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Drogas Anabolizantes e Infarto do Miocárdio - A Propósito de um Caso Clínico

Drogas Anabolizantes e Infarto do Miocárdio - A Propósito de um Caso Clínico

Autores:

Rui Pontes Santos,
Adriana Pereira,
Henrique Guedes,
Carolina Lourenço,
João Azevedo,
Paula Pinto

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170

Arq. Bras. Cardiol. vol.105 no.3 São Paulo set. 2015

https://doi.org/10.5935/abc.20150111

Introdução

Na maioria dos casos de infarto do miocárdio (IM) em indivíduos jovens, os fatores de risco cardiovasculares tradicionais continuam a ter uma importância preponderante. No entanto, nessa idade se devem igualmente ter em consideração outras causas, como ocorre com o abuso de drogas.

Os esteroides anabolizantes são derivados sintéticos da testosterona, muitas vezes utilizados ilicitamente por atletas com o intuito de aumentar o seu desempenho esportivo. Existe uma associação entre a utilização desses agentes e o aumento do risco cardiovascular1. O hormônio do crescimento humano (hGH - Human Growth Hormone) é igualmente utilizado para aumentar o rendimento esportivo, apesar do risco de complicações cardiovasculares2. O clembuterol é um potente β2-agonista que também possui efeitos anabólicos. Atualmente ainda pouco se conhece sobre o seu potencial risco cardiovascular3.

Apesar de terem sido descritos casos de infarto do miocárdio (IM) associado a uso de anabolizantes, não encontramos na literatura relatos da utilização simultânea desses três tipos de medicamentos.

Relato do Caso

Masculino, 25 anos, caucasiano, sem fatores de risco cardiovascular ou outros antecedentes patológicos relevantes conhecidos. Dos seus hábitos se destacavam a prática de culturismo e o consumo regular, nos seis meses anteriores, de esteroides anabolizantes, hGH e clembuterol. O último ciclo, iniciado seis semanas antes do episódio aqui descrito era constituído por: oxandrolona 40 mg/dia (todos os dias); clembuterol 0,08 mg/dia (todos os dias);, mesterolona 50 mg/dia (todos os dias); hGH 10 UI/dia (todos os dias); nandrolona 600 mg/dia (2x/semana); cipionato de testosterona 400 mg/dia (2x/semana); estanozolol 100 mg/dia (3x/semana); drostanolona 200 mg/dia (3x/semana); trembolona 200 mg/dia (3x/semana); propionato de testosterona 100 mg/dia (3x/semana); boldenona 400 mg/dia (2x/semana); e metenolona 200 mg/dia (2x/semana). Negou hábitos tabágicos ou consumo de outras drogas.

Iniciou queixas de dor intensa de localização retrosternal e características opressivas, sem irradiação ou outra sintomatologia acompanhante, que durou cerca de duas horas e que associou a fadiga muscular após um treinamento. Cerca de 24 horas após o episódio inicial, houve recorrência da dor que agravava com a inspiração (diferente da dor inicial), pelo que recorreu ao Serviço de Urgência.

Quando da admissão no Serviço de Urgência, encontrava-se assintomático e o exame objetivo revelou estabilidade hemodinâmica e febre (38,4ºC), não apresentando outras alterações relevantes. O eletrocardiograma (ECG) mostrava ritmo sinusal, 83 b.p.m., com sinais de infarto das paredes inferior e posterior em fase subaguda (Figura 1). Analiticamente apresentava elevação dos marcadores de necrose do miocárdio: CPK de 1987 UI/L (valor de referência (vr) < 172 UI/L); troponina I de 48,97 ng/mL (vr < 0,05 ng/mL) - valor à admissão e que posteriormente apresentou um padrão decrescente; BNP de 115 pg/mL (vr < 100 pg/mL) e PCR de 33,3 mg/L (vr < 7,5 mg/L), com pico máximo no internamento de 204,4 mg/L. O estudo da coagulação era normal. Iniciou dupla antiagregação plaquetar com ácido acetilsalicílico e clopidogrel e anticoagulação com fondaparinux.

Figura 1 ECG na admissão com sinais de infarto das paredes inferior e posterior em fase subaguda. 

Foi admitido na Unidade de Cuidados Intensivos Cardíacos com o diagnóstico de IM com supradesnivelamento do segmento ST de localização posteroinferior, em fase subaguda, em classe I de Killip Kimball, associado a provável pericardite pós-infarto. A avaliação ecocardiográfica revelou hipocinésia dos segmentos médios e basais das paredes inferior, posterior e lateral do ventrículo esquerdo (VE). Destacou-se também a presença de ligeira hipertrofia concêntrica do VE, e a função sistólica global biventricular era conservada.

Cerca de 48 horas após o início dos sintomas realizou angiografia coronariana que mostrou uma imagem filiforme no 1/3 proximal da artéria coronariana direita, sugestiva de trombo intraluminal, que não condicionava estenose significativa (Figura 2). Não revelou alterações sugestivas de doença coronariana epicárdica aterosclerótica. Dado o trombo ser de pequenas dimensões, foi decidido manter a anticoagulação até o final da internação, continuando com a dupla antiagregação em doses de manutenção.

Figura 2 A coronariografia mostrou trombo intraluminal no 1/3 proximal da artéria coronariana direita. 

Ao longo da internação, o paciente apresentou evolução clínica favorável, tendo-se mantido elétrica e hemodinamicamente estável, sem recorrência da dor e com melhora analítica. Teve alta ao oitavo dia de internação, assintomático e medicado com ácido acetilsalicílico (150 mg od), clopidogrel (75 mg od), bisoprolol (5 mg od), ramipril (2,5 mg od) e rosuvastatina (10 mg od).

Iniciou seguimento em consulta de Cardiologia, verificando-se que um ano após a alta hospitalar se mantinha abstinente relativamente a substâncias anabolizantes e assintomático do ponto de vista cardiovascular. O ECG e o ecocardiograma realizados na última consulta mantinham as alterações descritas previamente. Realizou também uma prova de esforço que não mostrou alterações sugestivas de isquemia do miocárdio.

Discussão

Apesar da sua raridade, já foram descritos alguns casos de IM em indivíduos jovens, sem fatores de risco cardiovasculares e que utilizavam esteroides anabolizantes4-7. Ainda que não seja totalmente compreendida a relação causa efeito, foram propostas hipóteses para explicar os seus efeitos adversos cardiovasculares8.

Alguns estudos atribuem um potencial trombótico aos esteroides anabolizantes. Esses parecem estar associados ao aumento da agregação plaquetar, consequência da produção aumentada de tromboxano A2 e da diminuição da produção de prostaciclina. Juntamente com essas alterações parecem existir efeitos na cascata da coagulação, nomeadamente um aumento da atividade da trombina, que também contribuem para um estado de hipercoagulabilidade1. Esses efeitos adversos são exacerbados pela desidratação e pelo estresse catecolaminérgico, que frequentemente ocorrem em associação à prática desportiva8.

Também a hGH foi associada a complicações cardiovasculares. O abuso desse hormônio contribui para um aumento da frequência cardíaca e do débito cardíaco, e consequentemente para hipertrofia ventricular concêntrica e disfunção diastólica, podendo mesmo em determinados doentes promover isquemia/necrose e insuficiência cardíaca com compromisso da função sistólica2.

O clembuterol, quando administrado oralmente, parece ter um potencial anabólico, contribuindo para o aumento da massa muscular3. Apesar de existir pouca informação sobre as potenciais complicações cardíacas, já foram descritos dois casos de IM, em que o clembuterol poderá ter tido um papel fundamental9-10. Especula-se que os seus efeitos cronotrópicos e inotrópicos positivos, assim como a redistribuição da circulação coronariana poderão favorecer a isquemia miocárdica8.

Sendo assim, os autores colocam a hipótese de esse paciente ter tido um IM no contexto do abuso de anabolizantes. Acreditamos, portanto, que se trate de um infarto do tipo 2, em que a formação de um trombo intraluminal se deveu ao estado de hipercoagulabilidade associado a uso de esteroides anabolizantes. Nesse caso é relevante também realçar o possível efeito sinérgico de uso concomitante de hGH e clembuterol. Foi demonstrado que ambos os agentes promovem a isquemia miocárdica, pelo que admitimos que os três fármacos poderão ter sido determinantes para o desfecho final.

Em conclusão, a utilização de substâncias anabolizantes parece ser um fator de risco para o desenvolvimento de síndrome coronariana aguda. Dessa forma, reforça-se a ideia de que é fundamental excluir uma história prévia de consumo de medicamentos ilícitos na presença de um IM, particularmente em doentes com baixo risco cardiovascular.

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