Print version ISSN 0103-2100On-line version ISSN 1982-0194
Acta paul. enferm. vol.28 no.3 São Paulo May/June 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201500045
A violência, em seu sentido geral, está amplamente disseminada em todos os países do mundo e representa um problema de saúde pública de graves dimensões. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, em mais de 80 países, constatou que, mundialmente, 35% das mulheres sofrem violência física e ou sexual por um parceiro íntimo ou violência sexual por uma pessoa sem vínculo afetivo. A maioria dos casos de violência doméstica é praticada em sua maioria no ambiente doméstico.(1) A prevalência de violência doméstica contra a mulher grávida varia amplamente na literatura, de 1,2% a 66%. Esta variação provavelmente deve-se às diferenças nas metodologias adotadas nos estudos empíricos, nos aspectos culturais e nas definições sobre violência doméstica empregadas nos mesmos, que dificultam comparar seus resultados.(2,3)
A violência doméstica pode resultar em diversos danos à saúde das mulheres, como gestação indesejada, aborto,(4) baixo peso ao nascer e prematuridade.(5) A depressão e a síndrome de estresse pós-traumático(6) podem ser contabilizados como desdobramentos da violência doméstica. Quando as gestantes são vitimadas pela violência física e sexual, além das intercorrências citadas, elas têm chances estatisticamente significantes para apresentar sangramento vaginal e não ter desejos sexuais.(7)
Profissionais de saúde possuem condições privilegiadas para detectar a problemática da violência contra mulheres. No entanto, o registro das ocorrências de violência contra as mulheres no Brasil é escasso e pouco fidedigno. São problemas derivados do medo das consequências da formalização de denúncias.(7) O objetivo deste estudo foi caracterizar a violência doméstica na gravidez.
Foi realizado um estudo transversal, exploratório e analítico, sobre frequência e características da violência contra a mulher em algum momento de sua vida e na gravidez. Ele foi desenvolvido em uma maternidade filantrópica, vinculada ao sistema público de saúde, localizada na cidade de São Paulo, Brasil.
A população do estudo consistiu de 385 puérperas que receberam assistência ao parto na instituição. Os pais biológicos dos filhos gerados por elas foram denominados como “parceiros”.
O critério de inclusão foi ter tido parceiro íntimo nos últimos 12 meses, independente de coabitação. A recusa para participar do estudo, por qualquer motivo, e ter déficit mental foram, os critérios de exclusão estabelecidos.
A coleta dos dados foi feita mediante uso de formulário estruturado que continha, além das características sociodemográficas das mulheres, seus familiares e parceiros, os itens do instrumento “Abuse AssessmentScreen-AAS”, traduzido e validado para a cultura brasileira.
Os dados foram analisados por meio do Programa R para Linux versão 2.1.1. Análises descritivas e multivariadas foram feitas para verificar a existência de associações entre as características da violência doméstica sofrida pelas mulheres e as características sociodemográficas referentes às mulheres vitimadas, seus familiares e agressores. Os testes Qui-Quadrado de Pearson e Exato de Fisher foram feitos para comparar valores de significância estatística (p), tendo sido considerados significantes os resultados p < 0,05.
O desenvolvimento do estudo atendeu às normas nacionais e internacionais de ética em pesquisa envolvendo seres humanos.
Quanto às características das mulheres, a maioria era jovem, casada, com escolaridade entre 9 e 11 anos, da religião Católica, moradora em casa própria, sem trabalho remunerado, e o parceiro era o principal provedor familiar. Seus parceiros tinham características similares em relação à idade e escolaridade, porém, a maioria tinha trabalho remunerado.
Quanto às características da gravidez, a maioria (58,2%) não mudou o tipo de vínculo com o parceiro depois da ocorrência da gravidez e dentre as que mudaram de vínculo, 68.3% tinham se casado. Em 55,6% dos casos, não houve planejamento da gravidez, apesar de os casais estarem usando algum tipo de método anticoncepcional (55,6%). A maioria dos parceiros (93,5%) e demais membros da família (96,4%) aceitaram a gravidez.
Dados sobre a ocorrência da violência doméstica segundo o momento, o tipo, o agressor e a mudança na frequência da violência doméstica com o advento da gravidez estão apresentados na tabela 1.
Tabela 1 Violência doméstica
Momento/Tipo/Agressor/Aumento com a gravidez | n(%) | |
---|---|---|
Em algum momento da vida (n1=385) | ||
Não | 243(63,1) | |
Sim | 142(36,9) | |
Tipo (n2=142) | ||
Psicológica | 138(97,1) | |
Parceiro | 68(49,3) | |
Alguém da família da mulher | 34(24,6) | |
Alguém da família do parceiro | 2(1,5) | |
Alguém não pertencente à família | 34(24,6) | |
Física | 41(48,7) | |
Parceiro | 20(48,8) | |
Alguém da família da mulher | 7(4,9) | |
Alguém não pertencente à família | 14(34,2) | |
Sexual | 7(4,9) | |
Parceiro | 4(57,2) | |
Desconhecido | 2(28,6) | |
Não respondeu | 1(14,2) | |
Durante a gravidez (n2=142) | ||
Não | 93(65,4) | |
Sim | 49(34,6) | |
Tipo (n3=49) | ||
Psicológica | 35(71,4) | |
Parceiro | 22(62,9) | |
Alguém da família da mulher | 8(22,9) | |
Alguém não pertencente à família | 5(14,2) | |
Física | 17(34,6) | |
Parceiro | 8(47,1) | |
Alguém da família da mulher | 5(29,4) | |
Alguém não pertencente à família | 4(23,5) | |
Sexual | 3(6,1) | |
Parceiro | 3(100,0) | |
Freqüência da violência na gravidez (n2=142) | ||
Diminuiu | 54(38,0) | |
Aumentou | 36(25,3) | |
Continuou a mesma | 35(24,7) | |
Cessou | 4(2,8) | |
Não respondeu | 13(9,2) |
Por meio desta tabela, é possível verificar que a maioria das mulheres não sofreu violência doméstica em algum momento da vida (63,1%) ou na gravidez (65,4%). Das 142 participantes deste estudo, 36,9% tinham sofrido violência doméstica em algum momento da vida, e praticamente todas (97,1%) referiram ter sofrido violência psicológica, quase a metade (48,7%) sofreu violência física e sete mulheres (4,9%) referiram ter sofrido violência sexual. Os principais agentes dos três tipos de violência sofrida em algum momento da vida foram os próprios parceiros, embora parte delas (38,0%) tenha referido que a frequência da violência diminuiu depois da gravidez.
As associações entre a ocorrência da violência doméstica na gravidez e variáveis relativas às características sociodemográficas das mulheres, seus parceiros e membros da família, que se mostraram estatisticamente significantes (p<0,05) (Teste Exato de Fisher) foram: ser da religião evangélica (p= 0,0022), ter renda familiar abaixo de R$ 1.000,00 na época da coleta dos dados (p= 0,0215), não ter planejado a gravidez (p=0,0196) e ter parceiro com hábito de consumir bebida alcoólica (p= 0,0002). As demais variáveis das mulheres (idade, anos de estudo, número de filhos, existência de trabalho remunerado, tipo de vínculo com o parceiro, moradia própria, alugada ou emprestada e dependência financeira), dos parceiros (anos de estudo e aceitação da gravidez) e outros membros da família (aprovação da gravidez) e suas associações com a vitimização pela violência doméstica não indicaram existência de significância estatística.
Os limites deste estudo estão relacionados ao delineamento transversal, que não permitiu o estabelecimento de relações de causa e efeito. Os resultados limitaram-se à amostra investigada, não permitindo generalizações a outras populações.
As diferenças de aspectos culturais, sociais sobre a violência doméstica aumentaram o risco de subnotificaçção. A violência doméstica é muito influenciada pelos costumes culturais de cada comunidade e, assim sendo, nenhuma estratégia a ser adotada é capaz de equacionar o problema de forma universal.(8)
Embora a violência doméstica seja influenciada por aspectos culturais e sociais, este estudo destaca a importância dos profissionais de saúde destinarem esforços de modo à identificar e responder à violência doméstica sofrida pelas mulheres atendidas nos serviços de pré-natal.(6)
As participantes deste estudo e seus parceiros eram, na maioria, jovens, casados, católicos e com escolaridade média, donas de casa e dependentes financeiramente dos parceiros, sendo estes os principais provedores das famílias. Embora 27,5% delas fossem adolescentes, não foram vitimadas com maior frequência pela violência doméstica, se comparadas às adultas.
A gravidez não foi, para mais da metade (58,2%) dos casais, motivo para mudar o tipo de vínculo. Entre as que mudaram o tipo de vínculo depois da gravidez, o seu fortalecimento mediante casamento prevaleceu em 68,3%.
Quanto ao uso de métodos anticoncepcionais no momento da gravidez, 44,4% não estava usando, e a maioria (55,6%) não planejou a gravidez. O estabelecimento do vínculo marital como consequência da gravidez não planejada pode ocasionar desgastes para as pessoas envolvidas. Apesar da ocorrência da gravidez não planejada em cerca de metade das mulheres, a maioria dos parceiros (93,5%) e demais membros da família (96,4%) aceitou o fato.
Foram vítimas da violência doméstica em algum momento da vida e durante a gravidez 36.9% e 34.6% respectivamente. Esta proporção foi maior se comparada aos resultados obtidos por pesquisa realizada em Londres, na qual a proporção de mulheres que tinham sofrido algum tipo de violência doméstica ao longo da vida foi de 23,5%.(9)
Ao contrário de outros estudos,(10) a gravidez não foi um fator protetor para a violência doméstica. A literatura não é consistente quanto à diminuição da violência quando a mulher fica grávida.(11) Resultados de estudos realizados em 19 países (Africanos, Latino-Americanos, Asiáticos e Europeus) identificaram a ocorrência de altos índices de violência perpetradas pelos parceiros, mas as mulheres vitimadas não necessariamente relataram altos índices de violência durante a gravidez. Este fato indica que fatores culturais podem ser determinantes importantes da denúncia da violência perpretada pelos parceiros durante a gravidez.(11) Estudos anteriores também indicaram que a violência pelo parceiro poderia começar durante a primeira gravidez.(12)
Quanto ao tipo de violência doméstica sofrida pelas mulheres, a psicológica apresentou maior frequência, sendo semelhante ao estudo realizado no sudeste da Nigéria.(13) A violência física nesta amostra foi maior do que em outras partes do mundo.(14)
Com relação ao agente da violência doméstica, o parceiro foi citado como o principal, seguido por membro da família. Este resultado evidencia que a violência doméstica contra a mulher representa um problema presente na maioria das sociedades.(7,9)
As mulheres cujos parceiros tinham o hábito de consumir bebida alcoólica, as protestantes, as que não tinham planejado a gravidez e as que tinham renda familiar mensal menor que R$ 1.000,00 apresentaram risco significativamente maior (p<0,05) de sofrer violência doméstica na gravidez. É de conhecimento que o consumo de bebida alcoólica está relacionado à menor coesão e à menor organização no ambiente familiar, bem como aos altos níveis de violência doméstica,(8,12) fato que indica a necessidade de incluir dados sobre hábitos pessoais e familiares no histórico de saúde na assistência pré-natal. Especial atenção deve ser direcionada à percepção sobre o medo da mulher que tenta ocultar o problema do etilismo do parceiro. Diante da situação de medo e de dependência econômica, a maioria das mulheres busca ajuda de familiares ou amigos, mas outras permanecem em silêncio.(15,16)
Ser protestante representou um risco significativo para a violência doméstica, o que torna essencial que a afiliação religiosa seja identificada na assistência pré-natal. A existência de uma íntima relação entre religiosidade e comportamentos conservadores na esfera sexual já foi demonstrada.(16–18)
Este estudo confirma a importância de uma abordagem pelos profissionais de saúde para rastrear a violência doméstica e identificar as mulheres grávidas em risco de violência doméstica perpretada pelo parceiro.(19) Esta medida representa importante subsídio à redução do risco das mulheres serem vitimadas pelos seus parceiros e das morbidades relacionadas à gestação, do estresse emocional, cuja somatória importa para assegurar um desfecho perinatal mais positivo.(20)
Diante do cenário obtido e o impacto negativo que a violência doméstica acarreta, devemos investigar sistematicamente a violência doméstica na atenção básica de saúde, com atenção especial direcionado às grávidas protestantes, que não planejaram aa gravidez e aquelas, cujos parceiros possuem o hábito do etilismo.