versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.32 no.4 Rio de Janeiro 2016 Epub 10-Maio-2016
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00060015
This is a qualitative study from the perspective of dialectical hermeneutics on healthcare strategies for men in the view of health professionals. The authors drew on 18 semi-structured interviews addressing male sexuality, men's healthcare, participation in prenatal care, and fatherhood. Three thematic lines were established, based on an understanding of the interviews as a whole, independently of both the specific themes mentioned above and the region. The themes provide structure for and are structured by ideas that traverse the various interviews. Themes of male sexuality associated with healthcare and fatherhood further evoke the private dimension, referred to the home's geographic boundaries. These ideas people the cultural repertoire on maleness; the novelty lies in unlinking sexuality from sexual relations and sexual health from transmission and contagion in the interpretation of our material.
Keywords: Men's Health; Sexuality; Paternity; Prenatal Care; Health Personnel
Analizamos, basados en una investigación cualitativa bajo la perspectiva hermenéutica-dialéctica, las estrategias de atención a la salud de los hombres, según la óptica de profesionales de salud. Contamos con un acervo de 18 entrevistas semiestructuradas sobre sexualidad masculina, cuidados de salud masculinos, prenatal y paternidad. Se generaron tres ejes a partir de una comprensión del conjunto de las declaraciones, que permitió identificarlos independientemente de la temática abordada (sexualidad masculina, participación de los hombres durante el periodo prenatal y paternidad) y de la región. Los mismos son de carácter estructurante y están estructurados por ideas que aparecen en las diferentes declaraciones. Los temas de la sexualidad masculina, asociada al cuidado de la salud, y a la paternidad todavía evocan la dimensión privada, referida a los límites de la geografía de la casa. Esas ideas pueblan el repertorio cultural sobre el hombre; la novedad está en desvincular sexualidad de relaciones sexuales, y la salud sexual de la transmisión y contagio en la interpretación de nuestro acervo.
Palabras-clave: Salud del Hombre; Sexualidad; Paternidad; Atención Prenatal; Personal de Salud
Nos anos 70 do século passado, surgiram, nos Estados Unidos da América, os primeiros estudos sobre a temática saúde do homem, que eram voltados principalmente para déficits de saúde 1. Esses estudos foram pouco divulgados talvez porque pudessem ser vistos como um paradoxo: as desvantagens dos homens nos perfis de morbimortalidade em relação às mulheres e o fato de eles deterem mais poder do que elas em todos os níveis de classes sociais 1.
A partir de 1990, a discussão acerca da saúde do homem passou a incorporar, dentre outros aspectos, questões de gênero relacionadas ao ser saudável e ao ser doente em segmentos masculinos 2,3. Em ampla revisão sobre a temática, McKinlay 4 concluiu que as diferenças entre homens e mulheres em termos de morbimortalidade e expectativa de vida poderiam ser explicadas com base em cinco fatores: especificidades biológico-genéticas; diferenças e desigualdades sociais e étnicas; associação entre condutas e distintas expectativas sociais; busca e uso de serviços de saúde e cuidados de profissionais de saúde.
Observamos que vários estudos discutem o pouco uso dos serviços de saúde por parte dos homens, principalmente no âmbito da atenção básica 5,6,7,8,9. No Brasil, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH) 10, em sua fundamentação, dentre outros aspectos, também aponta para essas questões e chama a atenção, de modo especial, para as de gênero que influenciam esse quadro. Knauth et al. 11 concluíram que, em alguns serviços da Atenção Básica, a implantação dessa política era traduzida por ações pontuais e geralmente voltadas para a dimensão assistencial, com pouca articulação com a política em questão. Em outro estudo 12, concluiu-se que, dentre outros aspectos, o não reconhecimento da diversidade de homens, por parte de gestores e profissionais de saúde, dificultava o planejamento de ações para implementar essa política.
Junto a essa discussão, partilhamos da ideia de que os homens também costumam ser invisibilizados nos serviços de saúde 13. Couto et al. 14 observam que essa invisibilidade traduz-se no ocultamento das demandas e necessidades masculinas, numa perspectiva de gênero, por parte da Atenção Primária à Saúde. Com enfoque metodológico diverso, Alves et al. 15 destacam que a equipe da atenção primária em saúde não tem como foco, em geral, a população masculina.
Entendemos que se faz necessário ultrapassar tanto quanto a sua invisibilidade no âmbito da atenção básica, buscando formas de envolver os homens nesses serviços. Nesse sentido, propomos a discussão da assistência pré-natal como um possível espaço para que esses sujeitos não só apoiem as suas companheiras na gravidez e no parto, mas também cuidem de sua saúde e vivenciem a espera de um filho. Na promoção dessa assistência, as temáticas da "saúde sexual" e da "paternidade" podem ser úteis para que sejam desenvolvidas ações de saúde com homens de diferentes perfis.
Certamente, entendemos que a assistência à saúde de homens não deve ficar restrita a essas temáticas, uma vez que nem todos se sentem contemplados nelas, tampouco elas abrangem os diversos momentos da vida masculina. Entretanto, buscamos esse foco temático a fim de explorar uma opção ou uma oportunidade para envolver diferentes perfis de homens em ações em saúde.
Partindo dessa premissa, o nosso objetivo central é analisar as estratégias de atenção à saúde dos homens segundo a ótica de profissionais de saúde. Para que essa análise não se limite à sua dimensão empírica, adotamos como marco referencial-teórico aspectos relacionados à categoria analítica de gênero e suas implicações no campo das ações em saúde. O diálogo analítico com essa categoria se faz, também, pela possibilidade de investimento em seu potencial relacional, de forma que não há como falar de homens sem acionar o lugar que constroem nas relações com as mulheres, nas trocas e intercâmbios de expectativas, marcas de distinção e lugares sociais 16.
Gênero pode ser entendido como "uma construção cultural sobre a organização social da relação entre os sexos, traduzida por dispositivos e ações materiais e simbólicas, físicas e mentais" 17 (p. 64). Em outras palavras, gênero diz respeito a construções sociais de expectativas, definições e papéis para que pessoas sejam consideradas como homens e mulheres 17,18. Sendo assim, pode relacionar-se tanto a uma categoria de diferenciação entre homens e mulheres, como a objetos, comportamentos e eventos relacionados aos universos feminino e masculino 16.
Em outra direção, Butler 19,20 destaca a perspectiva performática do que é ser homem ou mulher, feminino ou masculino. Nesse sentido, o corpo traduz estilos, atos que se cristalizam no tempo e, em geral, reproduz o imperativo heterossexual que limita o gênero e deixa à margem os que não se encaixam no modelo binário feminino-masculino que deveria viver por força do seu sexo.
Acionamos, ainda, a dimensão das trocas simbólicas, de uma economia que envolve gestos, olhares, posturas, maneiras de conviver e relacionar-se com as exigências sobre o que significam os papéis de homens e mulheres e seus comportamentos. Esse universo relacional e simbólico foi analisado à luz da teoria maussiana da dádiva 21 e da discussão sobre sociabilidade em Simmel 22. Ambos os autores comparecem a partir daquilo que o material empírico e as categorias êmicas evocaram: a necessidade de rever posições estanques, de inovar na conquista e no convite para a presença dos homens junto às mulheres nos serviços de saúde. A perspectiva lúdica, as estratégias de troca de bens de cuidado, que incluem palavras, ações de conforto e acolhimento, mudanças no ambiente, estiveram presentes no campo. Ainda que de forma incipiente em face da enorme tarefa que reside na conquista dos homens para cuidarem de si e de outros, acreditamos ser relevante apontar um universo em transformação.
Entender o envolvimento dos homens no pré-natal, a sexualidade masculina e a paternidade numa perspectiva de gênero e de trocas simbólicas significa, dentre outros aspectos, situar essas temáticas nas relações estruturadas e estruturantes estabelecidas entre homens e mulheres, que ancoram tanto a definição/exercício de papéis sociais como a construção/reconstrução de identidades. Nos serviços de saúde, os profissionais ocupam um papel estratégico na conquista da presença dos homens, no apoio às decisões relativas ao seu cuidado e de quem com eles convive. Como nos lembram Leal et al. 12, a implementação da PNAISH depende de uma cadeia de decisões tomadas por agentes, entre os quais gestores municipais e profissionais que atuam nos serviços. Agentes que têm perspectivas particulares sobre o que seria mais apropriado à promoção da saúde dos homens naquele determinado contexto. Portanto, cabe compreender como interpretam essa presença e como desenvolvem estratégias de abordagem.
O presente estudo faz parte de uma pesquisa mais ampla que investigou a promoção dos cuidados masculinos voltados para a saúde sexual, a reprodução e a paternidade, desenvolvida em três cidades brasileiras, referidas pelas suas respectivas regiões. Seu desenho metodológico foi de caráter misto, aqui entendido como a combinação de métodos, abordagens e técnicas de perspectivas qualitativa e quantitativa em um único estudo 23. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz (IFF/Fiocruz, parecer no 440.915).
Os campos foram três municípios de três regiões brasileiras, envolvendo profissionais e usuários de serviços de saúde, que receberam dois pesquisadores durante três dias em cada município. As viagens ocorreram nos meses de maio, junho e agosto de 2014. As regiões Nordeste, Sudeste e Sul foram selecionadas dentre as que foram indicadas por gestores estaduais como aquelas que tinham alguma experiência com atividades de envolvimento de homens na atenção básica. Para a pesquisa mais ampla, da qual geramos o presente recorte, foram realizadas observações, entrevistas semiestruturadas com profissionais e entrevistas semiestruturadas com usuários. Antecedeu a pesquisa de campo uma série de contatos telefônicos e eletrônicos para planejamento das datas de viagem, além da escolha de quem seria nosso "informante privilegiado", nosso "anfitrião". Uma ação comum aos três campos de pesquisa foi a eleição de alguém que nos recebesse, já que houve um deslocamento dos pesquisadores para essas regiões.
Desse estudo, tratamos de um acervo de 18 entrevistas semiestruturadas com profissionais de saúde, as quais abordavam sexualidade masculina, cuidados de saúde masculinos, pré-natal e paternidade. No desenho da amostra de profissionais, estavam previstas 12 entrevistas, sendo quatro por cada município; entretanto, esse número foi aumentado para contemplar também depoimentos de agentes comunitários e mais profissionais que espontaneamente desejavam participar do estudo. A seleção dos sujeitos seguiu dois padrões, em sintonia com a forma como nos era permitido estar no ambiente: (a) padrão mais informal, livre, espontâneo, presente no Nordeste, com a possibilidade, inclusive, de abordar e convidar os profissionais para a entrevista, com mediação menos presencial do informante; (b) padrão mais formal, com o convite e a apresentação feitos pelo informante, seguindo suas indicações, mais predominante no Sul e Sudeste. Esses profissionais, em sua maioria mulheres, atuavam na atenção básica à saúde e pertenciam a três regiões brasileiras, tendo sido codificados pelo nome da sua respectiva região, sua profissão e número de ordem da entrevista (Tabela 1).
A transcrição e a leitura livre das entrevistas antecedeu a fase de análise destas. Esse momento permitiu a organização de um quadro analítico em que, para cada profissional entrevistado, eram selecionados trechos de seus depoimentos, geradores de correspondência com os três temas que compunham o roteiro da entrevista, quais sejam: sexualidade, paternidade e cuidado à saúde.
Levando em conta que o instrumento guia para as entrevistas foi um roteiro de perguntas abertas que contemplavam os temas, a interpretação livre destes, os participantes da pesquisa associavam livremente a pergunta a um exercício de interpretação ao qual eles tinham que se dedicar para responder. Em síntese, o roteiro voltava-se para os seguintes focos: (1) história das ações do programa/atividade/serviços; (2) opinião acerca do atendimento voltado para homens, contemplando a sexualidade masculina e o envolvimento desses sujeitos no pré-natal e na paternidade; (3) percepção acerca da avaliação desse atendimento.
Em relação à interpretação das entrevistas, optamos por uma perspectiva hermenêutica-dialética de base histórica 24,25,26, combinada com a perspectiva teórica de gênero 16,17 e a dimensão da sociabilidade e trocas simbólicas 21,22,27,28. O privilégio dessa abordagem é possibilidade de olhar para a experiência local, situá-la no âmbito global das determinações históricas, simbólicas e culturais, e retornar ao local com acréscimos advindos da reflexão e crítica social.
O tratamento analítico seguiu as seguintes fases: (a) leitura compreensiva do acervo; (b) identificação de ideias e sentidos centrais implícitos ou explícitos nesse acervo; (c) interpretação dos achados à luz da literatura; (d) síntese interpretativa dos achados.
A síntese teve como questões-chave: (a) quais as estratégias e ações que viabilizam a presença dos homens nas rotinas? (b) quais as justificativas em que se ancoram as ações, a fim de inserir, incentivar, promover a presença dos homens nos serviços? (c) quais atores e imagens se associam à presença dos homens nas ações estudadas?
Para um maior entendimento das questões-chave, é importante, de um lado, retomar o que a literatura vem sistematizando sobre o assunto e, de outro, destacar que as experiências apresentavam pontos em comum e diferenças. Na literatura, observa-se um forte destaque acerca da ausência dos homens na atenção à saúde, com sistematização teórica, reflexão crítica e contribuições sobre essas ideias 5,13,14,17,29,30,31. Não queremos ignorar o fato de que não temos ainda uma mudança significativa nesse cenário, mantendo-se a necessidade de enfrentar seus desafios. Desejamos, em um tempo histórico ainda em curso, possibilitar provocações sobre a, ainda que pouca, presença dos homens nos serviços de saúde, destacando o que essa visibilidade já propicia em termos de avanços e aprendizagens para os profissionais. Contudo, queremos produzir um deslocamento de ideias bastante comuns e de um repertório muito fortemente evocado sobre a ausência dos homens nos serviços de saúde, tentando tornar mais visíveis as ações já realizadas com esses sujeitos.
As experiências visitadas são heterogêneas entre si, seja no seu tempo de existência, com ações e programas voltados para a saúde do homem, seja na cultura local. Ainda que sejam diferentes, nelas são transversais as seguintes preocupações: intervenções voltadas para o chamado pré-natal masculino, oportunizando, no pré-natal feminino, a realização de exames clínicos; ações clássicas de planejamento familiar e busca ativa de homens para ações de prevenção.
As estratégias apontadas pelos profissionais buscavam enfrentar problemas, traduzidos nas seguintes expressões êmicas: o homem não vem, o homem vem quando está nas últimas, o homem tem medo, é um assombro o toque, que têm como imagem primeira o tratamento e a doença.
Dentre essas estratégias, que enfatizam não só o convite, mas também a conquista, destaca-se, logo de início, a dimensão das trocas, com oferta de estímulos materiais, conforme ilustrado, de forma exemplar, no depoimento a seguir: "Porque no seco ninguém vem. Tem que ter o lanche, qualquer coisa, porque isso aí chama, esse kit [o kit de higiene, que tem sabonete, leite de rosas, camisinha, escova e pasta de dentes]" (Nordeste, agente comunitário de saúde 1).
Esse depoimento nos remete à ideia de que as trocas materiais parecem conquistar os homens para o cuidado, de modo que se devem criar condições para recebê-lo, as quais não se restrinjam necessariamente a um objeto material. Ou seja, ser convidado para esses espaços é poder ser conquistado por meio de "bens de cuidado" 32 ou "bens de cura" 27, que incluem símbolos promotores de vínculo: olhares, palavras, uma melhora para seu estado de saúde, a alegria do encontro. E o mais interessante, como nos lembra Mauss 21, é que essa troca implica uma compatibilidade com o máximo de valores recebidos por esse indivíduo. Articula-se a tríade dar - receber - retribuir como algo que funda o vínculo social, A base da sociedade, segundo esse autor, está na interação entre os indivíduos; nesse jogo de reciprocidade, de relações de troca, também cabem conflitos, entendidos como possibilidade da interação social.
Outra estratégia mencionada é a que se refere à agilidade que deve qualificar o atendimento. A ocorrência de falas que apontam que o homem "se aperreia" fácil, uns mais do que outros, parece indicar um caminho para o planejamento de estratégias e ações de saúde para ele. Predomina a ideia de um homem que tem pressa, conforme depoimento a seguir: "Mas a gente percebia muito essa questão da demora na sala de espera. (...) O que a lei fala? Sessenta dias após a manifestação da vontade. Eles chegavam aqui e falavam assim: 'mas por que eu tenho que esperar sessenta dias? Eu quero fazer a vasectomia, eu já pensei, eu já discuti na minha casa'" (Sudeste, enfermeira 4).
Machin et al. 31 observam que, em oposição ao atendimento feminino, profissionais de saúde concebem que, ao contrário das usuárias, os homens são "pouco pacientes" na espera pelo atendimento. Essa ideia é reforçada também na ótica de usuários da atenção básica, que valorizam a "prontidão do atendimento" 30. Agilidade atribuída como característica do bom atendimento masculino parece ser naturalizada tanto por profissionais, quanto por usuários homens. Tal naturalização acaba por ignorar o fato de que a agilidade também deve ocorrer para atendimentos de mulheres. Reproduz-se, assim, a ideia de que a mulher está domesticada para a espera, enquanto o homem tem pressa.
A conquista, na ótica dos profissionais, também passa pela ida deles aos espaços onde convivem os homens, onde eles estão, como fábricas, indústrias, hotéis: "Vou lá [no espaço de trabalho] com uma proposta, vamos lá ver qual é a dúvida. E aí começa a surgir principalmente piadinhas. (...) Como não tem a mulher ali no momento e como eu sou homem também (...) aí eles se soltam. Mas daí vêm as dúvidas: 'Mas fica brocha mesmo? Dói? Que posição que é? De quatro mesmo?' [após a realização da vasectomia]" (Sul, enfermeiro 1).
"Onde esses homens estão? Se eles não vêm até a gente, a gente tem que ir aonde eles estão" (Sul, enfermeira 3).
Interessante assinalar dois elementos associados nos depoimentos acima: um é aquele referente à cultura de pares, homens conversando com homens, sobre saúde, doenças sexualmente transmissíveis, prevenção, sexualidade e temas considerados difíceis; outro é o associado à estratégia de buscar a espontaneidade do encontro, a brincadeira, o elemento lúdico como facilitador para criar vínculo e, brincando, falar sério. No caso os homens, ao buscarem-se maneiras de conquistar possíveis usuários, o maior desafio talvez seja resgatar o universo lúdico nas estratégias de sociabilidade, o que faz parte oferecimento dos bens de cuidado. Apoiamo-nos em Simmel 22 quando o autor afirma que a sociabilidade evoca o compromisso de garantia ao outro de valores sociáveis: alegria, liberação, vivacidade. Segundo os profissionais, essas garantias se traduzem pelos compromissos nos retornos, agendamentos e ofertas de exames: "[Se marcamos], por exemplo, para [o usuário] voltar daqui a três meses, então daqui a três meses tem que estar marcado, não daqui a sete ou a oito meses" (Nordeste, agente comunitário de saúde 2).
"O que eu acho que vem dando certo é a oferta e a disponibilidade da coleta desses exames (...) Isso é uma coisa [muito boa] para o usuário. A facilidade de com dois dias [ter o resultado do exame]. O enfermeiro abre o sistema e o exame está ali, disponível" (Sul, enfermeira 3).
"[É importante ser] a mesma equipe [para dar continuidade ao atendimento] porque a gente conhece eles pelo nome, eles conhecem a gente pelo nome" (Sul, enfermeira 4).
Os depoimentos apontam para o redescobrimento do vínculo como um elemento promotor de saúde ou de cuidado à saúde. Operacionalmente, esse vínculo é criado por meio de estratégias objetivas de deixar a consulta de retorno marcada e garantir, sempre, ao menos um profissional de referência nessas consultas. Na perspectiva dos usuários, o compromisso e o estabelecimento de vínculos podem ser compreendidos como um "atendimento atencioso" e "respeitoso" 29, ou ainda como elemento de satisfação com os serviços prestados 33.
Para além das estratégias de conquista dos usuários, observamos que a presença destes na atenção básica, tanto dos homens, como das mulheres, deveria se traduzir em ações não restritas às dimensões biomédicas do controle com a saúde. Mas, como nos lembra Ayres 34,35, a construção da atenção à saúde implica considerar os projetos de felicidade, o que não necessariamente se refere, da parte do usuário, a estar atento aos testes e exames, mas a sentir-se bem, ativo e produtivo. Daí a assimetria de projetos fica clara, visto que os operadores da saúde - com muita razão e nobre preocupação - estão voltados para as taxas, índices, intervenções, que compreendem a saúde como um oposto à presença da doença, um estado absoluto de normalidade.
As justificativas dos profissionais de saúde para o incentivo da participação masculina são de três ordens: potencializar as oportunidades para realização de exames clínicos de rotina, valorizar a paternidade na estratégia do pré-natal e incluir os homens no planejamento familiar.
Os profissionais destacam a noção de oportunidade e de potencializá-la a fim de não perder a chance de prevenir doenças, agravos e até conquistar o homem para o cuidado com a sua saúde.
"[A mulher] faz todo o cadastro. Já é solicitado o primeiro ultrassom da gestante, os exames e se o pai já está junto já solicita o [exame] masculino" (Sul, médica 1).
Essa ideia é reforçada em outros estudos, como o de Benazzi et al. 36, que, ao tratarem da participação do homem no pré-natal, defendem esse momento como uma oportunidade ímpar para se realizarem exames masculinos, os quais servem tanto para controle, quanto para prevenção de doenças.
Com base nos depoimentos, observamos que um dos motivos de trazer o homem para cuidar de sua saúde se vê associado à realização de exames clínicos, check ups, que podem incluir variações de acordo com a idade do usuário. Tem-se, enfim, a ideia da prevenção, mas ainda com a forte marca da medicalização. O homem parece resistir a esse processo quase como se fosse mais sensível a essa colonização da vida pelo discurso médico.
Outra justificativa dos profissionais está associada à busca de vincular o homem ao momento da paternidade na estratégia do pré-natal: "É importante a gente (...) tentar incluir ele [o futuro pai] realmente no pré-natal, nas consultas. Então eu falo: 'Olha, está aberto, a consulta é dela, mas você pode vir nas consultas também'. (...) Você tenta criar o vínculo, uma confiança também com esse parceiro, com esse pai, com esse homem" (Sudeste, médico 1).
Esse depoimento reflete um preceito da PNAISH, o qual traz a saúde sexual e reprodutiva e a promoção da paternidade responsável como linhas para ações de saúde 10.
A terceira justificativa indica elaborações em torno das ações do planejamento familiar, inserindo o homem no ciclo pós-natal.
"[No pós-natal] quando a mulher decide por um método irreversível, o parceiro obrigatoriamente, legalmente, ele precisa assinar, precisa concordar e vice-versa. Quando o homem necessita, deseja uma vasectomia, a mulher, a companheira, precisa necessariamente assinar os documentos necessários. Então a gente precisou chamar o homem" (Sudeste, enfermeira 1).
Tanto o pré-natal como o pós-natal podem ser momentos para a inclusão de uma faixa de homens que comumente não frequentam os serviços. Para os profissionais, os idosos e os jovens costumam ser os maiores frequentadores. O depoimento a seguir exemplifica essa situação: "Têm até uns [homens] mais velhos que já vêm mais na Unidade (...) os jovens é mais para pegar camisinha" (Nordeste, agente comunitário de saúde 1).
Essas falas reverberam em outros estudos. Gomes et al. 13, por exemplo, destacam a frequência dos idosos, e Pinheiro & Couto 37 referem que, muito embora a distribuição de camisinhas possa soar como reducionista, ainda assim ela pode ser um facilitador para a inserção de homens jovens no serviço.
Não são somente atores personificados que podem incentivar os cuidados masculinos; esse propósito também pode ser atingido por imagens. E, talvez, o mais interessante seja perceber que a imagem que liga o homem à força, poder, dominação sobre a mulher, já enfrenta uma ideia contra-hegemônica. Esse homem não é tão dominador, mas dominado, por meio de um ator que pode ser determinante na influência sobre seu cuidado à saúde.
"Um pastor começou a dizer para os homens fazerem a vasectomia. E aí começou a surgir muitos casos de vasectomia lá naquela Unidade. Aí nós fomos descobrir, era por conta dessa questão religiosa. E tem uma influência muito grande, sim, da religião" (Sudeste, assistente social).
Nesse depoimento, pode-se inferir que a imagem de homem dominador tende a ser diluída em face da influência de um ator a quem é atribuída uma posição de respeito.
Outro aspecto relaciona-se ao fato de que a decisão final sobre a realização de uma vasectomia precisa ser compartilhada, e a imagem dessa exigência se concretiza em um documento assinado.
Nesse sentido, pedidos de exames para o homem no momento do pré-natal não deixam de provocar estranhamentos, em muito sintonizados com o que seria mais esperado ou conhecido pelo senso comum como sendo estratégia desse momento:
"Percebi que houve uma resistência muito grande. Quando falava que eles tinham que fazer exames, eles respondiam: Por que vou fazer exame? Quem está grávida é a minha mulher. Por que eu tenho que fazer exame?" (Sudeste, médico 1).
O exame solicitado no pré-natal associa-se fortemente à imagem de cuidado feminino, excluindo o ser masculino desse espaço.
Com relação ao lugar de influência de outras agências e atores, destacamos, na experiência do Sudeste, a importância ocupada pela universidade na formação e na discussão de casos, incluindo também as contribuições em termos metodológicos.
"Os docentes de lá [da universidade] dão uma assessoria muito grande para a gente. A gente tem essa vantagem" (Sudeste, enfermeira 1).
"Anticoncepção, sexualidade e relacionamento homem mulher é uma coisa meio complicada para muitos profissionais (...) eles [os profissionais] não estão acostumados a sentar na frente de alguém e falar desse assunto. E então, esse guia [da universidade norte-americana John Hopkins] nos auxiliou bastante (...) propondo inclusive abordagens, como é que você inicia uma conversa sem você induzir respostas" (Sudeste, médica 2).
"Os prontuários, nós levávamos para uma reunião mensal para discussão dos casos, onde a gente tinha a supervisão justamente do coordenador da Saúde da Mulher e também da Doutora X, (...) a médica ligada ao Hospital Y, a docente da Z, e da Medicina Social, que nos capacitou" (Sudeste, médica 3).
Destacamos nos depoimentos anteriores a imagem do apoio como necessário para tratar do tema da sexualidade, assunto considerado difícil. Essas falas podem nos revelar ainda que os profissionais de saúde precisam de ajuda, não lhes bastando a formação que tiveram. Logo, mais do que a competência técnica, são necessárias as trocas 27,32 que ocorrem nas intercomunicações das experiências. O desafio talvez resida em como o serviço reconstrói ou dialoga com informações geradas por canais baseados nas experiências de pares.
A sexualidade, além de demandar apoios para os profissionais discutirem com os homens, também está associada a preconceitos.
"Falar em esterilização cirúrgica para homem não é o sonho de consumo dos homens. No casal, é sempre a mulher que procura" (Sudeste, enfermeira 1).
A abordagem relacionada à vasectomia pode, em alguns casos, associar-se a medos sexuais masculinos. Marchi et al. 38 identificaram, nas representações masculinas, a ideia de que realizar vasectomia era algo que poderia comprometer a masculinidade, a ideia do "virar bicha". Outro aspecto a ser destacado diz respeito ao fato de que a opção pela vasectomia pode estar ligada a uma sensibilidade desenvolvida pelo homem ao querer respeitar e preservar a mulher do processo cirúrgico da laqueadura 38.
A religião e a universidade com seus manuais técnicos ganham destaque, em algumas situações, como fontes de apoio relacionadas às imagens da competência no enfrentamento de questões relacionadas à sexualidade.
Independente do foco das três experiências, por acreditarem que é difícil envolver os homens no cuidado à sua saúde, os profissionais discorrem sobre três grandes estratégias: (1) atendimento aos homens no menor tempo, reduzindo a espera e oferecendo materiais (preservativos, material de higiene etc.) em troca do estabelecimento de vínculos e dos serviços entre outros homens; (2) deslocamento dos profissionais de saúde para o atendimento aos homens em seus espaços de trabalho, adaptando linguagens e materiais; e (3) atendimento à demanda específica por contracepção.
Comum entre as três experiências pesquisadas, reside a fala acerca do desafio de criar estratégias para promover a e a sua conquista para o cuidado da sua saúde e a de quem com que ele vive. Ainda prevalece a ideia de recrutar o homem para que ele faça um ckeck up, que ele não represente um veículo de contágio - ações importantes no contexto da saúde pública -, mas há que se articularem as discussões sobre as relações entre homens e mulheres, em uma perspectiva promotora de saúde.
O contato com os serviços e seus profissionais e/ou coordenadores nos possibilitou interpretar a urgência de promoção de estratégias que reconheçam que o vínculo se constrói mediante o acionamento de mecanismos de sociabilidade e troca. Nesse caso, vale tanto oferecer consultas de retorno, com respeito ao agendamento estabelecido, quanto valorizar as referências afetivas construídas com os profissionais que realizaram esse atendimento.
Há uma novidade no cenário da atenção à saúde, tão reconhecido pela máxima de que o homem não vem ou que o homem não cuida da saúde, que diz respeito à indução para enfrentar essa ausência. Indução essa que é plural e sinérgica, destacada pela elaboração e promulgação da PNAISH no ano de 2009. Elementos dessa política aparecem nos depoimentos muito mais como tópicos de agenda do que experiências vivenciadas, no sentido de uma consolidação. Em outras palavras, temas como pré-natal masculino, acolhimento, sexualidade e ambiência são mencionados. No entanto, ainda apontamos lacunas que estão ligadas aos preconceitos e às deficiências da formação, entre outros aspectos, cujo enfrentamento poderia contribuir para consolidar os preceitos da PNAISH. Destacamos a necessidade de se enfrentarem essas lacunas com naturalidade, ocupando a mídia, o cenário educacional e a formação de profissionais que atuam na saúde.
Por fim, como limites do presente artigo, apontamos que a intepretação dos nossos achados está vinculada ao contexto em que foram gerados os depoimentos, bem como relacionada aos marcos teóricos que nos serviram de lentes. Ela não pode ser generalizada para o entendimento das estratégias de envolvimento dos homens nos serviços de atenção de base. Todavia, ainda que não sirva para generalizações, tal interpretação pode servir de ponto de partida para que outras sejam ensaiadas acerca do mesmo assunto.