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Dominância financeira na assistência à saúde: a ação política do capital sem limites no século XXI

Dominância financeira na assistência à saúde: a ação política do capital sem limites no século XXI

Autores:

José Antonio de Freitas Sestelo

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.6 Rio de Janeiro jun. 2018

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018236.04682018

Introdução

O advento das revoluções burguesas nos países centrais e a incorporação de novas tecnologias industriais ao processo de acumulação capitalista em escala global determinaram o estabelecimento de um padrão de exploração intensiva do trabalho humano assalariado e dos recursos naturais para a fabricação de mercadorias em uma escala sem precedentes.

As contradições intrínsecas à relação entre capital e trabalho passaram a ser mediadas, nas sociedades modernas, também por meio de políticas sociais de Estado abrangentes e voltadas para a manutenção de níveis mínimos de reprodução das populações de trabalhadores incluindo saúde, previdência e assistência social.

A segunda metade do século XX foi marcada por uma expansão global na oferta de produtos industriais inclusive aqueles utilizados como insumos para a prestação de serviços médico/hospitalares.

A nova dimensão adquirida pela estrutura dos diversos sistemas de serviços de saúde, em escala mundial, permitiu que diferentes espaços de transação fossem incorporados ao processo de acumulação capitalista setorial transformando o campo da assistência, ele mesmo, em um locus privilegiado para o capital em processo1.

A partir do núcleo industrial de produção de medicamentos e equipamentos médico-hospitalares, a acumulação de capital no setor saúde avançou para subsetores relacionados mais diretamente com a prestação de serviços incorporando novos modelos de organização do trabalho médico, estratégias administrativas de intermediação assistencial e agentes econômicos dotados de trajetórias históricas originalmente distantes do campo da saúde.

O arranjo político e institucional estabelecido entre os países centrais em 1945 viria a sofrer atualizações nas três últimas décadas do século XX depois de um breve período de estabilidade marcado pelo aumento da renda média dos trabalhadores e pela reconstrução da infraestrutura que havia sido destruída nos anos de conflito. No Brasil, o pós-guerra foi marcado por um processo acelerado de urbanização e industrialização que trouxe para a periferia das grandes cidades tensões sociais relacionadas com as persistentes desigualdades de renda historicamente incidentes sobre a população.

Neoliberalismo, globalização e, mais recentemente, financeirização são neologismos que passaram a ser veiculados pela imprensa e no meio acadêmico para descrever grandes linhas de força dotadas de viés claramente regressivo no que se refere à renda do trabalho.

Precarização das relações de trabalho, desemprego estrutural, restrições orçamentárias a políticas sociais, aumento nos níveis de desigualdade de renda2 e restrições ao trânsito de pessoas pelas fronteiras nacionais são dados de uma realidade que se impõe sobre diversas populações. Por outro lado, a queda de barreiras territoriais ao trânsito de capitais potencializada por tecnologias de processamento de informações e o fortalecimento de grupos econômicos organizados como máquinas de acumulação globais dotadas de estratégias corporativas virtualmente imunes aos mecanismos tradicionais de controle social são elementos que se consolidam como um novo normal presente no quotidiano das pessoas e dos governos no século XXI.

A caducidade dos mecanismos institucionais de contenção da ação socialmente regressiva do capital, inclusive no que se refere às políticas sociais de Estado, caminha pari passu com a insuficiência de elementos teóricos e conceituais ajustados à fluidez e nebulosidade associadas às novas estratégias de acumulação desenvolvidas sob a lógica atual da dominância financeira.

Este artigo parte de dois argumentos fundamentais desenvolvidos separadamente nas seções a seguir que buscam, em primeiro lugar, reconstituir, em uma perspectiva histórica, ainda que não exaustiva, a trajetória do capital em processo na assistência à saúde no Brasil contemporâneo e, em seguida, introduzir a discussão sobre dominância financeira na assistência a partir do caso concreto da hipertrofia do esquema de intermediação assistencial privativa existente no país.

As considerações finais destacam a natureza nebulosa dos fenômenos localizados na interface de articulação público/privada do sistema da saúde brasileiro e os limites inerentes à utilização de modelos explicativos reducionistas/dicotômicos na abordagem dessa problemática.

A assistência à saúde como locus de acumulação de capital

O desenvolvimento industrial no Brasil é tardio e possui especificidades. O esgotamento do primeiro ciclo político republicano em 1930 marca o início de uma aceleração do processo de industrialização/urbanização e o desenvolvimento de uma moderna burocracia de Estado dotada de maior grau de centralização com escopo de atuação ampliado.

No que se refere às políticas sociais de previdência e assistência à saúde voltadas para a massa de trabalhadores urbanos em expansão, quer se estabeleça o seu marco de origem na regulamentação das caixas mutualistas a partir de 19233 ou na sua posterior incorporação pela estrutura mais centralizada dos institutos a partir da década de 19304, pode-se afirmar que, com as mudanças estruturais da primeira metade do século XX, se estabelece um novo patamar na relação entre capital e trabalho e a assistência à saúde passa a ser um mediador importante na resolução desse conflito distributivo.

O padrão de inserção periférico da produção industrial brasileira matizado pela persistência da estrutura de exportação de produtos primários bem como o advento da guerra nas décadas de 1930 e 1940 limitaram, por algum tempo, a oferta geral de produtos e serviços para as populações urbanas, mas, a partir de 1945, uma dinâmica expansionista passaria a determinar a configuração de estruturas econômicas e políticas mais complexas5.

Um olhar detalhado sobre a assistência à saúde de trabalhadores urbanos revela que os gastos com essa rubrica viriam a decrescer na sua participação relativa aos gastos totais do sistema previdenciário no período posterior a 1930 com a criação dos institutos, como assinalaram Oliveira e Teixeira3 e Cordeiro6. Em outras palavras, o movimento de incorporação pelo Estado das estruturas pulverizadas de assistência mutual privativa resultou na consolidação de recursos de considerável envergadura, mas a sua gestão centralizada passou a obedecer, em geral, a uma visão atuarial estrita deixando as despesas assistenciais em segundo plano.

A viabilidade política e econômica desse arranjo distributivo foi garantida, por algum tempo, pelo Estado Novo, mas, a partir de 1945 uma nova configuração determinada pela expansão geral da atividade econômica viria a pressionar pela constituição de uma demanda compradora estável para produtos e serviços de saúde a partir da massa expandida de trabalhadores urbanos, estabelecendo dois vetores de sinais trocados incidentes sobre as despesas assistenciais financiadas pelos institutos, prenúncio da crise estrutural que se tornaria mais evidente após 1964. As históricas restrições orçamentárias das despesas assistenciais seriam confrontadas com o assédio do capital em busca de novos nichos de acumulação e a solução política viabilizada pelo governo militar seria dada pela via da privatização.

A partir da década de 1950 já havia uma base material de leitos hospitalares expressiva sob o controle de particulares. Em 1962, segundo Cordeiro6, surgiu a primeira tabela de remuneração de serviços médicos e o primeiro plano de classificação de hospitais elaborados pelo Conselho Médico da Previdência Social, órgão de assessoramento do Departamento Nacional de Previdência Social, servindo de base para outras normas que posteriormente, regulamentariam a prestação de serviços médicos contratados.

Em linhas gerais, o transcurso dos dez anos que vão de 1956 a 1966, quando ocorreu a unificação dos antigos institutos, se deu em movimentos que resultaram na articulação ampliada entre Estado, empresas de serviços assistenciais e empresas industriais na vigência de um processo incremental de acumulação de capital na saúde com taxas de crescimento mais altas que o restante da economia. Portanto, se com a instauração do governo militar em 1964 esse processo assume características cada vez mais convergentes com os interesses do capital ancorado na assistência, as bases materiais sobre as quais se daria esse processo de acumulação já estavam, em grade parte, sob o controle de particulares desde o período anterior1.

A burocracia do instituto dos industriários comandou o processo de unificação do sistema previdenciário promovendo o expurgo da influência sindical na gestão política dos seus recursos e expandindo a sua articulação com empresas médicas contratadas ou conveniadas.

Uma nova vertente de acumulação de capital na assistência se abriu na conjugação da prestação de serviços de baixa complexidade com a atividade administrativa de intermediação, viabilizada para os empresários-médicos descapitalizados de então por políticas de estímulo financeiro e creditício operadas dentro da lógica de crescimento econômico com concentração de renda praticada pelo governo militar.

A segregação da oferta de pacotes de assistência por extrato sócio-ocupacional e a inclusão da demanda por planos de saúde nas pautas corporativas das principais categorias de trabalhadores do polo dinâmico da atividade econômica nos anos 1980 consagraram os modelos de intermediação praticados pelas empresas médicas e alçaram seu nível de capital ao patamar das seguradoras comerciais vinculadas originalmente ao setor financeiro.

Os interesses comerciais das seguradoras e as denúncias contra os episódios recorrentes de negação de cobertura praticados pelas empresas médicas convergiram para determinar a criação, nos anos 1990, de um espaço de transações híbrido que reuniu em um mesmo setor a tradicional atividade financeira de venda de seguro-saúde com os neófitos da intermediação assistencial agora capitalizados e vinculados politicamente à estrutura de governo, empresas empregadoras e corporações sindicais.

A discussão pautada ao longo dos anos 1990 levou à formulação de alguns prognósticos que vislumbravam uma perspectiva de choque mediato entre os interesses das empresas de planos e seguros de saúde com os de amplos setores organizados da sociedade7 e, dada a base econômica mais robusta das seguradoras, a extensão de seu controle sobre as vendas de planos e seguros de saúde em detrimento das cooperativas médicas e medicinas de grupo.

Embora tais prognósticos não tenham efetivamente se confirmado, é inegável que a lógica da dominância financeira encontrou expressão nas estratégias corporativas de todas as empresas do setor, não importando a denominação que recebam.

A dominância financeira na assistência à saúde

Dominância financeira e financeirização são conceitos que têm sido utilizados como chave explicativa para a compreensão de diversos fenômenos e processos ligados à definição e formas de realização de riqueza no capitalismo contemporâneo, assim como a crescente centralidade das operações financeiras no processo de acumulação global. São, portanto, expressões que remetem à relação de subordinação do conjunto da sociedade a um mecanismo de dominação e controle que opera por meio de processos tipicamente financeiros.

A tese da financeirização, segundo Van der Zwan8, gradualmente ampliou o seu escopo de abordagens em múltiplas disciplinas movendo-se simultaneamente da periferia para o mainstream do corpo de ciências sociais e dos limites geográficos dos países centrais para a periferia da esfera econômica global.

Um dos marcos teóricos mais utilizados para tratar sobre financeirização se insere no recorte macroeconômico e pode ser transcrito em poucas palavras na definição genérica de uso corrente formulada por Gerald Epstein9: o papel crescente da motivação financeira, dos mercados financeiros, dos agentes e instituições financeiras no funcionamento das economias domésticas e internacional.

Guttmann10 se refere a três aspectos fundamentais na definição de financeirização: a maximização do valor ao acionista como norma de gestão das empresas, o descolamento dos vínculos entre lucros e investimentos e um processo de redistribuição de renda com crescente peso das rendas do capital sobre o trabalho, e dentre elas, juros, dividendos e comissões.

A remoção de barreiras entre compartimentos financeiros antes separados, a desregulamentação dos mercados financeiros e a formação de um espaço mundial integrado, hierarquizado, sem instâncias de regulação e controle, marcado por inovações financeiras e unificado pelos seus operadores, com destaque para investidores institucionais conformam, segundo Chesnais11, um conjunto de mudanças deliberadas, normalmente associadas ao neoliberalismo. Mais recentemente, esse mesmo autor12 postula que o capitalismo conseguiu, até certo ponto, variando de um país para outro, erigir formas de dominação que ascendem à real subsunção do trabalho às finanças.

O desdobramento desse conjunto de mudanças para diversos aspectos da atividade econômica veio acompanhado de um debate sobre o posicionamento de empresas não financeiras (ENFs) nesse processo. Há autores que enfatizam a interpretação de que a financeirização teria sido imposta de fora para dentro, submetendo e fragilizando as empresas13, o que levaria ao enfraquecimento do lado real do investimento e do crescimento14-16. Outros enfatizam a participação ativa das ENFs neste processo17por meio da incorporação das atividades financeiras ao rol de atividades da função objetivo das suas corporações. Nesse sentido, as empresas transnacionais (ETNs) podem ser entendidas como categorias econômicas em si, características deste período, em que grupos financeiros assumem simultaneamente atividades produtivas, comerciais e de serviços18, fato materializado na forma holding e no uso de diversas estratégias de enxugamento, valorização e crescimento por meio de fusões e aquisições (F&A), terceirização e operações em paraísos fiscais para evitar impostos.

Pioneira no estudo dessa problemática, a tese de Braga19sustenta que a dominância financeira configura um novo padrão sistêmico de definição de riqueza por meio do tripé moeda/crédito/patrimônio e um novo padrão de gestão da riqueza produzida utilizando para isso a macroestrutura financeira composta pelos principais bancos centrais, pelo sistema financeiro privado e pelas tesourarias das grandes empresas industriais e comerciais. Além disso, a dominância financeira define as formas de realização dessa riqueza por meio do dinheiro e da predominância dos ativos financeiros sobre os operacionais em um número crescente de países e de agentes econômicos privados.

Braga20critica o uso corrente da ideia de financeirização como se fosse uma deformação do capitalismo ou uma suposta barreira ao desenvolvimento da produção e do progresso técnico industrial. No limite, tais desenvolvimentos tenderiam a assumir uma visão dicotômica que separa, de forma ideológica, o mau capital que se movimenta no mundo dos ativos monetário-financeiros, do bom capital que remete ao mundo da produção de mercadorias por meio do uso de recursos naturais e trabalho humano assalariado.

Critica também a ênfase que certas análises da financeirização atribuem ao conceito de governança corporativa como se houvesse uma espécie de ditadura dos investidores-acionistas sobre a gestão das empresas em prol da predominância da valorização das ações, em detrimento da gestão orientada pelo investimento e pelo sucesso organizacional e econômico no âmbito da produção de mercadorias conduzido pelo administrador-industrial. Aqui, mais uma vez, com variações, pode estar presente a dicotomia reducionista de capital financeiro versus capital produtivo.

Há ainda, segundo Braga20, as formulações que explicam o fenômeno global da financeirização como consequência direta do esgotamento da capacidade de acumulação produtiva nas economias centrais após o fim da regulação fordista e o colapso dos acordos de Bretton-Woods celebrados no pós-guerra imediato. Tais formulações aparecem frequentemente vinculadas a propostas de reforma dos sistemas financeiros atuais como se fosse possível um retorno ao padrão keynesiano instaurado nos anos 1930 ou uma redução do tamanho e do escopo das atuais instituições financeiras.

Braga20situa o sentido da dominância financeira no capitalismo atual em uma perspectiva diversa daqueles que consideram o predomínio das finanças como uma crise conjuntural ou como uma consequência de comportamentos disfuncionais dos agentes econômicos e seus mecanismos institucionais de controle e regulação.

Como novo modo de ser da riqueza global e do capital em processo, a financeirização envolve a um só tempo as grandes corporações produtivas e as instâncias de regulação do Estado. O poder financeiro das grandes corporações globais maneja o dinheiro e as quase-moedas, tanto na circulação industrial quanto na circulação financeira, que passam a ser domínios altamente conexos, ao contrário do padrão anterior de riqueza, em que a primeira era adstrita às empresas industriais, enquanto a segunda aos bancos. Braga20sustenta que pela macroestrutura financeira dá-se uma interação do dinheiro e dos ativos entre ambas as circulações.

A financeirização, portanto, se inscreve, segundo esse autor, em movimentos globais de interdependência patrimonial entre os agentes econômicos mais relevantes de todos os setores e não apenas em uma articulação comercial e creditícia reversível como outrora. De outro lado Braga20identifica nesse novo cenário a captura das finanças dos Estados Nacionais por meio da financeirização da dívida pública que, desse modo, sanciona ganhos financeiros privados e amplia o processo geral de dominância financeira sobre o conjunto da sociedade. O significado do conceito de dominância financeira aqui não se confunde com o de privatização ou de mercadorização. Embora em alguns casos concretos a privatização e a mercadorização sejam um pré-requisito para o desenvolvimento de novas estratégias de acumulação financeirizadas, em outros casos é a subsistência da estrutura institucional pública que vai sancionar a dominância financeira em diversos aspectos da vida social.

O lugar de mediação nas relações entre capital e trabalho ocupado pela assistência à saúde nas sociedades industrializadas e o potencial de universalização dos processos assistenciais, tomados como locus privilegiado de acumulação, conferem relevância e valor estratégico à análise empírica de casos concretos de financeirização situados nos limites dos sistemas de saúde.

No Brasil, a despeito dos avanços gerais na distribuição dos recursos assistenciais obtidos a partir da institucionalização do Sistema Único de Saúde, o processo de acumulação privada na assistência, já bem estabelecido, se expandiu e assumiu novas formas de conveniência sempre baseadas na ideologia de segmentação sócio-ocupacional da demanda e na organização da oferta segundo a capacidade de pagamento do usuário.

Os esquemas comerciais privativos de intermediação assistencial e outras modalidades de segmentação atingiram, em 2012, o patamar de cobertura de cerca de 25% da população21 e em 2014 controlaram discricionariamente cerca de R$124,5 bilhões em recursos provenientes de contraprestações pecuniárias, valor superior ao empenhado pela União para o sistema público no mesmo período22.

A principal mudança estrutural ocorrida no período, entretanto, não foi a mudança de patamar no nível de capitalização das empresas médicas, mas a incorporação pelas empresas não financeiras estabelecidas no setor da lógica das relações financeirizadas determinadas pelo modo de ser do capital no século XXI.

Dados atualizados de pesquisa empírica sobre as empresas23revelam aspectos importantes sobre as características da nova configuração estabelecida no campo assistencial: (i) movimentos de entrada e saída de fundos de investimento globais em participações societárias; (ii) ofertas públicas de ações em bolsas de valores (iii) composição de holdings controladoras multisetoriais, multifuncionais e multinacionais (iv) hipertrofia dos departamentos financeiros em empresas não financeiras (v) montagem de Cadeias de Valor multisetoriais articuladas de forma a garantir resultados globais positivos não alcançáveis pela ação fiscalizatória de órgãos de governo (vi) produção de resultados financeiros importantes a partir de bases operacionais não financeiras estáveis (vii) crescente influência política na formulação de agendas setoriais e marcos legais ad hoc (viii) crescente influência ideológica de seus think tanks corporativos financiados por recursos das empresas.

Em outras palavras, quando se olha para o caso concreto do esquema de intermediação assistencial brasileiro é possível verificar a incidência de diversos elementos característicos da voga de dominância financeira com potencial de repercussão sobre o conjunto do sistema de saúde imprimindo um viés de regressividade crescente na modulação das relações entre capital e trabalho no campo da assistência.

Considerações finais: o desafio da abordagem dos fenômenos de interface

O acúmulo de conhecimento crítico sobre a assistência à saúde no campo da Saúde Coletiva está assentado sobre abordagens interdisciplinares que assumem como premissa a articulação das dimensões políticas, econômicas e sociais em um processo dinâmico dotado de contradições e historicidade.

Não obstante, muitas das descrições e explicações disponíveis a partir do final da década de 1990, assumem um viés reducionista que interroga o esquema de intermediação da assistência constituído pelas empresas como algo relacionado estritamente aos fenômenos de mercado sem relação direta com a esfera pública, com as externalidades em saúde compartilhadas pela população ou com concepções de saúde e doença estruturantes para o sistema24.

Análises dicotômicas que dividem o sistema de saúde em dois compartimentos estanques, um público e outro privado no qual estaria incluído um mercado efetivo na alocação dos melhores recursos assistenciais, não ajudam a entender o elenco de fenômenos localizados na extensa interface público/privada que percorre o dia a dia da assistência.

Daí decorre a importância de evocar o processo de construção das acepções sobre articulação público/privada na assistência à saúde25e assinalar a subsistência de formulações críticas no interior dessa temática representadas, em grande medida, pelo próprio campo da Saúde Coletiva como espaço de prática e de elaboração teórica provido de potência para transitar ao largo da dicotomia totalizante do público versus privado.

Há muitas dicotomias que simplificam e homogeneízam a descrição da realidade resultando, em geral, em modelos causais unidirecionais que se dividem entre compartimentos estanques desprovidos de articulação entre si. Público ou privado, capital financeiro ou capital produtivo, SUS ou planos de saúde, ações de governo ou iniciativa privada, empresários ou médicos, finanças ou saúde são exemplos conexos que tendem a ganhar vazão em um cenário instruído por leituras simplificadoras.

Paradoxalmente, é a premissa de que cada um dos elementos componentes da grande dicotomia público/privado é qualitativamente distinto e, portanto, não pode ser homogeneizado, que permite estabelecer um gradiente de interface e identificar os matizes subsistentes na realidade empírica. Dito de outra forma, nas análises de políticas de saúde as categorias social, privado e público são indissociáveis26e incidem sobre uma extensa interface de fenômenos de articulação onde as ações institucionais de governos determinam e são determinadas por agentes particulares em uma linha de causalidade de mão dupla que precisa ser considerada a despeito das dificuldades inerentes à construção de dados sobre empresas privadas setoriais.

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