versão impressa ISSN 1677-5449
J. vasc. bras. vol.12 no.2 Porto Alegre jun. 2013
http://dx.doi.org/10.1590/S1677-54492013000200013
O comprometimento vascular por um osteocondroma raramente é observado, sendo mais frequentemente relatado em pacientes jovens, em idades compatíveis com o término do crescimento do esqueleto e fechamento das epífises ósseas1-3. No presente relato, descrevemos o caso de um paciente diabético, internado para tratamento de lesão infectada em pé esquerdo, que necessitava de tratamento cirúrgico e antibioticoterapia parenteral, com queixa prévia de edema e parestesia do membro, apresentando, no exame físico, massa palpável de consistência pétrea em oco poplíteo esquerdo e sinais de doença venosa crônica (DVC) no referido membro.
Paciente masculino, 49 anos, diabético não insulinodependente, apresentando lesão plantar necrótica infectada de médio pé esquerdo com extensão para coxim gorduroso de calcâneo, com aproximadamente dez dias de evolução. Foi admitido em hospital público para desbridamento cirúrgico da lesão e antibioticoterapia parenteral. Relatava edema crônico de perna esquerda, com parestesia e dor urente associada em terço inferior de perna e face plantar de pé esquerdo, com agravamento do quadro à deambulação prolongada. No exame físico chamou atenção a diminuição dos pulsos podais em membro inferior esquerdo com a extensão completa do joelho, com presença de dermatite ocre perimaleolar e edema do segmento. Palpava-se ainda massa de consistência pétrea em oco poplíteo esquerdo, abaixo da linha articular, com projeção posteromedial. O índice tornozelo braquial (ITB) do membro inferior direito era de 1.1 e 1.0 do esquerdo, ocorrendo diminuição para 0.8 com a extensão completa do joelho esquerdo.
O paciente apresentava estudo arteriográfico realizado em outra instituição que evidenciava deslocamento posterior de artéria poplítea no segmento infrapatelar por massa de aspecto ósseo sem aparente estenose ou compressão (Figuras 1 e 2). O estudo articular por ressonância magnética evidenciou protrusão óssea do côndilo medial tibial com deslocamento posterior do paquete neurovascular poplíteo (Figura 3). Submetemos então o paciente a estudo de fluxo por duplex scan que evidenciou compressão extrínseca de veia poplítea pela massa óssea com interrupção do fluxo venoso e aumento da velocidade sistólica do fluxo arterial de 71 cm/seg para 192,2 cm/seg no segmento deslocado pelo osteocondroma com a extensão completa do joelho, compatível com um processo estenótico em torno de 70% (Figuras 4 e 5).
A ressecção do osteocondroma foi realizada por abordagem posterior aos vasos poplíteos, com incisão em "Z" e dissecção do paquete vasculonervoso entre as cabeças medial e lateral do músculo gastrocnêmio (Figura 6). Depois da dissecção de tecido periadventicial de aspecto fibroso para liberação da artéria poplítea, procedeu-se a dissecção individualizada dos vasos poplíteos e rebatimento lateral com nervo tibial em conjunto (Figura 7). Na sequência, procedeu-se a incisão do revestimento fibroso do osteocondroma e ressecção completa com auxílio de martelo e cinzel, com descolamento do processo exofítico de sua base em côndilo lateral de tíbia sem maiores dificuldades técnicas (Figuras 8 e 9). O ITB do membro inferior esquerdo era de 1.0 por ocasião da alta hospitalar, que ocorreu no 30° dia de pós-operatório, em decorrência da presença de processo infeccioso em atividade no pé esquerdo, com diminuição significativa do edema e com eliminação completa da queixa de parestesia.
Figura 7 Afastamento lateral dos vasos poplíteos e nervo tibial para exposição do osteocondroma tibial.
Osteocondromas ou exostoses são os tumores ósseos benignos mais comuns, sendo encontrados em torno de 1% a 2% da população. Em cerca de 90% dos casos, se apresentam como lesões únicas. A apresentação de múltiplas lesões está associada com padrão autossômico dominante, sendo demonstrado recentemente o envolvimento dos genes EXT1, EXT2 e EXT3 na sua etiologia1-5. São constituídos de tecido ósseo hiperplásico provocado pelo desenvolvimento anormal cartilaginoso subperiosteal epifisário, que confere uma "capa protetora" à lesão. Com o término do período de crescimento e fechamento epifisário, ocorre a calcificação da capa cartilaginosa, que pode provocar a formação de espículas ósseas. Essas lesões acometem mais frequentemente os ossos longos da extremidade inferior, com predominância da extremidade distal do fêmur1. A tíbia, a fíbula e o úmero aparecem em ordem decrescente como locais de acometimento mais comumente observados2. A complicação vascular dos osteocondromas é uma forma rara de apresentação, sendo a lesão arterial a mais comum destas, com incidência próxima de 91%, sendo o pseudoaneurisma a lesão mais descrita em 64% dos casos3,6. A artéria poplítea é a mais comumente acometida, em decorrência da maior frequência destas lesões no fêmur distal e tíbia proximal e pela íntima relação anatômica da artéria com a estrutura óssea, fixando a artéria, proximalmente, no canal dos adutores pela compressão musculofascial e, distalmente, pela presença de ramos colaterais desta1-4,6,7. O comprometimento do sistema venoso profundo pela exostose ocorre em torno de 5% das complicações, através da obstrução do fluxo venoso3.
A fossa poplítea tem forma de um losango, sendo delimitada superior e medialmente pelo músculo semimembranoso, superolateralmente pelo músculo bíceps femoral, inferomedialmente pela cabeça medial do músculo gastrocnêmio e inferolateralmente pelo músculo plantar e pela cabeça lateral do músculo gastrocnêmio. O nervo tibial é a estrutura mais superficial, lateral e medialmente a ele, situa-se a veia poplítea, e mais profundamente e medialmente encontra-se a artéria poplítea8. A presença de estruturas anômalas dentro da fossa poplítea, em conjunto com as contrações musculares inseridas nas estruturas ósseas que a limitam posteriormente, pode diminuir consideravelmente o espaço destinado às estruturas vasculares e nervosas contidas neste espaço anatômico.
A compressão dos vasos poplíteos pelo efeito de massa do osteocondroma pode provocar deslocamento, estenose, oclusão e trombose tanto arterial quanto venosa2,9,10. Andrikopoulos e cols. afirmam ser a trombose venosa profunda (TVP) séria complicação de um osteocondroma, porém opinam que ele por si só é incapaz de provocar uma trombose, necessitando da compressão auxiliar de um pseudoaneurisma para desenvolver a TVP2. Discordamos dessa avaliação. O grau de compressão evidenciado durante o estudo de fluxo por duplex scan e confirmado no ato cirúrgico durante a dissecção do paquete vasculonervoso não nos permite duvidar da capacidade isolada de um osteocondroma em fossa poplítea provocar a trombose deste segmento.
O aprisionamento da veia poplítea é uma entidade bem reconhecida na literatura, sendo reportada pela primeira vez por Rich e Hughes em 196711. Pode haver coexistência de aprisionamento arterial em 10% a 15% dos pacientes. Pode ser considerada uma importante causa, em pacientes selecionados, com sinais e sintomas significativos de DVC sem outras etiologias apreciáveis. A compressão venosa poplítea de per si pode não ser a única responsável pelo desenvolvimento da IVC. Prova disso é que em torno de 27% da população normal ocorre compressão venosa durante os movimentos de flexão e extensão do pé. No entanto, em pacientes com sinais radiológicos de compressão de veia poplítea e sinais clínicos de DVC, sem outras causas plausíveis para o desenvolvimento dos sintomas, a obstrução ao fluxo venoso deve ser considerada como responsável pelo quadro12.
Na presença de complicação vascular, a queixa de edema tenso de longa duração é a mais comum1. Parestesia, dor tipo queimação e claudicação são outros frequentes componentes do quadro clínico.
O diagnóstico de osteocondroma é feito com uma radiografia simples da região, que evidencia estrutura óssea anômala, sendo útil também para evidenciar fraturas das exostoses quando existentes1-7. O estudo de fluxo dos vasos poplíteos por duplex scan é, a nosso ver, mandatório. Por se tratar de exame com alto grau de sensibilidade e especificidade, barato e não invasivo, deve ser realizado sempre na suspeita de complicações vasculares. Pode evidenciar a presença de pseudoaneurismas, tromboses arteriais e venosas e tem a vantagem de avaliar em tempo real as alterações de fluxo nos vasos poplíteos com as manobras de extensão e flexão forçadas do joelho e plantar1-4,13. A ressonância magnética pode fornecer importantes informações acerca de anomalias musculares e compressão extrínseca, podendo ainda identificar um espessamento da cápsula cartilaginosa, com potencial degeneração sarcomatosa e malignização da lesão, que ocorre em 0,6% a 2,8% dos casos4,5.
A indicação de intervenção cirúrgica está clara na presença de comprometimento vascular, sendo, a nosso ver, obrigatória a excisão do osteocondroma e restauro do fluxo. Do ponto de vista ortopédico, limitação da amplitude de movimento articular, fratura, proximidade com estrutura vascular, complicações nervosas são razões adicionais para o tratamento cirúrgico. Se não houver complicações mencionadas anteriormente, não há razão para ressecção profilática, especialmente em idade pós-puberal, quando haverá parada de crescimento ósseo2.
Em revisão de literatura, encontramos apenas 9 casos de compressão isolada de veia poplítea relatados, sendo que, em 3 pacientes, houve desenvolvimento de TVP1,14,15 e 30 casos de isquemia relatados por compressão extrínseca de artéria poplítea por um osteocondroma5,16.