versão impressa ISSN 1413-8123
Ciênc. saúde coletiva vol.19 no.2 Rio de Janeiro fev. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014192.09592012
The scope of this article is to analyze the prevalence and factors associated with the development of infectious diseases that affect children in daycare centers, namely respiratory infections, diarrheal disease and parasitic infections. Bibliographic research was conducted in the MEDLINE, LILACS and SciELO databases, and observational studies were included. 129 studies were identified, of which 21 were considered relevant to this study, namely two longitudinal and 19 cross-sectional studies. The systematization of the reviewed studies highlighted: i) the presence of intestinal parasites was the main outcome analyzed, followed by respiratory infections; ii) only one study investigated the occurrence of diarrheal disease; iii) the Giardia lamblia was the most prevalent parasitosis; iv) the variables that were most often associated with the development of intestinal parasitosis were child age, family income and maternal education; v) the attendance at daycare centers was a risk factor for intestinal parasites and respiratory infections. Respiratory and parasitic infections are major problems in institutionalized children in daycare centers. The reduction of such diseases involves a complex web of socio-economic, sanitation and daycare center infrastructure aspects.
Key words: Infection; Children; Daycare centers
A creche vem se tornando uma necessidade da população em consequência das transformações socioeconômicas ocorridas nas últimas décadas, caracterizada por maior inserção da mulher no mercado de trabalho e maior demanda por instituições de assistência integral à criança1. Os pré-escolares constituem uma parcela da população biologicamente vulnerável à aquisição de doenças, devido, sobretudo, a imaturidade do sistema imune e ao rápido crescimento2. Estudos demonstram que crianças que frequentam creches adoecem mais que as cuidadas exclusivamente em casa, sendo as doenças infecciosas as mais prevalentes3.
Estima-se que 55,3% das crianças no Brasil apresentam infecção por enteroparasitas. A enteroparasitose na infância assume grande relevância não só pela morbidade, mas também pela associação frequente com diarreia crônica e desnutrição, fatores que podem ocasionar déficit físico e cognitivo, e até mesmo óbito4. Alguns estudos têm apresentado dados que evidenciam a importância de enteroparasitoses em ambientes de maior coletividade, principalmente creches5 , 6.
Nos países em desenvolvimento, a maioria dos casos de diarreia aguda e das mortes causadas por diarreia ocorre em crianças menores de cinco anos. A doença é um problema importante nas creches, onde aparece na forma de casos esporádicos ou surtos7. Em crianças que frequentam creches a prevalência deste problema é de 60 a 250% maior8.
As doenças respiratórias agudas constituem outro grupo de doenças de importância na população infantil, descritas como a causa mais frequente de mortalidade infantil nos países em desenvolvimento, atingindo principalmente crianças menores de cinco anos de idade9. Nessas regiões, estima-se que 25% a 33% do total das mortes observadas na população infantil sejam causadas por infecções respiratórias agudas10. Para crianças usuárias de creches, cita-se, por exemplo, que a prevalência de pneumonia pode ser de duas a 12 vezes maior e que o risco de adoecer mais por infecção respiratória aguda pode passar de três para cinco quando a permanência em instituições eleva-se de 15 para 50 horas semanais8.
O aumento dos casos de doenças em crianças institucionalizadas tem sido associado a fatores como a aglomeração e contato muito próximo com outras pessoas, hábitos que facilitam a disseminação de doenças como levar as mãos e objetos à boca, incontinência fecal e falta de higiene das mãos. Considera-se ainda que, as crianças que frequentam creches, em sua maioria, são de famílias com baixas condições socioeconômicas e com pais de baixo nível educacional, condições estas que podem potencializar os riscos do aparecimento de doenças7.
Face ao exposto, o objetivo deste estudo é analisar as prevalências e os fatores associados ao desenvolvimento de doenças infecto-contagiosas que acometem crianças em creches: infecções respiratórias, doença diarreica e infecções por parasitas.
O estudo é uma revisão sistemática de artigos científicos observacionais sobre a presença de doenças infecciosas em crianças pré-escolares brasileiras assistidas em creches.
Para a identificação dos artigos, realizou-se, em março de 2010, uma busca nas bases de dados Medline (National Library of Medicine, Estados Unidos), Lilacs (Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde) e SciELO (Scientific Electronic Library Online) de todos os estudos publicados no período de 1990 a 2009.
A busca bibliográfica foi realizada por dois revisores (DFP e DQ) usando a estratégia de busca: (infecção OR infecções respiratórias OR parasitoses OR diarreia) AND creches, e seus correspondentes em inglês: (infection OR respiratory tract infections OR parasitic diseases OR diarrhea) AND child day care centers. No caso das buscas no Medline, o descritor Brazil também foi usado.
Para o cômputo do total de estudos identificados, foi verificada a duplicação ou triplicação dos mesmos entre as bases de dados, sendo cada artigo contabilizado somente uma vez. A partir dos estudos identificados, foram selecionados aqueles que parecessem preencher os critérios para sua inclusão, considerando a leitura dos títulos e resumos pelos revisores.
Todos os artigos selecionados foram avaliados pelos revisores considerando a leitura e análise criteriosa do texto completo. Após esta ação, os artigos foram classificados como excluídos e incluídos considerando os critérios estabelecidos para esses fins (Quadro 1).
Quadro 1 Critérios para a inclusão e exclusão dos artigos na revisão sistemática sobre a presença de doenças infecciosas (infecções respiratórias, doença diarreica, infecções por parasitas) em crianças pré-escolares brasileiras assistidas em creches.
A coleta de dados foi feita sobre os estudos incluídos. As informações selecionadas para a caracterização dos estudos foram: autor e ano de publicação, tipo de estudo, participantes/população, faixa etária, tamanho da amostra e perdas, doenças avaliadas, métodos de diagnóstico das doenças utilizados, variáveis controladas, principais resultados (prevalências e associações estatísticas) e escore de qualidade.
A qualidade dos estudos foi avaliada através de checklist (lista de pontos), preparado pelos pesquisadores. O checklist consistiu de uma lista adaptada dos critérios de Downs e Black11. excluindo os itens relacionados apenas a estudos de intervenção. Para a construção do instrumento, foi considerada a Declaração Strobe12 para a comunicação de estudos observacionais e as seguintes diretrizes para a elaboração de listas de avaliação da qualidade de estudos observacionais13: i) o instrumento deve ser de fácil utilização, ter um número pequeno de itens e ser do tipo checklist (evitar a medição em forma de escala); ii) o instrumento não deve deixar de considerar como foi realizada a seleção dos participantes, a medição das variáveis e o controle das variáveis de confusão, assim como o potencial do estudo/desenho para o controle dos vieses associados aos aspectos anteriores.
Sendo assim, analisaram-se os artigos com base na: (1) qualidade da descrição dos objetivos; (2) qualidade da descrição do desfecho de estudo; (3) qualidade da caracterização da amostra (descrição dos participantes e dos critérios de elegibilidade); (4) qualidade da descrição e discussão dos principais fatores de confusão; (5) qualidade da descrição das perdas de participantes; (6) qualidade da descrição dos principais resultados do estudo; (7) comprovação da representatividade da amostra estudada em relação à população de estudo; (8) descrição do cálculo da amostra e do processo de amostragem; (9) acurácia dos instrumentos utilizados para medir o desfecho; (10) apropriação dos testes estatísticos às características das variáveis; (11) avaliação correta dos grupos de comparação (iguais períodos de seguimento para os estudos de coorte, iguais períodos de tempo entre a exposição e o desfecho para os estudos caso controle); (12) adequação dos grupos de comparação (recrutados da mesma população e no mesmo período de tempo); (13) adequação do ajuste para os principais fatores de confusão ou apropriação dos testes estatísticos utilizados para seu controle. O escore de qualidade de cada artigo correspondeu à soma do total de itens avaliados como positivos.
Inicialmente foram identificados 129 artigos e após análise dos títulos e resumos foram selecionados 72 que aparentemente preenchiam os critérios de inclusão. Com a leitura dos artigos na sua íntegra, foram classificados como incluídos um total de 214 , 14 - 33 que adequadamente preenchiam todos os critérios de inclusão. O fluxo do número de estudos incluídos encontra-se mostrado na Tabela 1.
Tabela 1 Estudos excluídos e incluídos na revisão sistemática sobre a presença de doenças infecciosas (infecções respiratórias, doença diarreica, infecções por parasitas) em crianças pré-escolares brasileiras assistidas em creches.
Etapas/critérios de exclusão e inclusão | Nº de |
---|---|
artigos | |
Artigos identificados | |
MEDLINE | 53 |
LILACS | 93 |
SCIELO | 20 |
Estudos em duplicata | 29 |
Estudos em triplicata | 08 |
Total de estudos identificados | 129 |
Estudos excluídos | |
estudos de intervenção* | 02 |
artigos de revisão* | 13 |
livros ou tese* | 16 |
estudos realizados fora do Brasil* | 16 |
crianças não assistidas em creches* | 11 |
amostra não representativa e/ou não | 11 |
selecionada aleatoriamente** | |
detecção de agentes infecciosos | 05 |
como objetivo principal** | |
infecções que acometem múltiplos | 04 |
órgãos** | |
doenças infecciosas da pele** | 02 |
outras doenças infecciosas** | 15 |
outros tópicos de estudo** | 13 |
Total de estudos excluídos | 108 |
Estudos selecionados (leitura de títulos e | 71 |
resumos) | |
Estudos incluídos (leitura na íntegra dos | 21 |
artigos) | |
Total de estudos incluídos | 21 |
* Leitura de títulos e resumos
** Leitura na íntegra dos artigos.
A Tabela 2 mostra a distribuição dos estudos quanto aos parâmetros de caracterização adotados. Dos 21 artigos incluídos4 , 14 - 33, 19 apresentam desenho epidemiológico do tipo transversal4 , 14 - 17 , 19 - 25 , 27 - 33 e os outros dois são estudos de coorte18 , 26.
Tabela 2 Características dos artigos sobre a presença de doenças infecciosas (infecções respiratórias, doença diarreica, infecções por parasitas) em crianças pré-escolares brasileiras assistidas em creches.
Autor, ano | Tipo de | Participantes/População | Faixa etária | Tamanho da | |
---|---|---|---|---|---|
estudo | amostra (perdas) | ||||
Biscegli et al., 200914 | Transversal | Catanduva (SP) | 7-78 meses | 133 (3) | |
Barçante et al., | Transversal | Vespasiano (MG) | 1-5 anos | 449 (176) | |
20084 | |||||
Menezes et al., | Transversal | Belo Horizonte (MG) - creches | 3-6 anos | 472 | |
200815 | municipais | ||||
Carvalho et al., | Transversal | Botucatu (SP) - creches | 0-6 anos | 279 | |
200616 | municipais | ||||
Chaves et al., 200617 | Transversal | Uruguaiana (RS) - creches | 5 meses- | Corte 1: 672 | |
municipais | 6 anos e 11 | Corte 2: 616 | |||
meses | |||||
Gonçalves et al., | Coorte | São Paulo (SP) | 4 meses- | 224 | |
200618 | retrospectiva | 4 anos | |||
Mascarini; | Transversal | Botucatu (SP) - creches | 0-83 meses | Corte 1: 379 | |
Donalísio, 200619 | municipais | Corte 2: 397 | |||
Mascarini; | Transversal | Botucatu (SP) - creches | 0-83 meses | Corte 1: 379 | |
Donalísio, 200620 | municipais | Corte 2: 397 | |||
Pupulin et al., 200421 | Transversal | Maringá (PR) - creches | 0-5 anos | Creche 1: 80 (17) | |
municipais | Creche 2:29 (11) | ||||
Creche 3: 29 (31) | |||||
Gurgel et al., 200522 | Transversal | Aracaju (SE) - crianças assistidas | 1-5 anos | 520 (52) | |
em creches vs. crianças não | |||||
assistidas | |||||
Veríssimo, 200523 | Transversal | São Paulo (SP) - creches | 42-69 meses | Creches | |
municipais vs. creches | municipais: 260 | ||||
universitárias | (67) | ||||
Creches | |||||
universitárias: 229 | |||||
(126) | |||||
Uchoa et al., 200124 | Transversal | Niterói (RJ) - creches municipais | 1-6 anos | Crianças ≤6 anos: | |
7-11 anos | 186 | ||||
Crianças 7– 11 | |||||
anos: 28 | |||||
Rocha et al., 200025 | Transversal | Bambuí (MG) - crianças | 0-6 anos | Crianças ≤6 anos: | |
assistidas em creches vs. escolares | 7-14 anos | 255 | |||
de 1° e 2° grau | > 14 anos | Crianças 7– 14 | |||
anos: 2190 | |||||
Crianças > 14 | |||||
anos: 366 (90) | |||||
Barros et al., 199926 | Coorte | Campinas (SP)- creches | 3-35 meses | 1110 (443) | |
municipais | |||||
Coelho et al., 199927 | Transversal | Sorocaba (SP) | Pré-escolares | 1050 | |
Franco et al., 199628 | Transversal | Campinas (SP) - creches | 2-60 meses | 310 | |
municipais | |||||
Fuchs et al., 199629 | Transversal | Porto Alegre (RS) - crianças | 12-71 meses | 106 | |
assistidas em creche vs. crianças | |||||
não assistidas | |||||
Guimarães e Sogayar, | Transversal | Botucatu (SP) | 0-6 anos | 147 | |
199530 | |||||
Birar et al., 199431 | Transversal | São Paulo (SP) - crianças | 3 meses | 133 | |
assistidas em creches municipais | 2 anos e 11 | 3076 | |||
meses | |||||
Torres et al., 199232 | Transversal | São Paulo (SP)- creches | 0-6 anos | ||
municipais | |||||
Torres et al., 199133 | Transversal | São Paulo (SP) - creches | 0-6 anos | 3076 | |
municipais | |||||
NR: Não relatado. - : Não realizado
A distribuição geográfica dos locais onde foram realizados os estudos mostra maior concentração na região Sudeste (n = 17 estudos)4 , 14 - 16 , 18 - 20 , 23 - 28 , 30 - 33. Os demais estudos foram realizados na região Sul (n = 3 estudos)17 , 21 , 29 e na região Nordeste (n = 1 estudo)22. Considerando o tipo de creche, 13 estudos ocorreram em creches municipais15 - 17 , 19 - 21 , 23 , 24 , 26 , 28 , 31 - 33. Em oito estudos4 , 14 , 18 , 22 , 25 , 27 , 29 , 30não foi informado o tipo de instituição e um estudo23 envolveu tanto creches municipais como universitárias.
No que concerne ao tamanho amostral dos estudos, observa- se variação de 133 a 500 crianças (n = 12 estudos)4 , 14 - 16 , 18 , 21 , 23 , 24 , 28 - 31, de 501 a 1000 (n = 1 estudo)22 e acima de 1000 (n = 8 estudos)17 , 19 , 20 , 25 - 27 , 32 , 33. Os estudos de Chaves et al.17, Mascarini e Donalisio19e Mascarini e Donalisio20utilizaram dois cortes em momentos diferentes e o estudo de Barros et al.26analisaram uma amostra de 1110 crianças contando com 443 perdas.
A faixa etária dos estudos apresentou um comportamento heterogêneo. Este fato poderia estar associado à capacidade da creche ou com a disponibilidade da creche de estrutura para berçário. Considerando a idade em anos completos, observa-se que a maioria dos estudos (n = 19) considerou crianças de até seis anos de idade4 , 14 - 17 , 26 - 33 e que somente dois estudos não incluíram crianças menores de dois anos15 , 23. Destaca-se, também, que dois estudos24 , 25 compreenderam tanto observações em crianças maiores de seis anos quanto em crianças menores de seis anos.
Em relação às doenças avaliadas, aponta-se que a presença de enteroparasitoses foi o principal desfecho analisado (n = 17 estudos)4 , 14 - 22 , 24 , 25 , 27 , 28 , 30 , 32 , 33. Enfatiza-se que a ocorrência de enteroparasitose foi estudada de maneira diferente, alguns trabalhos realizaram a especificação do tipo de parasita4 , 15 , 16 , 18 , 20 , 21 , 24 , 25 , 27 , 30, outros não realizaram tal especificação14 , 17 , 19, e outro realizou as análises para grupos de parasitas22. A presença de apenas um ou dois parasitas foi avaliada em três trabalhos28 , 32 , 33. Quatro estudos investigaram a ocorrência de infecções respiratórias23 , 26 , 29 , 31 e um único estudo investigou a ocorrência de doença diarreica26.
A coleta de dados envolveu a utilização de exames laboratoriais em 17 estudos4 , 14 - 22 , 24 , 25 , 27 , 28 , 30 , 32 , 33 e observações de sinais e sintomas clínicos em dois estudos26 , 29. Veríssimo23 e Bitar et al.31, nos seus estudos, realizaram diagnóstico das doenças de interesse através de fontes secundárias (revisão de documentos). Os exames parasitológicos foram os únicos exames laboratoriais utilizados. Considerando o método adotado para a realização de tais exames, ocorreu uma diversidade e superposição em relação às técnicas usadas. A técnica de sedimentação espontânea34 foi a de uso mais frequente, uma vez que foi reportada em 11 estudos14 , 17 - 21 , 24 , 27 , 30 , 32 , 33 dos 21 analisados. O método Faust et al.35 foi o segundo mais usado. Os pesquisadores que fizeram uso desta última técnica18 - 21 , 24 , 30 também consideraram a técnica de sedimentação espontânea34para o diagnóstico das doenças em estudo. Os outros métodos utilizados foram o método Direto36, Rithie37, Moraes38, Blagg et al.39, Henriksen e Pohlenz40, Rugai et al.41, Moura e Oliveira42, Granham43, Katz et al.44, Concentração por centrífugo sedimentação em éter-OS45. A coleta de três amostras de fezes em dias alternados foi realizada em seis4 , 16 , 21 , 24 , 28 , 30 dos 17 estudos que enfocaram as enteroparasitoses (dado não disponível em tabela).
As prevalências das doenças avaliadas foram expressas de diferentes maneiras, considerando-se: i) a totalidade dos casos; ii) a faixa etária; iii) o tipo específico de doença/tipo de parasita; e iv) o atendimento em creche. A prevalência total de enteroparasitose variou entre 15,4%27 a 63,0%22. Considerando os estudos que avaliaram mais de dois parasitas, Giardia lamblia foi o mais prevalente em quatro estudos21 , 24 , 25 , 30, seguido de Giardia duodenalis que foi o mais prevalente em dois estudos16 , 20.
Observa-se (dados não tabulados) que os pesquisadores buscaram discriminar um conjunto amplo de variáveis independentes da presença de infecções por parasitas, infecções respiratórias e doença diarreica, envolvendo:
- características biológicas das crianças: sexo (11 estudos), idade (12 estudos);
- condições nutricionais e de acesso a serviços de saúde das crianças: ingestão de legumes crus (1 estudo), estado nutricional (1 estudo), imunização (2 estudos);
- morbidade das crianças: histórico de doenças (2 estudos), diarreia associada à ocorrência de enteroparasitoses (2 estudos), sazonalidade (2 estudos);
- características socioeconômicas das famílias: renda (4 estudos), escores de bens de consumo (1 estudo), educação materna (5 estudos), tipo de casa (2 estudos), número de crianças dormindo no mesmo cômodo (1 estudo), número de irmãos (2 estudos);
- características higiênico-sanitárias: tratamento de água (2 estudos), presença de animais domésticos (2 estudos), higiene das crianças com o uso de sabão (1 estudo), lavagem das mãos antes das refeições (1 estudo), lavagem das mãos depois da defecação (1 estudo), presença de moscas durante as refeições (1 estudo);
- características das crianças associadas à institucionalização: frequência à creche (2 estudos), tempo de permanência na creche em um dia (1 estudo);
- características relacionadas à estrutura das creches: número de crianças na creche (1 estudo), número de crianças por turma (1 estudo), número de crianças por m2(1 estudo), número de crianças por funcionário (1 estudo), tamanho da área (1 estudo), ventilação (1 estudo).
A associação estatística entre as variáveis independentes de estudo e os desfechos de interesse não foi realizada em alguns estudos. Análises multivariadas de associação estatística, com o controle adequado das possíveis variáveis de confundimento, foram conduzidas somente em três estudos, um analisando enteroparasitoses19, um analisando doença diarreica26 e dois analisando infecções respiratórias26 , 29.
Considerando os estudos sobre enteroparasitoses, cinco deles15 , 17 , 21 , 24 , 27apresentaram somente resultados sobre a prevalência. Destaca-se que apenas um estudo14 avaliou a associação entre estado nutricional e enteroparasitoses.
As variáveis que mais vezes mostraram-se associadas ao desenvolvimento de enteroparasitoses, mantendo importância quando controlado o confundimento, foram a idade da criança16 , 19 , 20 , 28 , 32 , 33, a renda familiar e a escolaridade materna16 , 19 , 20.
A maior prevalência de enteroparasitose em faixas etárias maiores foi encontrada no estudo de Mascarini e Donalisio19 , ao avaliar a presença global de enteroparasitose, e no estudo de Carvalho et al.16 para Helmintos, Ascaris lumbricoides, Trichuris trichiura e Escherichia coli. Entretanto, apresentam-se resultados controversos na análise das categorias que apresentam maior risco, dificultado pela variedade encontrada na categorização da faixa etária. Os resultados para as variáveis renda familiar e escolaridade materna convergem ao destacar os estratos de renda inferiores e a menor escolaridade materna como importantes fatores de risco em relação à prevalência de enteroparasitoses16 , 19 , 20.
Para o caso das infecções respiratórias, estar frequentando creche, maior tempo de permanência na creche, menor tamanho da sala de aula e aglomeração, são importantes fatores de risco, segundo resultados de Barros et al.26 e de Fuchs et al.29. Ainda, observou-se uma maior ocorrência de infecções respiratórias nas crianças menores de três anos (nestes casos, as doenças avaliadas foram a pneumonia e a gripe23.
Ressalta-se que os estudos com comparação de grupos22 , 25 , 29(crianças atendidas em creches versus crianças não atendidas em creches22 , 29 e crianças atendidas em creches versus crianças escolares25) apontaram o atendimento em creche como fator de risco para no mínimo um dos desfechos em estudo. As prevalências de enteroparasitoses e de infecções respiratórias foram maiores no grupo de crianças assistidas em creches quando comparadas às crianças não assistidas22 , 29.
O escore metodológico foi, em média, de 8,86 pontos (DP = 1,46 pontos), sendo 11 pontos o valor máximo atingido e sete o mínimo. Com o escore de 11 pontos destacaram-se três artigos, sendo os artigos que realizaram análises multivariadas19 , 26 , 29. As principais limitações dos estudos, segundo os critérios de Downs e Black11, foram a não descrição das razões das perdas de participantes e a não apresentação e controle dos principais fatores de confusão.
Diante da importância das doenças infecciosas como causa de morbidade e mortalidade na infância, do uso crescente de creches pela população infantil e do paradigma sobre o maior risco de crianças que frequentam creches contraírem doenças infecto-parasitárias, o presente trabalho centrou atenção nos estudos sobre infecções respiratórias, doença diarreica e infecções por parasitas na população pré-escolar brasileira assistida em creches.
Apesar de sua importância, a doença diarreica foi analisada em um único estudo nesta revisão. Segundo Maranhão46, considerando a diarreia como o aumento do número de evacuações ao dia, associado ou não à diminuição da consistência das fezes, a elaboração de uma classificação da doença é dificultada devido à grande variabilidade na frequência das evacuações por idade e entre indivíduos e às percepções pessoais e culturais que podem influir sobre o que se considera consistência normal das fezes. Cogita-se, assim, que a definição controversa de diarreia e a impossibilidade do acompanhamento diário de crianças institucionalizadas pelas suas mães podem dificultar a obtenção de informações sobre episódios diarreicos nas creches.
As melhorias nas condições de saneamento ambiental têm contribuído para diminuição dos casos de diarreia nas crianças brasileiras. Esses avanços também levaram a uma mudança nos modos predominantes de transmissão, da transmissão fecal-oral por bactérias disseminadas como a Salmonella spp e Shigella spp, para a transmissão pessoa a pessoa por vírus disseminados (rotavírus, adenovírus, norovírus)47. Entretanto, as creches apresentam características que facilitam tanto o contato entérico quanto o contato pessoa-pessoa, particularmente a aglomeração e os hábitos higiênicos inadequados10.
Os estudos sobre infecções respiratórias mostraram-se bastante análogos quanto à magnitude do problema e seus determinantes. Nas crianças assistidas em creches, as altas frequências de infecções respiratórias estiveram associadas ao tempo que as crianças permanecem nesse ambiente e a características estruturais da creche/aglomeração. Esses fatores sintetizam a influência da creche como ambiente responsável por episódios de infecções respiratórias das vias aéreas. É comprovada a maior probabilidade de disseminação de doenças comunicáveis pessoa-pessoa em ambientes de maior aglomeração48. Em linhas gerais, considera-se que o agrupamento de crianças numa situação de diária e prolongada coexistência (10-12 horas), recebendo atendimento de forma coletiva, em locais fechados e sem condições de higiene adequada pode facilitar a disseminação de doenças, conferindo à creche epidemiologia característica na transmissão de infecções10 , 19. Cabe ressaltar que alguns agentes de infecções respiratórias também podem ser transmitidos através da via fecal-oral, mostrando a importância da higiene pessoal na prevenção dessas doenças49.
A ampla variabilidade nas prevalências de enteroparasitoses observadas no Brasil, como as mostradas nesta revisão, foi explicada por Fonseca et al.50 pelas condições socioeconômicas e o grau de desenvolvimento dos sistemas de saúde de cada região. Tanto indicadores de morbidade de base não hospitalar quanto de base hospitalar revelam as desigualdades inter-regionais no contexto das doenças infecciosas e parasitárias, com cifras mais elevadas nas regiões Norte e Nordeste51. Na presente revisão, a concentração de estudos no Sudeste do país inviabiliza a análise de tais diferenças. Entretanto, os resultados encontrados na cidade de Aracajú22 são indicativos da situação na região Nordeste do país, valorizando a importância de maior quantidade de estudos pautados nas desigualdades socioespaciais do país. A concentração da produção científica em temas de saúde na região Sudeste do Brasil tem sido apontada por outros pesquisadores52 , 53.
Apesar da variabilidade encontrada nas prevalências de enteroparasitoses, considerando a menor prevalência total de 15,4% e a proporção maior de 10% para no mínimo um parasito, nos estudos que avaliaram parasitos específicos, as cifras podem ser consideradas significativas. Dados nacionais também são indicativos da relevância que ainda apresentam as doenças infecciosas e parasitárias como problema de saúde pública no Brasil. À exceção das doenças imunopreveníveis, as demais doenças infecciosas e parasitárias vêm se mantendo no Brasil num patamar quase constante nos últimos anos, representando cerca de 10% das causas de internações hospitalares na rede hospitalar pública e contratada pelo SUS anualmente, sendo esses valores mais elevados nas regiões Norte e Nordeste51 , 54. Em estudo recente, realizado na cidade de Manaus, por exemplo, as doenças cardiovasculares, as infecções respiratórias das vias aéreas inferiores e as doenças diarreicas foram responsáveis por cerca de 3/4 das internações55.
A sobreposição de etapas (doenças infecto-parasitárias e crônico-degenerativas com grande importância absoluta e relativa) vem sendo destacada como uma das características distintivas do processo de transição epidemiológica no Brasil. Nesse processo, observa-se uma tendência de redução proporcional do peso das doenças infecciosas e parasitárias enquanto causas de morte, porém não verificado quando se analisam os dados de morbidade. A emergência e re-emergência de doenças infecciosas e parasitárias no Brasil explica-se por suas peculiaridades geográficas, climáticas e ecológicas, assim como pelas características de sua formação social, política, econômica e cultural54.
Entre as enteroparasitoses, a infecção por G. lamblia foi a mais prevalente em maior quantidade de estudos. A contaminação por G.lambliaé mais comum por ingestão de cistos presentes na água, que podem também ser carreados por moscas caseiras. A transmissão de pessoa a pessoa também é observada, principalmente em ambientes com pouca higiene56. A giardíase é mais prevalente em crianças, especialmente aquelas institucionalizadas em creches, nas quais a falta de hábitos de higiene e as precárias condições sanitárias facilitam o contato íntimo com as formas infectantes57. Tais fatores, aliados à baixa imunidade contra o parasita, podem resultar em altos níveis de infecção nessa população15. A G. lamblia é uma das principais causas de diarreia em crianças, podendo também contribuir para ocorrência de carências nutricionais56. Outros parasitas, como a Endolimax nana e a E. coli, possuem o mesmo mecanismo de transmissão da G. lamblia. Estas parasitoses apresentam importante implicação na epidemiologia das doenças parasitárias, haja vista que a sua presença pode servir como indicador das condições sociossanitárias e da contaminação fecal a que os indivíduos estão expostos58.
A maior prevalência de enteroparasitoses nas crianças de maior idade pode estar relacionada ao processo de crescimento e de desenvolvimento infantil, que permite a criança uma maior mobilidade e interação com o meio ambiente19. Nesse contexto, destaca-se o maior contato da criança com o solo, fator este que predispõe a aquisição de enteroparasitoses57.
A disparidade socioeconômica nas prevalências de enteroparasitoses foi marcada pela significativa associação com a renda familiar e a escolaridade materna. Os baixos níveis de renda dificultam o acesso da população a bens e serviços essenciais à manutenção da saúde, tais como alimentação, moradia e saneamento básico, criando um ambiente favorável para o surgimento de carências nutricionais e à aquisição de infecções e/ou infestações59. Por sua vez, o nível educacional constitui um aspecto importante no combate de doenças infecto-contagiosas, na medida em que possibilita uma melhor compreensão destas, das formas de transmissão e de sua prevenção58 , 60.
Não existe um método capaz de diagnosticar, ao mesmo tempo, todas as formas parasitárias. Alguns métodos são mais gerais, permitindo o diagnóstico de vários parasitas intestinais, outros são métodos específicos, indicados para um parasita em especial. Devido a este fato estudos sobre prevalência de enteroparasitose priorizam os métodos gerais, possibilitando a comparabilidade de diversos estudos sobre o tema61. O método de sedimentação, o de maior utilização pelos autores da presente revisão, apesar de não possibilitar diagnosticar alguns parasitas, é um dos métodos gerais para o diagnóstico de enteroparasitose e o utilizado na rede pública de saúde62. Outros métodos, dos que possibilitam analisar vários parasitas, como o de centrifugação, também foi de grande utilização. Sendo assim, admite-se a comparabilidade dos resultados sobre os estudos de enteroparasitoses.
Ainda que o controle do confundimento não tenha sido uma prática comum nos estudos analisados, a influência da instrução materna e da renda no desenvolvimento de enteroparasitoses, mostrada nas análises bivariadas em estudos bem detalhados, evidencia sua consistência através do adequado controle de variáveis de confundimento. As maiores prevalências de enteroparasitoses encontradas em crianças assistidas em creches quando comparadas a crianças não assistidas, ao mesmo tempo em que indica o risco que representa o ambiente colocado pelas creches, supõe indiretamente a influência da situação socioeconômica. Fazer constar nos artigos publicados a possibilidade de ocorrência de variáveis de confusão é uma característica metodológica fundamental para o reconhecimento da pertinência dos estudos realizados63, sendo este um item relevante na avaliação da validade interna dos estudos64. Logo, há a necessidade de mais estudos com desenhos capazes de diminuir essas limitações e detectar tais associações.
Apesar de limitações metodológicas em alguns estudos, a atenção a critérios metodológicos rendeu elevada pontuação a outros estudos considerando os critérios de Downs e Black11. Por outro lado, a representatividade dos estudos garante a generalização dos resultados. Assim, os dados desta revisão permitem concluir que as infecções respiratórias e parasitárias constituem problemáticas importantes nas crianças institucionalizadas em creches, sendo a frequência à creche um fator importante no desenvolvimento dessas doenças. Tal fato pode estar relacionado a características biológicas inerentes à criança (idade), assim como a aspectos relacionados à creche (aglomeração e condições higiênicas) e as condições socioeconômicas das famílias (renda familiar e a escolaridade materna) nas quais estas crianças estão inseridas. Nesse contexto, a solução para estes problemas perpassa uma complexa rede de fatores, que incluem melhorias nas condições socioeconômicas, no saneamento básico e na infraestrutura das creches. Ainda, é de se considerar a importância dos programas de educação em saúde, que forneçam aos funcionários das creches e à comunidade os conhecimentos necessários para uma melhor assistência à criança. Tais ações podem contribuir para melhoria da saúde da população infantil, reduzindo os custos do Estado e das famílias com assistência médica, assim como o sofrimento humano relacionado à doença e, eventualmente, a morte.
Evidências mostram uma associação positiva entre a permanência de crianças em creches e seu estado nutricional1. Entretanto, o aumento de episódios de doenças infecto-contagiosas, associado à institucionalização, pode repercutir negativamente no estado nutricional das crianças65. Verifica-se, portanto, posições contraditórias a respeito da influência da frequência à creche sobre o estado nutricional das crianças. Apesar disso, apenas um estudo incluído nesta revisão avaliou a associação entre o estado nutricional e a ocorrência de enteroparasitose.
Segundo Ramos56, os parasitas intestinais podem afetar o equilíbrio nutricional do indivíduo. A espoliação nutricional pode estar relacionada ao fato de o parasita alimentar-se de sangue, líquidos intersticiais e reservas orgânicas do hospedeiro. Em contrapartida, as carências nutricionais na infância podem induzir a déficits de maturação biológica, em especial do sistema imune66, o qual exerce um papel importante na defesa do organismo contra agentes parasitários56. Assim, torna-se evidente a dificuldade inerente à interpretação dos resultados de estudos que envolvam a associação entre parasitoses e estado nutricional, haja vista que estes fatores podem coexistir na população e se influenciarem mutuamente, sendo difícil determinar o que é causa e o que é efeito56 , 67.
O desenvolvimento de estudos que concentrem análises sobre os efeitos prejudiciais dos distúrbios nutricionais e das enteroparasitoses sobre o crescimento infantil são importantes para aperfeiçoar a discussão da bidirecionalidade entre a carga de morbidade e a desnutrição na infância. Estes estudos devem compreender o monitoramento do crescimento, tornando possível apurar/comprovar as duas tendências que devem ser esperadas, a de melhorar o estado nutricional e a de contrair mais doenças infecciosas. Esses resultados poderiam alertar para os benefícios advindos da adoção de medidas preventivas conjuntas.