versão impressa ISSN 0104-5970
Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.22 no.1 Rio de Janeiro jan./mar. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702015000100013
As preocupações médicas com o câncer cervical se ampliam nas duas últimas décadas do século XIX, com o surgimento de teses e artigos sobre o tema em revistas médicas. No entanto, por muito tempo, a medicina seguiria sem uma arma eficaz para preveni-lo ou tratá-lo, tendo nas cirurgias radicais de amputação do útero, muitas vezes letais, e em tratamentos paliativos suas principais formas de atuação. Por seu turno, as mulheres eram presas fáceis da doença, evitando tornar públicas suas mazelas por pressões sociais ou pudor, e somente recorriam aos médicos quando suas dores, incômodos e sofrimentos ultrapassavam os limites do suportável, momento no qual o mal já não era mais passível de controle.
Até os anos 1940, a despeito do desenvolvimento da ginecologia e, em particular, da radioterapia aplicada ao câncer, a inexistência de um método de prevenção do câncer de colo do útero limitou às poucas mulheres com acesso a consultórios médicos a busca do diag-nóstico precoce por meio de exames ginecológicos frequentes. A partir desse período, o desenvolvimento da citologia esfoliativa (teste Papanicolaou) e da colposcopia, como técni-cas de detecção precoce e, posteriormente, de prevenção, modificou o cenário então vigente, tornando possível a extensão das ações contra a doença a um número maior de mulheres. No entanto, o processo de difusão das técnicas de prevenção no Brasil, seguindo a lógica de desenvolvimento de nossa saúde pública, ampliou lentamente, e de forma desigual, seu raio de cobertura, se transformando em ações de maior escala apenas a partir da década de 1970, com a implantação de campanhas de rastreamento e, mais tarde, com o surgimento de um programa nacional de controle da doença.
O câncer de colo do útero está diretamente associado à infecção pelo papilomavírus humano (HPV) - na maior parte das vezes transmitido por relações sexuais desprotegidas - e, em menor grau, se relaciona com outros fatores, como o maior número de parceiros sexuais, o tabagismo e a falta de higiene. Esses fatores ampliam o risco da doença nas camadas mais desfavorecidas, determinando sua associação à pobreza e a baixos níveis educacionais. A doença é um grave problema de saúde pública nos países da América Latina, considerada uma das regiões de maior incidência no mundo (Guerra et al., 2005).
A despeito do longo processo de desenvolvimento das ações de controle, o câncer do colo de útero ainda é um sério problema de saúde pública no Brasil, atingindo principalmente as mulheres mais pobres, com maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde (Thuler, 2008). Segundo tipo de câncer mais comum na população feminina brasileira, só é menos frequente que o câncer de mama e corresponde à quarta causa de morte de mulheres, por câncer, no país.1 Sua persistência nos índices epidemiológicos mostra as limitações de nosso sistema de saúde e convida à discussão mais ampliada sobre os múltiplos motivos envolvidos nesse quadro.
Nas últimas décadas, no ambiente acadêmico internacional, pesquisadores nos campos da história das ciências, da sociologia e da saúde coletiva vêm elaborando um diversificado conjunto de análises sobre o câncer de colo. Nesse campo, foram enfatizados os problemas de padronização da leitura das lâminas citológicas e as dificuldades de recrutamento e formação dos técnicos em citologia (Casper, Clarke, 1998); a organização das campanhas de rastreamento; as controvérsias sobre custo e eficácia desses programas (Hakama et al., 1985); o papel dos laboratórios no processo de estabilização dessa técnica (Singleton, 1998); as representações de comunidades locais sobre o exame Papanicolaou (Gregg, 2003); e a trajetória mais geral dos saberes e das práticas relacionados com a doença (Löwy, 2011). Tais estudos muito se diferem na avaliação de elementos específicos da história do rastreio do câncer de colo, trazendo distintas contribuições ao tema.
Trabalhos recentes colocaram o foco de suas análises sobre a doença no Brasil, tematizando os diferentes modelos de desenvolvimento de técnicas para seu controle e suas especificidades locais. O estudo sobre o controle do câncer de colo do útero na Argentina e no Brasil, elaborado pela pesquisadora argentina Yolanda Eraso (2010), foi pioneiro nessa abordagem, demonstrando como os dois países seguiram uma trajetória diferenciada da maior parte do mundo médico ocidental, por utilizar a colposcopia2 como base para a detecção de anomalias cervicais até a década de 1960. Seu trabalho indica que, a partir das relações de cooperação entre ginecologistas alemães, brasileiros e argentinos, se desenvolveu o interesse por essa técnica, nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial. Com o final do conflito, foram restabelecidos os laços de cooperação entre os ginecologistas alemães e seus colegas latinos e estabelecida uma verdadeira rede de difusão da colposcopia como técnica para a detecção do câncer de colo do útero nesses países.
Recentemente, em coautoria com a pesquisadora Ilana Löwy, elaboramos trabalho nessa mesma linha. Nosso estudo buscou traçar um perfil da utilização da colposcopia e da citologia pela medicina brasileira, discutindo como a longa persistência temporal do modelo de prevenção da doença com base no uso extensivo da colposcopia, aqui observado, se relacionou com a peculiaridade do modelo de saúde pública e do conhecimento médico existente no país. Durante o período em que o câncer de colo do útero esteve voltado para a medicina privada e para as ações filantrópicas de pouco alcance, a ampla utilização da colposcopia foi uma forma adequada para sua prevenção; quando a doença passou a ser caracterizada como um problema de saúde pública e um signo de fragilidade do sistema de saúde, as ações baseadas na citologia esfoliativa, que tinham alcance populacional muito mais amplo, passaram a ser a base do seu controle (Teixeira, Löwy, 2011).
Fruto de uma apresentação no seminário Saúde Internacional/Saúde Global: perspectivas históricas da América Latina e do Caribe (28 e 29 junho de 2012), o artigo (Teixeira, Löwy, 2011) traça um amplo painel sobre a trajetória do câncer de colo do útero no Brasil, discutindo as especificidades das ações para seu controle no país. Temos como premissa a noção de que as diferentes formas de desenvolvimento técnico-científico e seus resultados no campo das ações médicas e das políticas de saúde que ocorrem em cada período e contexto local são formatados por alternativas possíveis, relacionadas com as diferentes configurações socioeconômicas, as formas de circulação de poderes entre os atores e as distintas maneiras de organização científica e profissional (Latour, 2012). Acreditamos que a análise dessa multiplicidade de variáveis em seu contínuo temporal - aspecto possibilitado pela perspectiva que o olhar histórico oferece - possa enriquecer o conjunto de estudos sobre o tema e jogar um pouco de luz sobre as ações para o controle da doença hoje existentes.
O câncer de colo do útero foi, por muito tempo, doença pouco conhecida entre os médicos brasileiros. Entre meados do século XIX e início do XX, os poucos trabalhos sobre o tema, publicados nas revistas médicas, versavam sobre as possibilidades de diagnóstico da doença, as técnicas cirúrgicas adequadas à ablação do útero e às terapias com substâncias abrasivas para cauterizar o tumor (Gurgel, 1903). Nas duas décadas seguintes, a partir do desenvolvimento da radioterapia e das técnicas de histerectomia radical, os médicos começaram a dar maior atenção ao problema, dividindo-se entre os que postulavam como tratamento a utilização de uma dessas técnicas, a combinação das duas, ou mesmo a utilização de substâncias radioativas, como o mesotório.3
Independentemente da terapia utilizada, a percentagem de cura da doença era ínfima, se resumindo aos casos de tumores muito pequenos; os demais, por haverem invadido outros órgãos e tecidos, eram, em regra, incuráveis. No período em questão, o atendimento médico à população era feito por um pequeno número de instituições filantrópicas - como as santas casas de misericórdia - e mutualistas ou por médicos privados e clínicas que atendiam às camadas mais abastadas. Os serviços públicos de saúde se resumiam a ações contra epidemias e à normatização da vida urbana, não tendo as doenças crônico-degenerativas em sua agenda. Nesse contexto, a maioria da população feminina brasileira do período tinha pouco ou nenhum acesso a médicos, sendo vitimada pela doença, sem mesmo saber de que pereciam, ou a forma adequada de se tratar (Teixeira, 2010).
Nas primeiras décadas do século XX, as discussões médicas sobre o câncer de colo se ampliaram no âmbito da intensificação das preocupações mais gerais sobre o câncer.4 Naquele momento, os médicos postulavam que, em virtude da inexistência de uma terapêutica eficaz, a melhor forma de controlá-lo era o diagnóstico precoce, que no seu entender permitiria a descoberta de casos iniciais possíveis de ser tratados por radioterapia ou cirurgia (Teixeira, Porto, Noronha, 2012). Os poucos conhecimentos sobre a evolução da doença faziam com que os especialistas inicialmente pensassem que a busca de ajuda médica, quando do surgimento dos primeiros sintomas - sangramento anormal, dores etc. -, fosse suficiente para deter seu desenvolvimento. Ainda não havia a percepção de que mesmo as mulheres que procuravam rapidamente os médicos, por ocasião do aparecimento dos primeiros sintomas, já podiam padecer de um câncer em estado avançado e por isso fora de possibilidade terapêutica (Löwy, 2011).
Uma comunicação apresentada à Sociedade Brasileira de Ginecologia em 1938 retrata a permanência dessa forma de pensar. Seu autor, Nabuco de Gouveia, afirmava que sua experiência em centros científicos americanos e europeus mostrava a impossibilidade de sucesso no tratamento da doença já instalada. A fim de contornar essa dificuldade, os médicos deveriam conscientizar as mulheres do importante papel que deveriam desempenhar no controle da doença, uma vez que apenas elas poderiam perceber os primeiros sintomas do câncer inicial e procurar o médico. Para isso, seria importante que fossem devidamente instruídas no sentido de identificar as primeiras manifestações da doença e saber a importância do tratamento em seu início. Nabuco indicava os esforços que vinham sendo feitos sistematicamente em países europeus e nos EUA com esse propósito.5
Muito antes disso, no início da década de 1920, as pesquisas no campo da ginecologia, realizadas em centros europeus e norte-americanos, começaram a indicar caminhos para o controle do câncer de colo. Em 1924, o ginecologista alemão Hans Hinselmann desenvolveu um tipo de lupa binocular e adaptou-a para a observação do colo do útero. O aparelho, então chamado colposcópio, facilitava o diagnóstico das anomalias celulares na cérvice e de outras patologias ginecológicas. Em 1933, um ginecologista austríaco, Walter Schiller, descobriu que a coloração do colo do útero com iodo diluído (Lugol) facilitava a observação das alterações cervicais, uma vez que as regiões alteradas não absorviam a coloração. A combinação desses dois métodos - colposcopia e coloração de Lugol, quando utilizada por um técnico bem experimentado - permitia a verificação de lesões precursoras e de pequenas lesões malignas possíveis de ser cauterizadas (Löwy, 2011). Na década de 1930, tais métodos foram utilizados na Alemanha, Áustria e Suíça, mas não foram difundidos fora desses países, com importante exceção para a América Latina, onde aportou a partir da influência científica alemã ainda no final da década de 1930.6
No mesmo período, com um aporte diferenciado de pesquisa, o médico grego, radicado nos EUA, George Papanicolaou descobriu que o exame do esfregaço retirado do colo do útero de mulheres conseguia detectar a presença de lesões que poderiam se transformar em formações cancerosas. Em 1941, em parceria com o patologista Herbert Traut, ele publicou seu primeiro trabalho sobre a técnica de diagnóstico citológico, que passou a ser conhecida pelo seu nome (Papanicolaou, Traut, 1941). A observação de anomalias pré-cancerosas pelo teste Papanicolaou deveria ser completada com exames mais específicos - como a colposcopia e a biópsia dirigida -, que confirmavam a gravidade do problema. Apesar das dificuldades técnicas iniciais, o trabalho de Papanicolaou e Traut foi rapidamente difundido pela comunidade médica como ferramenta central na prevenção da doença, caracterizando-se como método de baixo custo e não invasivo para a detecção de anomalias pré-cancerosas em mulheres (Casper, Clarke, 1998). Em grande parte do mundo ocidental, a tríade citologia, colposcopia e biópsia (nessa ordem) caracterizou o modelo de prevenção do câncer de colo do útero a partir da década de 1940. Na década seguinte, a difusão dessa técnica possibilitaria o surgimento das primeiras campanhas de rastreamento populacional da doença, mais tarde transformadas em programas nacionais em diversos países europeus (Löwy, 2011).
Os primeiros estudos brasileiros no campo de citologia e de colposcopia direcionados à prevenção do câncer de colo começaram a se desenvolver em instituições universitárias de pesquisa, no final da década de 1930, tendo como pano de fundo o processo de renovação da ginecologia. Em 1936, fora criada uma cátedra para a disciplina, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, emancipando-a da cirurgia, disciplina à qual estava até então atrelada. No concurso para a sua direção foi vencedor o médico Arnaldo de Moraes, numa prova que consistiu na verificação de lesões cervicais a partir da observação ao colposcópio (Teixeira, Löwy, 2011; Lana, 2012). Moraes era ginecologista de grande reconhecimento; se especializara na Johns Hopkins University, com bolsa da Fundação Rockefeller, em 1927, e trabalhara com Hinselmann na Alemanha por algum tempo. Nesse posto, além de acumular experiência nas técnicas de colposcopia, granjeou grande prestígio profissional e fortaleceu seus laços científicos com a ciência alemã.7 No mesmo ano de seu ingresso na faculdade, Moraes fundou os Anais Brasileiros de Ginecologia e a Sociedade Brasileira de Ginecologia.8
O primeiro empreendimento de Moraes na Faculdade de Medicina foi a organização de uma nova clínica para sua cátedra. Ela foi pensada como instituição de ponta, para atrair pesquisadores interessados em novas técnicas diagnósticas que vinham sendo desenvolvidas fora do Brasil.9 Um dos principais campos de trabalho da clínica seria o câncer de colo do útero. Com o intuito de estudá-lo, ainda em 1939, chegava ao Instituto o ginecologista João Paulo Rieper, que até então trabalhava na Clínica Ginecológica da Universidade de Berlim e também havia estudado colposcopia com Hinselmann. Rieper foi recrutado por Moraes para introduzir a nova técnica de diagnóstico na clínica; trazia consigo um colposcópio, a prática de observação da cérvice com o instrumento e o conhecimento sobre a complexa classificação das anomalias do colo elaboradas por Hinselmann (Teixeira, Löwy, 2011).
Em janeiro de 1941, Rieper publicava seu primeiro artigo afirmando o valor do uso da colposcopia para a descoberta precoce de cânceres cervicais. Em suas conclusões ele enunciava:
É necessária uma campanha educacional do povo e dos médicos, o emprego sistemático da colposcopia de Hinselmann e da prova de Schiller, a instalação de maior número de preventórios especiais facilmente acessíveis e gratuitos e, finalmente, enfermeiras visitadoras que garantam um controle constante das doentes (Rieper, Sthel Filho, 1941, p.77).
Em 1942, Rieper publicou tese sobre os usos da colposcopia no diagnóstico de doenças ginecológicas. No mesmo ano, Antonio Vespasiano Ramos (1942), outro assistente da Clínica Ginecológica da Faculdade de Medicina, defendeu tese sobre o uso do exame de Papanicolaou para diagnóstico precoce de neoplasias malignas no colo do útero. Ramos aplicou o método descrito um ano antes por Papanicolaou e Traut (Papanicolaou, Traut, 1941). A reunião de especialistas nessas diferentes técnicas foi determinante na formação do perfil de atuação da instituição.
A clínica de ginecologia se expandiu rapidamente, transformando-se num centro de pesquisas e ambulatório de atendimento ao público. Em 1947, ela foi oficializada como Instituto de Ginecologia da então Faculdade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para fortalecer os estudos sobre o câncer de colo, Moraes e seus colaboradores criaram no ano seguinte o Ambulatório Preventivo do Câncer, que, além das pesquisas, atuava intensamente no atendimento a mulheres saudáveis ou com suspeita da doença. Diferentemente das instituições americanas e europeias, que baseavam a prevenção da doença na utilização da citologia ou da colposcopia, o ambulatório tinha no uso combinado dessas duas técnicas o modelo de atuação para a detecção da doença. O "modelo triplo" se caracterizava pela utilização da colposcopia e da citologia em todos os exames preventivos; se, no exame colposcópico, o ginecologista observasse lesões suspeitas, deveria também fazer uma biópsia dessas lesões (Teixeira, Löwy, 2011). Moraes e seus assistentes sustentavam que a combinação sistemática de colposcopia, citologia e biópsia no ambulatório aumentava muito a eficácia da detecção de lesões cervicais na medida em que cada técnica possibilitava a observação de diferentes atipias nas células do colo (Moraes, 1948).
O Instituto de Ginecologia (IG) da UFRJ foi protagonista na difusão do modelo de prevenção baseado na utilização da colposcopia como primeiro exame e a citologia como exame complementar (Teixeira, Löwy, 2011). Outras instituições, como o Posto de Ginecologia da Cruz Vermelha de Belo Horizonte, criado em 1944, o Centro de Triagem de Câncer de Colo do Útero, do Instituto do Câncer (Rio de Janeiro, 1952) e o Ambulatório de Ginecologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (1950), seguiriam a mesma diretriz. A difusão do modelo triplo se relacionou com a forte atuação dos pesquisadores do IG na institucionali-zação da citologia e da colposcopia, materializada no incentivo à vinda do próprio Hinselmann ao país e no envio de seus pesquisadores para diversos centros, com o objetivo de formar técnicos em colposcopia e expandir a especialidade (Teixeira, Löwy, 2011).
Nos anos 1950, o grupo de ginecologistas precursor da implantação da colposcopia e da citologia no país também atuou fortemente para a consolidação de seu campo profissional, se mostrando bastante ativo na publicação de artigos e realização de encontros técnicos.10 Em 1956, o ginecologista Arnaldo de Moraes, que dirigia o Instituto de Ginecologia da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e a médica Clarice do Amaral Ferreira, que vinha elaborando trabalhos sobre citologia nesse Instituto, fundaram a Sociedade Brasileira de Citologia (SBC). Dois anos depois, a SBC promovia o primeiro Simpósio Brasileiro de Citologia. Nesse mesmo ano surgiu a Sociedade Brasileira de Colposcopia, liderada por Clóvis Salgado e Arnaldo de Moraes. Ambas foram fundamentais nos primeiros passos da institucionalização das práticas de prevenção ao câncer do colo do útero no país. A utilização do binômio colposcopia-citologia para a descoberta de alterações cervicais malignas passava a ser consenso entre os ginecologistas. Muitos deles viam no teste Papanicolaou um exame coadjuvante, a ser utilizado quando da observação de alterações no exame colposcópico (Teixeira, Löwy, 2011).
Nos anos 1950, a detecção do câncer de colo do útero era atividade realizada em gabinetes ginecológicos de universidades, em instituições locais de atendimento público e em consultórios ginecológicos privados ou conveniados com serviços de saúde dos então existentes institutos de pensão, bem como em hospitais e ambulatórios públicos e filantrópicos patrocinados por verbas do Serviço Nacional do Câncer.11 Esse modelo de atenção consistia principalmente na avaliação oportunística de pacientes que iam aos consultórios por motivos diversos e também se submetiam aos exames para detecção de anomalias cervicais. Em 1957 existiam dez ambulatórios preventivos no Rio de Janeiro (Coutinho, 1957). Nas capitais dos estados mais desenvolvidos, como São Paulo, Bahia e Minas Gerais, também existiam esses serviços, muitos deles contando com verbas do Ministério da Saúde, repassadas pelo Serviço Nacional de Câncer. No entanto, o raio de ação dessas iniciativas por muito tempo teve curto alcance. Segundo a estimativa de Rieper, Maldonado e Leite (1977), em meados da década de 1970 somente 11% das mulheres do Rio de Janeiro tinham acesso a serviços de prevenção de tumores do colo do útero.
Para ampliar a cobertura da prevenção, os ginecologistas identificados com a colposcopia defendiam ampliação da formação de médicos especializados em colposcopia. O objetivo era transformar cada posto ginecológico num centro médico especializado para a detecção da doença (Salgado, Rieper, 1970). Esse modelo de controle jamais se efetivaria, pois, à medida que a busca de ampliação da cobertura se intensificava, o uso intensivo da colposcopia como primeiro exame ia perdendo força frente ao exame Papanicolaou, que podia ser feito de forma mais rápida e com menor custo. Sem a necessidade de médicos especialistas ou aparelhagem de precisão, de alto custo, essa técnica permitia o acompanhamento de maior número de mulheres e facilitava a criação de postos volantes e campanhas pontuais de prevenção.12
No início dos anos 1960, começam a surgir algumas campanhas de detecção de câncer de colo do útero, baseadas na utilização do exame Papanicolaou em grande escala. Agora não mais se tratava de efetuar o exame nas mulheres que frequentavam os postos por outros problemas. O objetivo era levar mulheres saudáveis aos postos para fazer o exame, ou mesmo levar o exame até elas. No Rio de Janeiro, a Fundação das Pioneiras Sociais havia inaugurado, em 1957, o Centro de Pesquisas Luiza Gomes de Lemos, direcionado a estudos no campo da ginecologia.13 Nesse instituto foi instalado um serviço ambulatorial de prevenção ao câncer de colo, que passou a organizar campanhas volantes de prevenção da doença, a partir de uma frota de unidades móveis de saúde que mantinha em atuação no Rio de Janeiro. As Pioneiras Sociais tiveram ação de destaque no controle do câncer, pois, além de elaborarem campanhas em diversas áreas, em parceria com outras instituições, se dedicaram à formação de pessoal técnico para viabilizar essas iniciativas. Sua escola de formação de citotécnicos, criada em 1968, além do pioneirismo, serviu de modelo para a formação desses profissionais no país (Teixeira, Porto, Souza, 2012; Temperini, 2012).
Na Bahia, o Hospital Aristides Maltez, da Liga Baiana de Combate ao Câncer, também foi profícuo na elaboração de campanhas contra o câncer de colo. Inicialmente sua atuação se deu nas mesmas bases de outros ambulatórios já observados, incluindo o uso da colposcopia como exame inicial para a identificação das lesões. A busca de ampliação do seu campo de atuação fez com que, a partir de 1955, o hospital criasse postos provisórios para o exame de mulheres nas cidades do interior do estado e optasse pela utilização do exame Papanicolaou como primeira medida, sendo a colposcopia empregada para dirimir as dúvidas. Os exames eram efetuados nos postos regionais e lidos na sede do hospital, em Salvador. A partir de meados da década de 1960, a atuação externa do Aristides Maltez se ampliou com o estabelecimento de uma rede de postos de coleta de exames nos municípios do Recôncavo Baiano. Esses postos tinham atuação intermitente, elaborando ações pontuais de prevenção à doença (Lana, 2012, p.213).
Durante a década de 1960 e início da seguinte, as ações de prevenção ao câncer de colo continuaram a se ampliar. Serviços de prevenção em hospitais públicos, universidades, secretarias de saúde, ambulatórios preventivos patrocinados por ligas de combate à doença e algumas campanhas começam a fazer parte do cenário do controle da doença. Por seu turno, os ginecologistas e cancerologistas, cada vez mais, passavam a ver o câncer de colo como um problema de saúde pública, postulando a ampliação das ações para seu controle, em especial nas regiões interioranas do país.
Em meados da década de 1970, a utilização da citologia esfoliativa como exame inicial para a detecção do câncer de colo do útero já era consensual para a comunidade médica. A estabilização da técnica em nível internacional, a possibilidade de ampliação da cobertura, devido à maior rapidez do exame, e o bom andamento dos programas que surgiam em diversos estados impulsionavam a disseminação do exame Papanicolaou. O interesse médico na intensificação da prevenção à doença pela ampliação da utilização do Papanicolaou era tão forte que, entre 1970 e 1973, ginecologistas do Instituto Nacional de Câncer (Inca), com apoio de ligas de combate à doença e do próprio Serviço Nacional de Câncer, elaboram um projeto tentando tornar obrigatório o exame Papanicolaou para mulheres acima dos 23 anos de idade.14 Embora o projeto não tenha chegado a se viabilizar, a proposição em si mostra o apelo que a prevenção à doença tinha alcançado, pois até aquele momento a obrigatoriedade de intervenções médicas preventivas se restringia a doenças transmissíveis. Quando ginecologistas identificados com esse apelo alcançaram importantes postos da saúde pública, as ações direcionadas ao câncer de colo do útero passaram a ter centralidade no campo do controle do câncer.
No início da década de 1970, as transformações no campo da saúde internacional apontavam para a maior valorização da prevenção e da atenção primária, em especial nos países com menor desenvolvimento. Na América Latina, essa diretriz era capitaneada pela Organização Pan-americana de Saúde (Opas) e se somava à valorização do planejamento das ações de saúde, bem como ao combate às doenças da pobreza, como as transmissíveis e evitáveis.15 No âmbito do pensamento médico brasileiro, tanto os ideais reformistas dos sanitaristas, que décadas depois protagonizariam a reforma sanitária, como o pensamento dos grupos que coordenavam as políticas do Ministério da Saúde convergiam para a ampliação da cobertura das ações de saúde das populações desassistidas e para a ampliação de ações básicas de saúde.16 Nesse contexto, o câncer de colo se transformava num objeto adequado a maior intervenção da saúde pública, passando a integrar a agenda dos governos federais e locais, além de instituições filantrópicas, em campanhas de rastreamento.
Os primeiros programas de rastreamento populacional do câncer de colo do útero haviam surgido nos EUA e na Europa na década de 1950 (Löwy, 2010). Nos anos 1960, a Opas passou a ver a doença como um problema de saúde pública grave, mas passível de controle nos países da América Latina, propondo, para tanto, a criação de campanhas de rastreamento. Essa posição vinha ao encontro dos interesses de especialistas brasileiros, que viam nas campanhas de mais longo alcance a forma adequada de controle da doença.
Como vimos, nesse período foram encetadas diversas campanhas de prevenção pelo país. Entre elas teve destaque o Programa de Controle de Câncer do Colo do Útero de Campinas, iniciado, ainda em 1965, no Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Estadual de Campinas, sob a liderança do médico José Aristodemo Pinotti. Pinotti havia se especializado em ginecologia na Europa e tinha especial apreço pelas ações de saúde pública direcionadas à saúde das mulheres. Com o auxílio técnico da Opas, ele implementou programa que visava ser solução de caráter permanente para a prevenção da doença na região de Campinas (Pinotti, Zeferino, 1987).
O programa utilizava Papanicolaou como primeiro exame para todas as mulheres aten-didas e era inovador em diversos aspectos. Para dinamizar a coleta de material, empregava profissionais de saúde sem formação médica. Os exames eram realizados em diversas unidades, como postos municipais e estaduais de saúde, permitindo o atendimento a um número maior de mulheres. A leitura das lâminas foi centralizada em um laboratório criado especialmente para essa função. O programa também investiu na formação de citotécnicos para a leitura das lâminas. Trabalhando em colaboração com secretarias de saúde municipais e estadual, hospitais e outras instituições médicas filantrópicas, o programa desenvolveu metodologia inovadora para a prevenção do câncer de colo do útero (Pinotti, Zeferino, 1987).
Outras iniciativas paulistas seguiram o caminho traçado pelo programa de Campinas. Em 1967, foi criado, no Hospital filantrópico São Camilo, o Instituto São Camilo de Prevenção e Tratamento do Câncer Ginecológico. Esse centro era coordenado pelo ginecologista Sampaio de Góes, que, anos depois, coordenaria a Divisão de Controle do Câncer do Ministério da Saúde, e funcionava com fundos filantrópicos e do estado de São Paulo.17 Em 1968, também em associação com o governo estadual, Góes criou o Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas em Obstetrícia e Ginecologia (Ibepog). O Instituto era uma empresa privada que igualmente auferia verbas do governo paulista, caracterizando-se como o centro de estudos e formulação de ações em relação ao câncer de colo no estado de São Paulo.
A partir da década de 1970, o Ibepog organizaria diversas ações para o controle do câncer de colo no estado, e ainda em 1970 seria iniciada uma campanha contra a doença na cidade de São Caetano do Sul. Partindo do mesmo paradigma que baseou o programa de Campinas, ela também utilizava pessoal paramédico para a coleta e garantia o tratamento hospitalar nos casos em que houvesse necessidade. Em seus primeiros três anos, o programa de São Caetano atendeu a 51.227 mulheres a partir de ações de propaganda e busca ativa. Os exames positivos eram investigados num centro médico criado pela prefeitura, e os casos clínicos, enviados para hospitais de câncer do estado (Capucci, 2003).
Em 1975, o estado de São Paulo implantou um programa estadual de prevenção ao câncer de colo do útero fundamentado em suas experiências anteriores na cidade e no trabalho efetuado por Pinotti em Campinas. O programa tinha caráter permanente e foi organizado pela Fundação Centro de Pesquisa em Oncologia (FCPO) - criada por Sampaio de Góes, em 1974, e por ele dirigida. O programa integrava os postos de saúde do estado e dos municípios, alguns consultórios privados e até algumas unidades móveis (ônibus e vagões de trens) que serviam como base para a coleta de exames. A leitura das lâminas era efetuada na FCPO, e os tratamentos e as cirurgias, realizados no Instituto Brasileiro de Controle do Câncer, hospital privado criado por Góes, que funcionava com financiamento do governo do estado (Capucci, 2003). Posteriormente, um novo programa foi instituído para atender à zona leste da capital paulista (Goes Júnior et al., 1979).
Em 1972, Sampaio de Góes tornou-se diretor da Divisão Nacional do Câncer, do Ministério da Saúde. Na sua gestão foi criado o Programa Nacional de Controle do Câncer (PNCC), que visava ampliar de forma planejada as ações contra o câncer e teve seu orçamento incluído no âmbito do Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento.18 Com base em mapeamento das instalações e nos equipamentos voltados para o tratamento de câncer no país, foi elaborado um plano para equipar as unidades públicas e privadas. O programa dava especial atenção ao desenvolvimento de ações de prevenção ao câncer de colo do útero. Contando com recursos oriundos de um convênio com a Opas, ele financiou cursos para a formação de citotécnicos, incentivou a normatização dos registros e o auxílio a campanhas de rastreamento efetuadas por secretarias de saúde dos estados, hospitais de câncer e instituições civis (Lago, 2004). O PNCC também instituiu o reembolso de todos os procedimentos relacionados com o câncer efetuados pelos hospitais e laboratórios privados. Tal medida visava potencializar o interesse dos agentes da medicina privada nas ações preventivas contra a doença e, segundo alguns técnicos da área, foi de grande importância na difusão do Papanicolaou.19
Com o PNCC, o câncer de colo entrava na agenda das políticas do Ministério da Saúde; em 1975, ingressaria no âmbito do Ministério da Previdência Social, com a criação do Programa de Controle do Câncer (PCC), que vigorou entre 1976 e 1980. O PCC buscava articular as ações de prevenção e tratamento da medicina previdenciária com a rede de ambulatórios e hospitais da saúde pública e teve como principal legado a universalização formal dos procedimentos relativos ao controle do câncer em âmbito da Previdência Social, o que, em tese, daria a qualquer cidadão o direito ao tratamento gratuito da doença (Teixeira, Porto, Noronha, 2012).
No contexto da crise econômica que se abateu sobre o país no final da década de 1970 e das frequentes mudanças de diretrizes na política de saúde, o câncer de colo perdeu sua centralidade na agenda da política de saúde nacional. A não inclusão do PNCC no Terceiro Plano Nacional de Desenvolvimento (Terceiro PND, 1980) fez com que findassem os recursos específicos para o controle do câncer, impedindo o desenvolvimento de diversas campanhas e programas. A doença voltou a ser vista como rotina no âmbito da política dos Ministérios da Saúde e da Previdência Social. Os principais legados do PNCC e do PCC foram o desenvolvimento da noção de planejamento integrado como forma de controle da doença e a busca de ampliação da cobertura das ações contra a doença (Teixeira, Porto, Noronha, 2012). Em que pese sua importância institucional, em meados da década de 1980, o controle do câncer de colo do útero no país ainda era bastante incipiente, apresentando resultados pouco promissores. Pesquisa realizada pelo Instituto Nacional de Câncer, durante o ano de 1984, mostrou que, naquele momento, apenas 7% das unidades básicas das secretarias de saúde dos estados efetuavam testes citológicos. No âmbito da medicina previdenciária, não havia informações sobre a realização desses exames, sendo que um cálculo com base nas consultas ginecológicas realizadas permitia avaliar que menos de 16% das mulheres brasileiras, acima dos 15 anos, haviam se submetido ao exame (Aquino et al., 1986).
A partir da segunda metade da década de 1970, o câncer de colo de útero passou a ser caracterizado como problema de saúde pública decorrente das desigualdades de nossa organização social. Os especialistas brasileiros cada vez mais relacionavam a maior prevalência de câncer cervical com o início precoce da vida sexual, existência de múltiplos parceiros sexuais, gravidez precoce, falta de higiene e nutrição inadequada (Pinotti, 1976; Giordano, Casanova, 1976; Martins et al., 1976). No final da década, os trabalhos mostrando a associação entre a infecção por HPV e o câncer de colo criam a noção do câncer de colo como doença de transmissão sexual.20 A descoberta do papel do HPV no surgimento do câncer de colo reforçava a relação da doença com as condições de vida dos grupos sociais menos favorecidos e servia de base para a postulação de ações de maior amplitude contra a doença.
No campo das políticas públicas, a ampliação das ações estatais de prevenção ao câncer de colo se relacionou ao fortalecimento dos movimentos de mulheres por melhores condições de saúde. Tais demandas ecoaram mais fortemente no contexto de redemocratização do país, possibilitando o surgimento de um Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Paism), no âmbito do Ministério da Saúde, em 1984.21 A criação do Paism se relacionava com as preocupações governamentais referentes ao controle da natalidade, mas, em virtude da atuação dos movimentos sociais, ganhou amplitude, inserindo em seu escopo ações direcionadas ao planejamento familiar, ao melhor atendimento das mulheres na rede pública e ao controle das doenças mais prevalentes nesse grupo (Osis, 1998). Um dos alvos dessas ações era o câncer de colo de útero que, a partir do surgimento do Paism, passou a ter maior atenção do Ministério da Saúde, com a intensificação das ações educativas e iniciativas de ampliação da oferta de exames Papanicolaou (Pinho, 2003).
Apesar dessas iniciativas, somente com o novo texto constitucional de 1988 e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), as políticas direcionadas ao controle do câncer de colo tomariam novo rumo. Ao consagrar a saúde como direito do cidadão e dever do Estado, unificar os setores de saúde pública e medicina previdenciária, bem como valorizar as ações preventivas, o Ministério da Saúde obteve base institucional para uma atuação mais abrangente na área da saúde pública. No campo específico do controle do câncer de colo, a grande mudança institucional seria a criação de um programa nacional de screening de câncer de colo.
Em meados da década de 1990, a questão da saúde da mulher estava em evidência. Em outubro de 1995 a sexta Conferência Internacional da Mulher reuniu milhares de mulheres de todo o mundo para discutir questões relacionadas principalmente com as condições das mulheres mais pobres. A participação brasileira foi cuidadosamente organizada por instituições civis e governamentais, contando com a ajuda de mais de oitocentos grupos de mulheres. A conferência contou com um número acima de trezentas mulheres brasileiras. A delegação oficial, composta por 25 membros e presidida pela primeira-dama do país à época, Ruth Cardoso, cumprindo a agenda definida junto aos movimentos sociais, se responsabilizou por tomar medidas que diminuíssem os alarmantes índices de mortes por câncer de colo do útero então existentes (Espírito Santo, 1 jun. 2012; Thuler, 9 out. 2010).
A essa altura, em virtude da reforma sanitária, o Inca tinha se transformado no órgão de referência em oncologia para o SUS. Havia incorporado o programa nacional de oncologia (Pro-onco) e atuava fortemente nas áreas de informação, educação e prevenção dos diversos tipos de câncer, trabalhando em parceria com as secretarias estaduais e municipais de saúde, os serviços e hospitais de câncer, as universidades e setores da sociedade civil (Abreu, 1997). Para dar andamento à diretriz brasileira em Pequim, em 1997, o Inca deu início a um projeto de rastreamento de câncer cervical que funcionaria como um projeto-piloto para a criação de um programa nacional de controle da doença. Então denominado Viva Mulher, o projeto foi implantado em seis localidades: Belém (Pará); Curitiba (Paraná); Brasília (nas localidades de Tabatinga, Ceilândia e Samambaia; e Distrito Federal); Recife (Pernambuco); na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro); e no estado de Sergipe. O objetivo era ampliar o acesso ao exame citopatológico, priorizando as mulheres que estivessem sob maior risco e garantindo o acolhimento, assim como o tratamento adequado da doença e de lesões precursoras em 100% dos casos (Brasil, 2011).
Em agosto de 1998, o Ministério da Saúde resolveu se incumbir da execução do projeto, transformando-o em uma campanha de amplitude nacional, sob a coordenação da Secretaria de Políticas Públicas do Ministério da Saúde. A campanha tinha como metas: realizar a coleta de material para exame citológico em 70% das mulheres com idade entre 35 e 49 anos e que nunca tivessem feito o exame; garantir que todos os resultados desses exames fossem entregues às mulheres em mais ou menos um mês; e acompanhar todas as mulheres com citologia positiva até que efetuassem o tratamento e obtivessem a alta (Lago, 2004). No entanto, problemas de diversas ordens impediram que esses objetivos fossem alcançados. O despreparo do sistema de saúde para lidar com o grande número de mulheres que atenderam à solicitação para o exame, a ineficiência do sistema eletrônico de informação, a incapacidade de instituições e profissionais para a leitura das lâminas e as dificuldades de seguimento das mulheres com citologia positiva foram os principais problemas observados (Thuler, 9 out. 2010).
A partir do mês de abril de 1999, o Viva Mulher voltou a ser conduzido pelo Inca, que elaborou mais uma grande campanha em 2002, tendo como alvo prioritário as mulheres com idade entre 35 e 49 anos que ainda não haviam feito o exame preventivo ou que estavam sem fazê-lo havia mais de três anos. Segundo o Instituto, nessa segunda campanha, foram examinados mais de 3,8 milhões de mulheres.22 Com base em uma avaliação dos resultados dessas campanhas, os técnicos do Inca concluíram que a política de controle do câncer cervical deveria se pautar na oferta de exames citológicos de rotina e transformaram o Viva Mulher em um programa permanente de rastreamento do câncer de colo do útero em âmbito nacional (Brasil, 2002).
O programa Viva Mulher continuou a funcionar, direcionando suas prioridades ao aperfeiçoamento da rede de atenção oncológica, por meio das ações de assessoria técnica aos estados, da modernização tecnológica do sistema de informação e da revisão de indicadores para monitoramento das ações do programa (Brasil, 2002). A despeito dos problemas verificados em suas campanhas iniciais e da inexistência de dados epidemiológicos que comprovem sua eficácia, elas tiveram o mérito de ampliar os níveis de utilização do Papanicolaou, que registrou crescimento de 81% no número anual de exames apresentados ao SUS entre 1995 e 2003 (Lago, 2004).
Como afirmamos no início do texto, apesar dos avanços na difusão de medidas preven-tivas, o câncer de colo do útero permanece um sério problema de saúde no Brasil. A persistência da doença, em especial nas regiões mais pobres do país, revela - além da óbvia dificuldade relacionada com as condições de vida - a falta de organização adequada do sistema de saúde e suas limitações quanto às disparidades regionais. Mais do que isso, reflete o processo histórico da lenta e diferenciada incorporação de segmentos populacionais às preocupações da saúde pública e a relação desse processo com o desenvolvimento técnico-científico.
As primeiras ações de saúde direcionadas à prevenção do câncer de colo se relacionaram com o desenvolvimento das técnicas de prevenção da doença e se dirigiam às poucas mulheres que frequentavam consultórios privados ou as que, por motivos de saúde diversos, faziam uso dos serviços ginecológicos de âmbito universitário ou filantrópico. A estandardização da técnica de prevenção em larga escala e a crescente preocupação com o câncer de colo no contexto da saúde internacional - a partir das ações de agências como a Opas - possibilitaram o estabelecimento das primeiras campanhas. A redefinição do câncer de colo como doença da pobreza e, em seguida, como doença sexualmente transmissível, diante da descoberta do papel do HPV na sua transmissão, no final da década de 1970, teve grande importância no processo de montagem de uma política nacional de controle da doença. Num período em que as questões relativas à saúde da mulher e, em especial, às dificuldades das mulheres mais pobres vinham à luz, com a ação de movimentos sociais organizados, que se faziam ouvir na agenda da saúde internacional, o problema do câncer ficou mais visível. A unificação do sistema de saúde, com a reforma sanitária - ocorrida no final dos anos 1980 -, possibilitou a criação de uma ampla campanha de rastreamento da doença que se transformou em um programa nacional de caráter permanente.
Embora, em diversos países, a organização de programas de rastreamento tenha conseguido baixar os índices do câncer de colo, no Brasil a realidade foi diferente.23 Apesar de o Viva Mulher ter ampliado a utilização do Papanicolaou, as taxas de mortalidade pela doença permanecem próximas às dos anos anteriores ao programa, demonstrando dificuldades suplementares para seu controle.24 Vários aspectos se misturam nesse contexto, sendo a cobertura do exame um elemento central. Essa é bastante heterogênea, sendo que as regiões menos populosas e que concentram áreas com menor organização dos serviços de saúde, como as regiões Norte e Centro-Oeste, apresentam menor cobertura de exames e maiores índices da doença. Além disso, a cobertura do exame alcançava a média de menos de 70% da população feminina em 2003 (Martins, Thuler, Valente, 2005). Esse índice ainda é baixo, visto que os estudos da Organização Mundial da Saúde apontam a necessidade de cobertura em torno de pelo menos 80% da população em risco para impactar os índices de mortalidade pela doença (Martins, Thuler, Valente, 2005).
Além das dificuldades de acesso ao sistema, a situação de baixo índice de desenvolvimento de diversos grupos e locais dificulta a expansão dos exames. As mulheres com pouca escolaridade, baixa renda familiar e as mais jovens são as que menos fazem exames. A falta de conhecimento sobre o exame e a doença e o temor relacionado à dificuldade de tratamento, caso ocorra uma possível descoberta da doença, fazem com que elas muitas vezes passem ao largo das campanhas.25 Outros aspectos, como a própria natureza ginecológica do exame; o pudor frente à possibilidade de ele ser executado por homens; o despreparo dos profissionais de saúde em lidar com as mulheres; o estigma em relação à doença; o fato de que entre seus fatores de risco se encontrem padrões de comportamentos sexuais; e o temor de o exame evidenciar a existência de doenças sexualmente transmissíveis, se relacionam de forma mais geral com as dificuldades na ampliação do uso do Papanicolaou (Cruz, Loureiro, 2008).
Outra dificuldade no controle do câncer de colo no país é a qualidade dos exames. Alguns estudos têm mostrado a dificuldade de avaliação da qualidade dos exames realizados, pela falta de informações sobre os laboratórios privados que prestam serviço ao sistema público de saúde. Soma-se a esse problema a inexistência de legislação específica que garanta a citotécnicos qualificados o monopólio da leitura das lâminas em situações adequadas.26 A não regulamentação do trabalho dos citotécnicos põe em risco a qualidade dos exames realizados no país, possibilitando o surgimento de perigosos falsos negativos, que podem determinar o desenvolvimento da doença em mulheres cobertas pelo sistema.
Esses aspectos traduzem algumas dificuldades do desenvolvimento técnico-científico e das políticas na área de controle do câncer cervical na sociedade brasileira. No entanto, para além dos diversificados padrões socioeconômicos e culturais que dificultam a homogeneização da oferta e aceitação do exame, a observação do perfil do sistema de saúde brasileiro e seu processo histórico de desenvolvimento são importantes para a compreensão de suas dificuldades no controle do câncer. Nesse aspecto a tensão entre o público e o privado mostra-se central. Embora o país, há mais de duas décadas, disponha de um sistema público e universal de saúde, que abriga o programa de controle do câncer cervical em nível nacional, também conta com um potente setor de saúde privada que atende em torno de 25% da população, principalmente por meio de planos privados de saúde. Esses planos cobrem a população de maior poder aquisitivo, são pouco normatizados em suas práticas e determinam diferenciados padrões de atendimentos a seus associados.27
Tal configuração do sistema de saúde faz com que existam dois diferentes regimes de controle do câncer de colo no país. As mulheres mais pobres fazem seus preventivos nos postos da saúde pública que, sob as diretrizes das agências internacionais, têm como padrão a utilização de três exames consecutivos anuais, e em caso de não haver problemas, novos exames a cada três anos, entre as idades de 25 e 64 anos. As mulheres de classe média e alta, com garantia dos planos de saúde ou frequentando médicos particulares, costumam fazer exames preventivos todo ano, independentemente da sucessão de exames negativos. Essa situação gera o paradoxo de mulheres com menos risco de contrair a doença passarem por mais exames que as que estão submetidas a maiores riscos (Teixeira, Löwy, 2011). Além disso, segundo Moraes et al. (2011), as mulheres que contam com planos de saúde, independentemente de sua situação socioeconômica e cultural, têm 26,1% mais chances de realizar exames de Papanicolaou que as mulheres com a cobertura pelo programa do SUS.
Nos últimos anos, a discussão sobre a incorporação da vacina contra o HPV ao grupo de imunizantes distribuídos gratuitamente pela saúde pública moveu um grande número de especialistas. Esse processo também se vinculou a questões relacionadas com a tensão entre público e privado em nosso sistema de saúde. Enquanto os experts discutiam a possibilidade de eficácia da vacina frente às especificidades de nosso contexto social e seus custos para a saúde pública, grupos de pressão faziam lobby para que o Estado incluísse a vacina em sua carta de serviços, visto que nos últimos anos ela passou a ser adquirida a preços altos pelas camadas mais privilegiadas, em clínicas privadas.
Em 2013, o SUS incluiu a vacina contra o HPV em sua cesta de imunizantes (Brasil, 18 nov. 2013), começando a distribuí-la para as meninas brasileiras em março de 2014. Essa medida reaviva as esperanças de mudanças no quadro de controle do câncer de colo do útero no país, pois sua ampla utilização pode reduzir os problemas relacionados com a cobertura e qualidade do exame Papanicolaou. No entanto, os especialistas advertem que somente a criação de um programa de vacinação não garante o controle da doença, pois sua utilização pode restringir-se à cobertura de grupos sob risco mais baixo - dado o fato de as populações sob maior risco muitas vezes viverem em localidades isoladas e em condições de sobrevivência e realidades culturais adversas à aceitação da vacina.28 Também nesse ponto, os resultados práticos de nossa tecnociência estão voltados para a especificidade local de nossa organização social.