versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762
Interface (Botucatu) vol.19 no.52 Botucatu jan./mar. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622014.0205
Visibility in the media is a central condition for public awareness of social ills. Despite the increasingly large space dedicated to health in newspapers, the criteria for newsworthiness among health issues conform to journalistic and market logic. It can be understood that while intense coverage tends to exalt certain problems, the omission of others may contribute to political underrating of the latter. This paper aimed to pose the problem of ‘diseases neglected by the media’ i.e. healthcare demands about which little is published, and which are usually related to conditions of poverty and inequality, in order to develop a useful theoretical basis for studying them. For this, the following were proposed: posing the problem of media logic; reflection on the definitions of health needs and demands; analysis of the issue of media (in) visibility; and identification of the conceptual basis that situates ‘diseases neglected by the media’ as a category derived from such reflections.
Key words: Health communication; Mass media; Public health
La visibilidad en los medios se presenta como condición central para el conocimiento público de los males sociales. A pesar de los espacios cada vez más amplios dedicados a la salud en los periódicos, los criterios para ser noticia obedecen a la lógica periodística y de mercado. Se entiende que, mientras la cobertura intensa tendería a exaltar determinados problemas, la omisión de otros podría contribuir para su sub-dimensión política. El objetivo de este artículo es la problematización para el desarrollo de bases teóricas útiles para el estudio de las ‘enfermedades objeto de negligencia en los medios’, constituidas por las demandas en salud sobre las que poco se publica, usualmente relacionadas a las condiciones de pobreza e inequidad. Se propone una problematización de las lógicas de los medios, una reflexión sobre las definiciones de demandas y necesidades de la salud, el análisis de la cuestión de la (in)visibilidad en los medios yse identifican las bases conceptuales que sitúan a las ‘enfermedades objeto de negligencia en los medios’ como categoría derivada de tales reflexiones.
Palabras-clave: Comunicación en salud; Medios de comunicación de masa; Salud pública
Entende-se que, nos dias de hoje, em que a visibilidade se torna condição central para conhecimento público de determinadas mazelas na sociedade, o estudo da exposição midiática e da audiência a determinados temas poderia identificar as condições de desenvolvimento de círculos de atenção social – essenciais à produção e reprodução de sentidos e às ações coletivas. Para tanto, é importante caracterizar escalas de valoração e dinâmicas de reprodução que implicam a magnitude conferida aos temas mais enaltecidos, assim como, no sentido inverso, as condições eventualmente negligenciadas por conta de sua débil visibilidade e sustentabilidade política. Dessa maneira, acredita-se que o espaço destacado para doenças ou condições de menor apelo político-midiático merece ser devidamente identificado, descrito e analisado por metodologias especificamente destacadas para tanto.
Tal discussão se constrói sob as questões que abrangem dois campos já bem definidos – o da Comunicação e o da Saúde –, com suas características específicas, intersecções e tensões de fronteira. Adota-se o conceito de campo desenvolvido pelo sociólogo Pierre Bourdieu1, que o define como parte do espaço social, microcosmo dotado de leis próprias, com autonomias relativas em relação a outros campos. O autor usa a noção de ‘campo de forças’ quando indica a distribuição desigual dos recursos nesses espaços, que se configuram, também, como campos de lutas pela manutenção ou mudança de posições dos agentes que neles atuam.
Sob tais perspectivas, almeja-se problematizar possibilidades de pensar novas lógicas de valoração midiática no que se refere ao setor saúde, considerando que, conforme adverte Bourdieu1, os limites entre os campos são demarcados pelos efeitos que produzem em conjunturas específicas, sendo, portanto, permeáveis a novas disputas e possibilidades valorativas.
Este artigo visa explorar os conceitos de necessidade de saúde versus negligência e visibilidade midiática, além de desenvolver insumos teóricos para a problematização das ‘Doenças Midiaticamente Negligenciadas‘ (DMN). Para apresentar a discussão proposta no presente estudo, o texto está estruturado em quatro segmentos: problematização das lógicas midiáticas e da influência da divulgação sobre saúde nas mídias; reflexão acerca das definições de demandas e necessidades de saúde; análise da questão da (in)visibilidade midiática e, finalmente, identificação e descrição das bases conceituais que situam as DMN como categoria derivada de tais reflexões.
É cada vez mais evidente a influência das mídias e das novas tecnologias de comunicação na sociedade contemporânea, a provê-la de discursos, posicionamentos políticos e factoides. Os meios de comunicação concebem, assim, o concreto de nossa percepção e interpretação do mundo, de maneira a atuar como próteses do senso comum2. Quando se trata do suprimento da necessidade social da informação, a mídia amplia a visibilidade às questões coletivas, ao poder e ao mundo3. Além disso, possui o poder de pautar, ao público, os assuntos de interesse (Teoria do Agendamento), bem como de direcionar quais partes da realidade se tornarão visíveis (conceito de enquadramento)4. Nesse contexto, vale ressaltar que, quanto menor é a experiência direta do indivíduo em relação a um determinado assunto, maior é sua dependência dos meios de comunicação para compreender, contextualizar e posicionar-se perante informações e interpretações referentes a esse tema5, o que implica seu poder de influência política na sociedade.
Existem atributos mais valorizados nos acontecimentos ordinários do dia a dia que os tornam noticiáveis (valores-notícia). Trata-se de critérios de noticiabilidade que, de uma forma geral, dizem respeito à: i) raridade e atualidade da informação; ii) proximidade cultural ou geográfica do fato; iii) significatividade e visibilidade do acontecimento e dos atores envolvidos; iv) possibilidade de entretenimento do público; v) exclusividade da informação, e vi) questões que mobilizam as paixões populares, dramáticas e inusitadas5.
Segundo Türcke6, a notícia corresponde àquilo que merece ser noticiado – a ‘coisa’ pública – o não-negligenciável em nossa sociedade e dia a dia. Entretanto, sabe-se que a mídia se vale da lógica de uma indústria cultural, fomentada pelo interesse do público – não necessariamente o ‘interesse público’. Este, não raro, se detém no contexto de uma sociedade capitalista, no espetáculo como valor em si, que assume centralidade nas definições de prioridades da atenção coletiva. Dessa forma, a cultura das frivolidades, da coisa privada, produz, cada vez mais, uma forma de consumo sumamente valorizada pela indústria, frequentemente descontemplando o que se tem como ‘interesse público’, ou seja, questões ligadas à educação, saúde, política e justiça social.
Campos et al.7 afirmam que a noticiabilidade se ampara (além das especificidades da produção jornalística) nas expectativas sociais pressupostas pela imprensa, que tende a conferir destaque aos fatos valorizados, de alguma maneira, pelo senso comum. Assim sendo, os critérios substantivos de um fato (a importância e o interesse gerados pelo acontecimento) seriam consensuais e determinariam sua seleção pela sociedade antes mesmo que a imprensa o fizesse. Tal ‘respaldo’, conferido para interesses universais humanos, ajudariam a explicar um conservadorismo dos valores-notícia através do tempo e das culturas.
Entretanto, sob o ponto de vista do que aqui se pretende discutir, é fundamental questionar a coerência entre os valores sedimentados (seriam eles realmente consensuais?) em contraste com a relevância de outros temas, talvez mais urgentes. Como exemplo, a visibilidade sobre questões de saúde peculiares a populações em situação de vulnerabilidade poderia, a partir da ciência pública, conferir impulso político que talvez resultasse em benefícios à população implicada, a criar condições para o controle de suas mazelas – diferença entre interesse público e interesse do público, mais uma vez.
De uma maneira geral, a mídia produz reações controversas no campo da saúde. De um lado, concebe uma demanda importante, no que diz respeito ao anseio de ocupação de mais espaços de visibilidade pública. Por outro lado, é analisada como uma antagonista por alguns gestores e pesquisadores que aspiram uma retratação fidedigna de suas percepções e discursos sanitários, negando, muitas vezes, a pertinência e legitimidade das lógicas próprias de noticiabilidade8.
Nesse sentido, pode-se conceber visibilidade midiática como um dispositivo de produção e/ou legitimação de prioridades. Assim sendo, a negligência midiática, no que diz respeito a determinados assuntos de saúde, seria como uma nuance de ‘apagamento’ social, pois o que não existe é produzido como não existente, tornando-se invisível à realidade hegemônica do mundo.
É certo que, apesar dos espaços cada vez mais amplos dedicados à saúde nos jornais diários das grandes cidades, os critérios para noticiabilidade dessas questões obedecem à lógica jornalística e de Mercado, na maioria das vezes descompassadas das demandas de informação dos receptores9 e, sobretudo, daquelas ligadas aos segmentos mais vulneráveis. Deste modo, os critérios de valor-notícia midiático mostram-se, na maioria das vezes, desarticulados das prioridades em saúde – um ‘valor-saúde’ – que apontariam para informações mais úteis à população sob condições insalubres, reversíveis e controláveis.
Para melhor contextualizar a discussão proposta a respeito da relação visibilidade versus negligência midiática em saúde, apresentam-se algumas reflexões referentes à temática.
Há muito, é bem conhecido o grande alcance das mensagens midiáticas em diversos níveis socioeducacionais10 - 12 como importante instrumento de promoção da saúde individual e coletiva. Os meios de comunicação social, juntamente com as novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), conformam a gama de possibilidades de acesso às informações em saúde, aliados às tradicionais campanhas educativas governamentais, às estruturas da esfera assistencial, às escolas e à família13. Além disso, segundo alguns autores14, a incapacidade de grande parte dos técnicos em saúde de se comunicar eficazmente com os sujeitos, torna o estudo da natureza e da função dos meios de comunicação peça central no equacionamento dos problemas de saúde da sociedade.
A influência midiática pode ser notada na procura por serviços de saúde, tanto por atendimentos de emergência quanto no planejamento de intervenções médicas futuras15 , 16. Tal influência também se exerce na estruturação dos sistemas de saúde, nas políticas públicas e no planejamento de recursos17. Ou seja, as decisões políticas em saúde não ocorrem em um vácuo sociopolítico: a mídia desempenha papéis relevantes na visibilização de demandas, os quais geram círculos de atenção social, que, por sua vez, geram investimento em novas iniciativas, provimento de informações para os formuladores de políticas e influenciam a opinião pública nas priorizações em saúde na agenda governamental18.
Como se vê, essa relação mídia e saúde mostra-se como campo multifacetado, que desperta o interesse de pesquisadores de diversos centros de pesquisas no Brasil e no Mundo19 , 20. No entanto, observa-se que o aspecto negativo de tais perspectivas, ou seja, os conteúdos de saúde relevantes, que são sistematicamente descontemplados, raramente são colocados como objetos de estudos.
Tais questões apresentam a necessidade de se obterem mais subsídios para discussão do valor-notícia das matérias ligadas ao campo da saúde (ou sua ausência). Na maioria das vezes, as questões de saúde dizem respeito ao ordinário do dia a dia, às questões altamente relevantes para a saúde dos indivíduos, mas que não representam nenhum ‘furo’ jornalístico. Entretanto, entende-se que a divulgação midiática de questões de saúde, relevantes para um determinado contexto, é importante tanto para atrair engajamentos de novos atores sociais, investimentos em pesquisas e desenvolvimento de novos fármacos, quanto para pautar os assuntos no dia a dia da população de uma forma geral. Sendo assim, dada a natureza de utilização pública e a vocação de ‘informar para modificar’ realidades, a ‘atração’ da mídia deveria também se basear em critérios de interesse público, e não apenas em questões inusitadas, espetaculares ou catastróficas, usualmente as de maior valor-notícia midiático.
Contudo, como definir prioridades em saúde? Sob outras perspectivas, quais atores sociais seriam os ‘legítimos priorizadores’ de problemas/demandas relevantes ao destaque midiático? No contexto de um estado democrático, como e quem contaria com suficiente legitimação política para definir os ‘valores-saúde’ mais adequados ou urgentes para a sociedade? A discussão que se segue busca problematizar tais questionamentos.
A discussão das ‘necessidades de saúde’ de uma população (algumas vezes, descritas como reais necessidades de saúde) perpassa o entendimento intrincado e multifacetado do conceito de saúde e dos problemas de saúde pública, os quais já suficientemente debatidos por diversos autores21-23. Os modelos explicativos usualmente empregados para definir as demandas nesse campo amparam-se, em grande parte, nos referenciais da economia e do planejamento em saúde, centrados nas condições admitidas como anormais vividas pelos usuários, ou seja, baseiam-se na doença24. Tais modelos explicativos predominantes tendem a reduzir o sujeito pela objetivação da doença, cujas respostas são elaboradas restritamente a partir de conhecimentos especializados, amparados por suas racionalidades, de forma a desconsiderar a diversidade de contextos em que estas se inserem24.
Esses argumentos nos incitam a alguns questionamentos: as demandas de saúde poderiam ser exclusivamente identificadas por um interlocutor qualificado, capaz de determinar a conformação adequada a partir de seu conhecimento técnico-científico? Mais que isso, cabe discutir se seria possível a determinação de ‘valores-saúde’ à maneira dos valores-notícia das mídias, únicos e quantitativamente determinados, diante de uma realidade social complexa e plural? É certo que o conhecimento epidemiológico tem pautado um ‘agendamento’ hegemônico da saúde, mediante sua capacidade de identificar e mensurar os agravos à saúde, bem como seus mecanismos de intervenção e controle, por meio do estudo da frequência, distribuição e dos determinantes de tais agravos25. Ressalta-se, também, sua função de apontar questões de relevância pública, no papel de ferramenta-chave para a administração da saúde de um país e para orientação das decisões políticas26.
Todavia, é importante considerar que a própria discussão epidemiológica é permeada de questões sociais, e que um de seus objetos se situa no estudo dos determinantes sociais da saúde27. Portanto, a epidemiologia se apresenta como uma construção heterogênea em seus objetivos, métodos e práticas28, que admite, como recurso, a quantificação como estratégia central, mas que se mostra aberta às perspectivas críticas, multiculturais e de interlocução com a sociedade (e com as ciências sociais) para compreensão dos fenômenos que identifica e mensura com seus instrumentos26.
Poderíamos considerar, então, que a epidemiologia detém o saber tradicionalmente instituído – mas não exclusivo – para determinar os critérios de priorização de problemas/questões, os ‘valores-saúde’ para a população. Mais que isso, é importante não se restringir à visão de custo-benefício balizada pelos indicadores e pelo planejamento normativo. A busca de uma análise plural e eticamente mais alinhada às necessidades de saúde de uma sociedade iníqua deve considerar, também, o prisma da vulnerabilidade social – que admite a exposição desigual das pessoas a determinadas formas de adoecimento. Isso implicaria um conjunto de aspectos não apenas individuais, mas, também, coletivos, contextuais e ambientais, que derivam em suscetibilidade desigual a males e, de modo inseparável, maior ou menor disponibilidade de recursos de todas as ordens para proteção dos grupos29.
Deve-se observar que as necessidades de saúde não representam um bloco monolítico e conceitual que se limita às resoluções objetivas de problemas preconcebidos. De acordo com Cordeiro30, as necessidades de saúde podem ser concebidas em três dimensões: representação social, peculiar a cada classe social, gênero, faixa etária e às individualidades dos sujeitos; dimensão médica, a qual se expressa por meio da perspectiva clínica, levando, muitas vezes, a um conflito entre o saber ‘científico’ e o entendimento de necessidade dos indivíduos que recorrem aos serviços; e como concepção dos planejadores de saúde, baseadas, em sua maioria, em conceitos de custo-benefício. Já o conceito de demanda em saúde, segundo Cecílio31, seria a tradução das necessidades mais complexas do usuário, o seu pedido explícito, modelado pela oferta que os serviços fazem.
Assim, o estudo dos indicadores epidemiológicos representa uma ferramenta objetivadora para identificação de necessidades de saúde, embora apresente limitações em seus recortes e perspectivas de coleta e análise de dados. Segundo Camargo Jr.32, tais ‘problemas de saúde’, antes de tudo, não são objetos dados que se oferecem passivamente à observação, mediante o emprego de técnicas adequadas. Entende-se que o processo de identificação de problemas de saúde seja uma negociação complexa entre vários atores, cujos resultados são contingentes e instáveis ao longo do tempo.
Como possibilidade para reconhecimento e priorização dos problemas de saúde que representem maior risco em vista das vulnerabilidades da população e, sobretudo, para os grupos excluídos socialmente, alguns autores sugerem o diálogo com a epidemiologia, aliado à valorização da percepção dos indivíduos e à discussão da reorganização da gestão e da micropolítica de saúde31 , 33. Nessa acepção, Pinheiro et al.24 defendem a tese de que a demanda e o direito à saúde devem ser concebidos como concepções renovadoras de sentidos, significados e vozes de sujeitos, e interesses contextualizados e historicamente situados. De tal maneira, não é possível desprezar as potencialidades da epidemiologia na detecção de problemas e determinação de ‘valores-saúde’, desde que suas ferramentas sejam empregadas com a consciência crítica de suas incompletudes e da necessidade de se entender o lugar do indivíduo na construção social das demandas. Ainda que se discutam maneiras distintas de se analisarem problemas de saúde, a necessidade de metodologias de escuta e percepção da polifonia social aqui se faz mister.
Em síntese, a partir da discussão (abreviada neste trabalho em vista das limitações de espaço) sobre as possibilidades de se determinarem ‘valores-saúde’, percebe-se que o emprego de sentidos únicos, legitimados exclusivamente por falas autorizadas, não sustentaria plenamente a compreensão de demandas, saberes e expectativas que emanam da sociedade. Além disso, o ‘valor-saúde’ deve buscar expressar as vulnerabilidades sociais (fragilidades dos mais prejudicados socialmente), e, não, apoiar-se apenas em critérios de custo-benefício, como muito utilizado no Planejamento Normativo na década de 1960. No entanto, os lapsos na circunscrição dos campos poderiam representar rico objeto de análise. Em face do exposto, propõe-se a reflexão do papel da mídia na problematização e enunciação das necessidades de saúde.
A participação da mídia na construção da realidade é determinante atualmente. Considerada, por Thompson34, a ‘era da visibilidade mediada’, hoje, à medida que a comunicação se acelera e a extensão das diversas mídias cresce, altera-se a percepção da realidade: até mesmo considera-se a existência de algo de acordo com sua veiculação midiática35.
No contexto da visibilidade mediada, a distinção de questões públicas ou privadas perpassa a sua divulgação: se diz ‘público’ algo aberto, acessível ao público, visível a espectadores, para que muitos o vejam ou ouçam. Já questões privadas, ao contrário, representam o que se esconde da vista dos outros, o que é dito ou feito entre um círculo restrito de pessoas34. A mídia possibilita, dessa maneira, que a publicidade de indivíduos, ações e eventos se dê independente da partilha de lugares comuns34, permitindo a visibilidade de realidades. Mais que isso, conforme salienta Türke6, os sujeitos se acostumam de tal maneira com a torrente de estímulos cotidianos – no interior de uma lógica de reprodução e apreensão de qualquer instante – que, paulatinamente, perdem a sensibilidade para o que não se anuncia, para o que não prende o olhar.
A visibilidade se torna, desta forma, uma característica marcante dos tempos atuais, tal qual a intensa dependência dos meios de informação36. Assim sendo, no que diz respeito à saúde, a visibilidade faz-se determinante na construção e manutenção do lugar de fala dos indivíduos no espaço público e no mercado simbólico das práticas e políticas de saúde36 , 37. Torna-se essencial a capacidade de pautar os assuntos evidenciados pela mídia no dia a dia da população, incitando à discussão política sobre eles. Araújo et al.36 defendem que, assim como a visibilidade pode colaborar para o reconhecimento de necessidades de saúde, a invisibilidade pode levar à negligência. Na história recente, destaca-se a ampla dimensão midiática da aids, tornada um fenômeno social marcado pelo desenvolvimento biotecnológico, pelo ativismo social, enfrentamento e tomadas de posição, diante de sua divulgação e repercussão nos meios de comunicação38.
Portanto, as decisões acerca do que se apresenta como necessidade de ação imediata – considerando o panorama político das sociedades democráticas – nem sempre são levadas a termo em vista da influência política de outros problemas de maior exposição pelos meios de comunicação. Os recursos direcionados aos setores sociais mais distanciados da percepção midiática e cultural não raro comprometem sua estabilidade política. A representação midiática do próprio Sistema Único de Saúde (SUS) como um cenário exclusivo de iniquidades torna-se um exemplo representativo da potencialização da negligência. Suas dimensões mais positivas, assim como os resultados de suas conquistas mais recentes, desaparecem sob a priorização e hipervisibilidade de suas limitações, sobretudo no campo da assistência hospitalar, o que reverbera no desestímulo à mobilização social na luta pelas pautas da saúde pública39. Portanto, ao discutir a desatenção midiática como fator de negligenciamento, devemos destacar sua propriedade formadora de sentidos e opiniões, assim como seu potencial de ocultamento da realidade.
Mas, então, o que seria essa ‘negligência’? As mídias deveriam ser incluídas no rol dos atores sociais aos quais se delega um poder que é deliberado e sistematicamente omisso sobre uma realidade que expõe iniquidades? Perante seu dever de divulgar o que é de interesse da sociedade, poderia ser considerada uma ‘negligência de visibilidade’ quando se nega foco às questões que trazem sofrimento, morte e perpetuação de condições de exclusão social?
A etimologia liga a palavra negligência à falta de atenção ou cuidado, desleixo, incúria40. Negligenciar denota não dar atenção, menosprezar, até mesmo esquecer. No que tange à esfera jurídica, a negligência relaciona-se à inércia psíquica e à inobservância ou omissão de dever do agente41. Apesar de não haver dever jurídico, entende-se que os meios de comunicação possuem deveres éticos e morais com a sociedade, bem como finalidade educativa e de promoção da cultura, conforme princípio garantido no Capítulo V da Constituição Federal42. Assume-se, portanto, como sentido de negligência midiática a iniquidade de não tornar visível quando é função acessível e urgente. Em outras palavras, quando há falha de intervenção originada por algo que deveria ser priorizado, mas não o foi, está colocada a negligência.
O entendimento do negligenciamento midiático da saúde inspira-se no uso do conceito de negligência pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ao definir as ‘doenças negligenciadas’. Tais doenças crônicas, incapacitantes e com condições estigmatizantes prevalecem em condição de pobreza e atingem um sexto da população mundial43. São, em sua maioria, de origem parasitária, e, no Brasil, as mais comuns são: doença de Chagas, dengue, esquistossomose, malária, leishmaniose, hanseníase e tuberculose44. Acredita-se que, para além da negligência atribuída à Ciência, ao mercado e ao Estado45, o silenciamento midiático acerca das doenças negligenciadas e de outros problemas de saúde contribui para sua perenidade, distancia politicamente responsáveis de vulneráveis, assim como reforça a alienação destes das mínimas condições de subsistência constitucionalmente garantidas.
Sendo assim, entende-se que a visibilidade per se não garante priorização dos problemas de saúde; porém, há autores convencidos de que a ausência de espaços midiáticos suficientes para as necessidades dos indivíduos equivale à negligência em pesquisa, tecnologias, ações e serviços voltados para as mesmas36. Por esses motivos, destaca-se a relevância de se analisarem doenças e questões de saúde pouco tematizadas pelos meios de comunicação, apesar de sua relevância social – as doenças midiaticamente negligenciadas.
Amparados nas reflexões apresentadas até aqui, entende-se que os meios de comunicação podem estar implicados na negligência política, econômica e social de determinadas questões de saúde, como, também, podem veicular uma ‘comunicação negligenciada’ – centralizadora, descontextualizada e instrumental36. No entanto, considera-se, também, que a mídia pode ser negligente em relação a questões de saúde ao ignorá-las, priorizando a veiculação de banalidades em detrimento de informações relevantes à saúde da população.
Além de discutir a negligência de informação, deve-se considerar a produção de ‘desinformação’ e ignorância por essa mesma mídia. É muito difícil saber o que ignoramos, mas é certo que, assim como o conhecimento, a ignorância é socialmente construída.
De acordo com Proctor46, a ignorância é produzida por meio de mecanismos como: negligência deliberada ou inadvertida (‘sem querer’), supressão ou sigilo, destruição documental, tradição inquestionada ou uma miríade de formas de seletividade político-cultural inerente (ou evitáveis). Assim sendo, da mesma maneira que se produz conhecimento em saúde, seja por intermédio de estudos acadêmicos, seja por meio das ações governamentais, escolares, midiáticas de educação em saúde ou, até mesmo, por divulgação publicitária, se dá a produção de ignorância (e negligência) pelas mesmas instâncias. Pode ser passivamente construída – quando se foca determinado ‘lado’ da questão e se obscurece outro aspecto da mesma – ou ativamente construída, quando se tenta confundir ou enviesar as evidências de determinado efeito na saúde de um certo medicamento ou do próprio tabagismo, conforme ocorreu em nossa História recente, por exemplo.
Cristensen47 explica como os valores jornalísticos já foram usados para perpetuar a ‘agnogênese’ intencionada pela indústria tabagista, que se valeu da objetividade jornalística e do critério do ‘equilíbrio e imparcialidade’ para justificar que o discurso científico era explorado de forma parcial e superficial. De tal forma, garantiu espaço a seus argumentos tendenciosos na notícia, a partir da premissa de que a mídia deveria dar voz aos diferentes atores e interesses sobre a questão do fumo. Há que se considerar, dessa forma, a possibilidade de as empresas jornalísticas (exceto honrosas exceções) produzirem informações ‘midiaticamente negligenciadas’ quando excluem, de sua agenda, assuntos que possam ferir interesses a que se prestam (aspectos políticos, econômicos e sociais indigestos ao capitalismo globalizado). Incluem-se, nesse cenário, alguns interesses escusos do próprio setor saúde, conformado por representações governamentais, civis, mas, também, comerciais, que não devem ser esquecidos. A tais ‘atores’, o que seria interessante que se continuasse a ignorar?
Poderíamos afirmar que, enquanto a intensa cobertura tenderia a exaltar determinados problemas, a omissão de outros poderia contribuir para seu subdimensionamento político. Destaca-se, assim, a necessidade de ocupação de determinados espaços simbólicos e a relevância de se estudarem as doenças, agravos e problemas de saúde pouco tematizados pelos meios de comunicação. O problema em si não é a ‘necessidade’ de informação, pois não se pode responder à questão de falta de sentido com informações. Muitas seções de ciência e saúde encontram-se disponíveis, repletas de informações apresentadas ‘sem controvérsias’ – uma visão triunfalista da ciência, que alimenta ideias biopolíticas de saúde e doença, com caráter usualmente moralista e conservador.
Então, por que almejar que as doenças e as questões de saúde NÃO sejam midiaticamente negligenciadas? Porque a mídia, ao privilegiar essa visão triunfalista da ciência, foca em assuntos de saúde que coadunam com a lógica de mercado e abordam a saúde com esse frame – valorizando o fútil, inflando o banal, prescrevendo comportamentos e vendendo mercadorias. Será que o fazem cientes de que a visibilidade é essencial para pautar políticas públicas e discussões nos mais diversos círculos sociais? Consideram, em suas pautas, as doenças relacionadas à pobreza, do interior dos países, dos subúrbios das cidades e das minorias sociais que deveriam ocupar espaços na mídia tanto quanto as novas biotecnologias revolucionárias “dos últimos tempos da última semana”? Admitindo-se a intensificação dos elos entre o direito à informação e o direito à saúde, destaca-se, portanto, a relevância de se analisarem as DMN. As mazelas de saúde que não despertam interesse jornalístico por não atenderem aos critérios de novidade e do extraordinário. A importância de devassar o que é invisibilizado: as doenças negligenciadas pela cobertura jornalística (assim como suas condições circundantes) e o peso desses silêncios sobre os segmentos sociais mais vulneráveis.
Parte-se do questionamento do excessivo distanciamento entre os pesos que definem a divulgação de algum assunto (novidade, exclusividade, visibilidade, raridade), e os critérios que definem a relevância da divulgação das questões de saúde, sobretudo no que diz respeito às moléstias que prevalecem em condições de pobreza e não apresentam qualquer atrativo para a divulgação midiática. Dessa maneira, propõe-se a discussão sobre as diferenças entre as necessidades e valorações midiáticas (valores-notícia) e as necessidades de saúde (‘valor-saúde’), com o intuito de potencializar o diálogo entre ambos, a fim de propor uma lógica de valoração mais sintonizada. Sob tais ângulos, seria oportuna a criação de um ‘valor-saúde-notícia’9, que entenda a comunicação midiática mais do que um insumo de saúde, mas como componente estratégico do campo da Comunicação e Saúde, de alta relevância para o desenvolvimento de Políticas Públicas.
O estudo aponta encontros e desencontros entre saúde e mídia, evidencia ‘silenciamentos’ e lança algumas propostas de reflexão a respeito de DMN. Não se recusa, aqui, a legitimidade das lógicas de noticiabilidade, porém, clama-se por espaços e reprodução de discursos midiáticos mais contextualizados com as necessidades de saúde da população, capazes de pautar discussões e, quiçá, sobressair-se sendo utilidade pública. Afinal, a descoberta de demandas, muitas vezes, leva a um efeito de mobilização social que surpreende até as mais afinadas interpretações sociológicas.
Importante também considerar que, embora legítimo num contexto genérico e abstrato, as mídias não são instituições monolíticas, inteiramente controladas por elites comprometidas com os interesses do capitalismo global48. Experiências alternativas, autônomas e marginais de comunicação massiva compõem um espectro de possibilidades de comunicação e saúde relevantes, que, muitas vezes, registram experiências contextualizadas e bem-sucedidas em comunidades, movimentos sociais e associação de pacientes, por exemplo. Trazem visibilidade para pautas periféricas e dão voz a atores invisíveis na grande mídia. Porém, ao mesmo tempo em que podem trazer à tona DMN, em sua maioria, são elas mesmas negligenciadas pelo mercado e sofrem de constrangimentos econômicos e políticos que as invisibilizam.
A proposta de discutir um ‘valor-saúde-notícia’ trata de uma tentativa de aproximar os propósitos, de apresentar uma alternativa possível de sintonia. Provável sintonia, uma vez que os resultados não são garantidos. Mais que isso, não basta sintonizar as lógicas midiáticas (valores-notícia) e as necessidades de saúde (‘valor-saúde’) e viabilizar uma comunicação instrumental e transferencial para a população. Deve-se, pois, lutar por uma comunicação dialógica que não só corresponda às expectativas e necessidades dos sujeitos, mas que, sobretudo, lhes permita o acesso aos meios de produzir comunicação e fazer circular seus próprios sentidos, discursos e modos de entendimento da saúde e da vida, e suas necessidades daí decorrentes36.
A partir das reflexões apresentadas neste artigo, buscou-se uma aproximação teórica da discussão das DMN, certos de que a identificação e discussão das mesmas prosseguirão em outros trabalhos. Almeja-se, assim, não só qualificar as DMN como uma categoria analítica, como, também, possibilitar a aproximação entre as perspectivas de saúde e midiáticas, por meio de uma avaliação mais acessível e, talvez, também mais sensível às discrepâncias ainda mal identificadas ou àquelas nunca percebidas.