneia (FR de 36 irpm), estertores até campo médio bilateral, vomito em borra de café e início de edema de membros inferiores (2+/4+). Encaminhada para a UTI associando-se claritromicina, oseltamivir, pantoprazol e uso de ventilação não invasiva (VNI) ao tratamento. Realizada ecografia point-of-care evidenciando padrão de linhas B em todos os campos pulmonares bilateralmente, sem derrame pleural, veia cava inferior dilatada e fixa, sem variação à ventilação. No ecocardiograma, ventrículo esquerdo no eixo paraesternal curto com boa contratilidade e ausência de derrame pericárdico significativo, à avaliação subjetiva.
Permaneceu em UTI por 8 dias, evoluindo com episódios de melena e hematêmese. Foi realizada esofagogastroduodenoscopia com ligadura elástica de 3 varizes esofagianas, sendo posteriormente realizado em enfermaria novo procedimento com escleroterapia de mais 3 cordões varicosos de médio calibre. Outros exames de imagem, como uma ecografia de abdômen total, mostraram sinais de hepatopatia crônica, importante esplenomegalia homogênea e sistema porta sem evidências de trombose, apenas leves alterações nas velocidades de fluxo. Também foi realizada uma angiorressonância nuclear magnética (angioRNM) venosa de abdômen superior, que mostrou shunt venoso esplenorrenal à esquerda, veia renal esquerda ectasiada de forma importante, drenando para a veia cava inferior e determinando ectasia desta acima de sua junção com a veia renal esquerda, e ascite moderada observada nas regiões peri-hepática, periesplênica, nas goteiras parietocólicas e interalças intestinais (Figura 1). Não apresentou disfunção hepática laboratorial significativa, exceto nos primeiros dias na UTI, quando evoluiu com hipoalbuminemia e plaquetopenia, necessitando reposição plaquetária. Todos os demais exames de função hepática se mantiveram dentro da normalidade.
Figura 1 AngioRNM de abdômen superior mostrando sinais de hepatopatia crônica, rins policísticos bilateralmente e a presença de shunt entre a veia renal esquerda e vaso colateral proveniente da veia esplênica (*).
Na enfermaria, prosseguiu-se investigação laboratorial da hepatopatia crônica com todos os exames normais ou negativos, monitorização da função renal com estabilização da creatinina próximo a 2,5 mg/dL, proteinúria de 24 horas de 130 mg e diurese normal, sem necessidade de terapia de substituição renal. Por fim, realizada biópsia hepática guiada por ecografia, foram diagnosticadas fibrose hepática difusa e dilatação cística dos ductos biliares (Figura 2), caracterizando cirrose hepática (Figura 3). A paciente recebeu alta hospitalar assintomática, sem novos episódios de sangramento, ascite ou edema de membros inferiores, controlando TA com inibidor da enzima conversora de angiotensina (IECA), diurético poupador de potássio e beta bloqueador não seletivo profilático para varizes esofágicas. Foi encaminhada aos ambulatórios de nefrologia e transplante para avaliação.
Figura 2 Hematoxilina-eosina (HE) - 100x - Ductos cistificados (setas) revestidos por epitélio de células cuboidais.
A DRPAR é uma forma severa de doença policística renal e uma causa significativa de morbimortalidade em crianças.5 Mais de 300 mutações do gene PKD1 foram identificadas, não existindo correlação entre genótipo e fenótipo,6 propiciando que o teste genético confirmatório para a doença, de alto custo e baixa disponibilidade, seja dispensado em casos típicos.1
Alterações pré-natais na ecografia de 2º trimestre podem sugerir acometimento renal na presença de oligodrâmnio, aumento na ecogenicidade e tamanho dos rins, bem como na presença de macrocistos (>10 mm), que, apesar de não serem específicos para o diagnóstico, alertam para seguimento com ecografia rotineira a cada 2-3 semanas até nascimento. A hipoplasia pulmonar consequente à compressão torácica e ao oligodrâmnio, secundários à nefromegalia, é descrita como a principal causa de morte ao nascimento. Outras complicações incluem quadro de angústia respiratória e pneumotórax.1,2,4,6 Apesar disso, não existe descrição na literatura sobre maior predisposição desses pacientes à infecção pulmonar na infância ou vida adulta.
Quase todos os pacientes com manifestações renais ao nascer ou na infância já apresentam quadro de HAS importante, necessitando controle pressórico com medicamentos e dieta, com tendência de melhora com o avançar da idade.1,6
As alterações hepáticas já se fazem presentes ao nascer com algum grau de fibrose em praticamente todos os casos, acarretando aumento progressivo na pressão portal e surgimento de suas complicações clínicas.3 O uso de beta-bloqueador não seletivo, como o propranolol, com intuito profilático em relação ao sangramento das varizes esofágicas em crianças, não dispõe de evidências na literatura, portanto seu uso geralmente não é indicado para esse fim.2 Alguns trabalhos sugerem a possibilidade de aumento no risco de câncer hepático na DRPAR,7 porém a maioria concorda que a triagem deva ser feita a partir dos 40 anos de idade, e que não é possível estabelecer correlação definitiva apenas com os dados atuais.1-4
Não há descrição na literatura de shunt esplenorrenal espontâneo na DRPAR, apenas em outras situações. Esse shunt é consequência direta do aumento na pressão da veia porta, que acaba gerando fluxo sanguíneo para colaterais com menor resistência pressórica, achado que indica função hepática pior, porém sem influência na mortalidade.8 Vários trabalhos indicam a derivação cirúrgica esplenorrenal para alívio da pressão portal.9,10
Não existe cura clínica para a DRPAR a não ser o transplante duplo rim-fígado (TDRF).1 A discussão é dúbia sobre quando e como intervir nos pacientes que evoluem com doença renal em estágio terminal e cirrose hepática clinicamente manifesta,11 haja vista que pouca ou nenhuma alteração laboratorial hepática é encontrada.2 O TDRF é uma operação rara na população pediátrica - são realizadas anualmente de 10 a 30 operações no mundo.11 Suas principais indicações são a hiperoxalúria primária e a DRPAR,12 sendo que a mortalidade no TDRF é maior quando comparada ao transplante isolado de rim, favorecendo essa opção em primeira escolha. Já na vigência de complicações refratárias secundárias à hipertensão portal e/ou quadros recorrentes de colangite, a principal escolha recai sobre o TDRF.11
A DRPAR tem expressão clínica variável, e as manifestações extrarrenais são muito comuns em pacientes que sobrevivem ao período neonatal. Uma melhor compreensão da formação das estruturas císticas é necessária visando ao desenvolvimento de terapias para diminuição da progressão dessas anomalias. Por fim, a alta morbimortalidade da doença requer mais dados sobre o manejo e seguimento desses pacientes, que sempre requerem acompanhamento multidisciplinar.