versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.8 Rio de Janeiro ago. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015218.18812015
Os grupos de educação em saúde, na atenção básica, para pessoas que vivem com enfermidades de longa duração (“doenças crônicas”, no linguajar biomédico), constituem universos socioculturais com elementos e arranjos ainda não apreendidos pelo paradigma cartesiano das ciências da saúde. Situados entre a perspectiva epidemiológica-clínica e a experiência das pessoas adoecidas e dos agentes de cura da medicina oficial, o trabalho nesses grupos se reveste de desafios, conquistas e angústias. Por isso, o enfoque deste estudo recai sobre os significados atribuídos por profissionais da saúde à produção de cuidados nesses grupos, bem como os aspectos socioculturais que informam a natureza e o conteúdo da atenção à saúde prestada nesses cenários.
Para as ciências biomédicas, as “doenças crônicas” podem ser de etiologia congênita, genética ou adquirida. As doenças crônicas adquiridas são caracterizadas por um longo período de latência frequentemente influenciado pela exposição prolongada a fatores de risco ligados, principalmente, ao estilo de vida. O adjetivo “crônico” acentua a impossibilidade de cura1 e também o imperativo de viver “com e apesar da doença”2. Dado o vasto panorama das doenças crônicas, neste artigo será abordado o diabetes mellitus tipo 2 (DM2). Síndrome metabólica resultante da produção, secreção ou utilização deficiente de insulina, sendo caracterizado por hiperglicemia crônica, frequentemente acompanhada de dislipidemia, hipertensão arterial e disfunção endotelial3. A prevalência do DM2 na população adulta é considerada um problema de saúde pública em todo o mundo4-7.
O tratamento do DM2 busca atingir os controles glicêmico e metabólico, a prevenção das complicações agudas ou das crônicas, a adaptação psicossocial do indivíduo doente e seus familiares, a adesão ao regime medicamentoso e, principalmente, a mudança no estilo de vida8. Dentre as medidas para prevenção, avaliação e controle do DM2, destacam-se as ações de educação em saúde individual e/ou em grupos. No Brasil, tais ações têm sido prioritariamente desenvolvidas em grupos coordenados por profissionais da saúde e realizados em serviços de atenção básica, onde ficaram popularmente conhecidos como “grupos Hiperdia”9.
Os documentos oficiais têm enfatizado a necessidade de os profissionais da saúde desenvolverem campanhas educativas periodicamente, grupos de educação em saúde e grupos de ajuda mútua com o objetivo de promover estilos de vida saudáveis10,11. Além disso, reconhece-se que tais ações de educação em saúde são fundamentais para informar as pessoas adoecidas, motivá-las a lidar com suas condições e capacitá-las para cumprirem seus planos de tratamento12. Portanto, as ações de educação em saúde, sobretudo em grupo, devem promover oportunidades de socialização de conhecimentos e compartilhamento de experiências sobre a vida com o DM2, o que confere maior autonomia no autocuidado ao indivíduo adoecido e aos seus familiares13.
Como agente-elo entre a política de saúde e a pessoa que vive com DM2, os profissionais da saúde, principalmente na atenção básica, ocupam lugar estratégico nos discursos oficiais e na literatura biomédica. Por isso, este artigo busca compreender os significados que os profissionais da saúde atribuem aos grupos de educação em saúde para pessoas com DM2. Nesse sentido, ressalta-se a necessidade de uma abordagem que possibilite a apreensão destes significados atribuídos aos grupos de educação em saúde pela população em questão. Nesse sentido, teve-se como referencial teórico estudos socioantropológicos sobre o gerenciamento e a experiência com enfermidades de longa duração14-17. Com isso, não se buscou descrever os aspectos técnicos e pedagógicos dessas ações, o que acabaria por reforçar a dimensão educativa desses grupos, cujo objetivo último é a mudança de comportamento para adesão ao tratamento proposto.
A pesquisa que originou este artigo foi realizada em Campinas, interior de São Paulo, entre agosto de 2011 e setembro de 2012, em cinco grupos de educação em saúde para pessoas que vivem com “pressão alta” e DM2 (Grupos Hiperdia) conduzidos por profissionais de uma Equipe de Saúde da Família (ESF) do centro de saúde da “Região do São Marcos”. Essa região engloba um conjunto de bairros e aglomerados subnormais e, apesar dessa nomenclatura não existir oficialmente, o termo era utilizado pela população para delimitar e caracterizar o território compreendido pela ESF e no qual fiz algumas incursões durante o trabalho de campo.
A forma de organização dos grupos que conheci teve início em 2001, ano da publicação do Plano de Reorganização10. Os profissionais que atuavam regularmente nos grupos eram Helena, Paula e o agente comunitário de saúde (ACS) Ricardo, que participavam dos grupos há dez, seis e oito anos, respectivamente. Além desses profissionais, outros agentes da Equipe Prata participavam esporadicamente ou deixaram de participar por conflitos diversos. Um desses conflitos, o mais enfatizado, era a discordância de alguns membros da equipe com a forma como os grupos eram conduzidos, conforme veremos adiante.
Em agosto de 2011, haviam 113 pessoas cadastradas nos grupos (Tabela 1) com tempo médio de participação entre cinco e seis anos. Em geral, a distribuição dos participantes por grupo era feita aleatoriamente (os grupos eram numerados de I a V). Todos possuíam um cartão do Hiperdia no qual constavam seus dados de identificação, o número do grupo, os registros dos valores da pressão arterial, glicemia capilar, peso, Índice de Massa Corpórea e, no verso, a agenda dos próximos encontros. Os encontros dos grupos eram semanais, sendo distribuídos de maneira que houvesse um encontro a cada 45 dias, mais ou menos. O número de participantes nas reuniões era de 15 usuários, em média. Os encontros dos grupos ocorriam nas dependências do centro de saúde, às segundas-feiras, das 13 às 15 horas em uma sala de reuniões localizada nos fundos da unidade. Em geral, os participantes ausentes alegavam que o horário (13-15h) e o dia da semana (segunda-feira) eram um impeditivo importante devido à jornada de trabalho ou afazeres domésticos.
Nos dias dos encontros dos grupos, os participantes começavam a chegar por volta das 12h30 e iam direto para a sala de reuniões. Os profissionais chegavam por volta das 13 horas e cumprimentavam os presentes. Recolhiam os cartões deixados sobre a mesa e selecionavam os prontuários dos usuários presentes. Feito isso, a equipe se dividia para aferir as pressões arteriais (por ser enfermeiro, durante o período do trabalho de campo sempre colaborei nesta atividade), mensurar a glicemia capilar (Paula), pesar (Ricardo) e fazer os registros na planilha de acompanhamento do grupo, nos prontuários e nos cartões (feitos por todos).
Em seguida, tinha início a ação educativa que costumava ser realizada pelos próprios membros da Equipe Prata. Em 2011, quando iniciei o trabalho de campo, temas como sexualidade, saúde bucal, alimentação, uso de medicamento, atividades físicas, dentre outros, eram recorrentes. Finalizada a atividade educativa, Paula dava início aos atendimentos individuais. Eram nesses momentos que se efetivavam as práticas concernentes ao acompanhamento clínico de cada participante dos grupos, tomando-os em sua individualidade e rede de relações social mais estrita (a família, principalmente). Depois de passar com a Paula, os participantes poderiam ir para suas casas ou ficavam aguardando um vizinho ou companheiro que ainda não tinha passado pela médica.
Nesse contexto, os sujeitos que participaram da pesquisa como informantes foram: 01 médica de família e comunidade, 01 enfermeira, 02 auxiliares de enfermagem e 01 ACS. A participação dos mesmos como informantes foi sendo realizada ao longo do trabalho de campo, a partir do momento que mantive o primeiro contato e iniciávamos uma relação. Todos receberam informações sobre os objetivos e os procedimentos metodológicos da pesquisa e aceitaram colaborar com seus saberes e experiências, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Como dito antes, todos os nomes de pessoas e instituições utilizados neste artigo são fictícios e escolhidos aleatoriamente. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo.
Minha presença nos grupos Hiperdia e em outras atividades da Equipe Prata (visitas domiciliares, consultas médica, acolhimento, reuniões de equipe) possibilitou a inserção no campo e a construção de rede de relações com os profissionais e demais participantes dos grupos. Dessa forma, a colaboração por meio de entrevistas individuais semiestruturadas foi feita utilizando um roteiro com tópicos-guia, nos últimos meses em que estive em campo. Antes disso, as conversas informais durante as interações sociais engendradas com os profissionais foi uma fonte importante de informações que, gradativamente, me permitiu uma aproximação ao universo dos grupos pesquisados e a compreensão dos significados que esses atores sociais atribuíam ao seu trabalho nesses contextos. As informações coligidas durante as observações participantes foram registradas no diário de campo.
Por isso, participaram do estudo aqueles profissionais da Equipe Prata que estavam envolvidos diretamente com as práticas de saúde voltadas às pessoas que viviam com DM2 e frequentavam os grupos Hiperdia. As entrevistas foram conduzidas no próprio centro de saúde, registradas em áudio, conforme a permissão dos colaboradores, e, imediatamente após, foram transcritas e codificadas.
A análise dos dados ocorreu em quatro etapas. Na primeira, realizou-se uma descrição breve de cada entrevista (caso): informações sobre a pessoa entrevistada, o contexto de realização da entrevista e identificação dos tópicos centrais. Na segunda, aprofundou-se o primeiro caso para obter a codificação dos dados, tendo como base o tema da pesquisa, os objetivos e os pressupostos teórico. Na terceira, fez-se a análise dos outros casos e, posteriormente, a identificação das unidades de sentido, por meio do agrupamento dos códigos comuns e dos incomuns. Ou seja, nessa etapa fez-se a primeira fase da interpretação, emergindo as unidades de significados. Na quarta e última etapa, passagens do texto foram analisadas com maior detalhe. Analisado todo o corpus, produziu-se uma tabela na qual se definiu os núcleos de significados. Por fim, tendo como base os núcleos de significados gerados, foram construídas as categorias temáticas18.
Após análise e interpretação do material empírico, obtiveram-se três categorias temáticas: (1) é uma forma de educá-los: os grupos como espaço educativo e de acompanhamento clínico; (2) eles sabem que eu vou estar lá: os grupos como recurso para acessar o sistema de saúde; e (3) serve como um grupo de autoajuda: afinal, é um grupo para o quê? O conteúdo êmico de cada uma delas é mostrado a seguir.
Esta categoria expressa como os significados atribuídos aos grupos estão fortemente atrelados à ideia de prática de saúde pública. Historicamente, a educação em saúde (antes, educação sanitária) tem sido concebida como o processo por meio do qual os conhecimentos e os métodos das ciências biomédicas e psicossociais desenvolvem, nos indivíduos e nas sociedades, sistemas conceituais e valores que estimulam padrões de vida saudáveis19. Tal concepção permanece presente nos cursos de graduação da área da saúde e nos documentos oficiais8,20. Consequentemente, esses profissionais reproduzem em suas práticas tais concepções, o que se traduz em ações educativas focadas na patologia, verticais e culpabilizadoras21.
Para os informantes deste estudo, os grupos constituem espaços privilegiados para realização de orientações sobre cuidados em saúde, isto é, para o desenvolvimento das ações de educação em saúde. O médico que começou os grupos achava que seria uma forma de fornecer uma educação em saúde melhor para o paciente. O grupo é uma forma de educá-los melhor, fazer com que eles adiram melhor ao tratamento (Helena). Os objetivos dessas ações se ligam, imediatamente, aos interesses colocados pela política de saúde e se transfiguram de acordo com o foco, ou seja, com a doença ou problema de saúde em questão. Sendo assim, os grupos significavam uma ferramenta ou estratégia para suprimir uma demanda e para alcançar a adesão ao tratamento e aos regimes terapêuticos propostos.
Nessa perspectiva, a concepção de educação em saúde operada pelos informantes consistia em transmissão de informações clínicas e, principalmente, comportamentais relacionadas ao DM2. Por outro lado, há outras compreensões: Eu acho que o grupo motiva o doente crônico a se inteirar mais dos problemas. Motiva mais por trocar experiências e estar sempre aprendendo. Os grupos servem para reforçar o tratamento, o controle (Ricardo). Portanto, coexiste uma concepção de educação em saúde mais centrada na “educação” em seu sentido normativo e pragmático, e outra, que alberga uma dimensão “motivadora”, nas palavras de Ricardo, na medida em que possibilita biossociabilidades22 marcadas pelas trocas de saberes e experiências entre indivíduos que apresentam uma condição em comum. Essa caracterização das relações também foi evidenciada num grupo para pessoas que vivem com DM2, orientado pelo saber biomédico, de uma associação paulistana, no qual a sociabilidade entre os associados permitia a criação de vínculos de solidariedade utilizados para estabelecerem trocas como sujeitos que se reconheciam como possuidores de uma mesma identidade23.
Se tais perspectivas coexistem nesses espaços grupais, parece que elas, no limite, confluem para um objetivo em comum: reforçar o tratamento. Esses objetivos são semelhantes, mas não iguais, pois a noção de controle trazida por Ricardo em seu discurso se situa fora do campo normativo da biomedicina. Como ACS, morador do bairro, trabalhando na saúde, mas não sendo da área da saúde por formação, Ricardo caracteriza o controle como ver que a diabetes está alta e saber fazer alguma coisa para baixar: tomar um remédio, um chá, não ficar nervoso. Diversos estudos associam o gerenciamento da enfermidade à noção de “controle”24-27. No entanto, estudos brasileiros têm mostrado que embora essa categoria seja central para profissionais e adoecidos, há divergências e convergências em seus significados28-30.
O “controle” apresenta duas significações: uma concepção biomédica, que significa manter a glicemia dentro dos padrões de referência estandardizados pelos consensos clínicos; e outra popular, que se volta às preocupações práticas mobilizadoras dos adoecidos a promoverem ajustes nas prescrições tentando equilibrá-las em meio às demandas não médicas (família, trabalho, religião, amigos) a serem gerenciadas na vida29. No tocante às restrições alimentares de pessoas que vivem com DM2, por exemplo, Barsaglini e Canesqui30 evidenciaram que à noção de “controle” coadunam-se ideias de flexibilidade e volição, expressas em termos como “manerar”, “ralear”, “diminuir”, “controlar”, “corrigir”, “experimentar, mas não comer”.
No contexto de grupos de educação em saúde, Fleischer28 aponta que o “controle” possui alguns parâmetros que devem ser exercidos e comunicados: “pontualidade nas reuniões do ‘grupo’, manutenção dos índices corporais conforme os protocolos clínicos, obediência às prescrições feitas nos consultórios, retirada e consumo integral dos medicamentos indicados”. Para profissionais da saúde que atuavam na associação paulistana estudada por Lopes23, ser controlado caracteriza um modo de ser próprio de pessoas que dedicam atenção especial à sua condição de saúde, gerando reformulações das formas como se conduzem na vida diária.
Em meio a isso, os acompanhamentos clínicos realizados a cada encontro dos grupos aparecem relacionados à ideia de conhecer mais o paciente, estar mais perto, o que visa, em última instância, atender à expectativa de efetivação das práticas de autocuidado prescritas e a produção de vínculo com a pessoa que vive com DM2. Com os pacientes dos grupos a gente tem um acompanhamento, começa a conhecer mais o paciente (Paula). Com isso, há uma atenção à saúde mais personalizada e, em consequência disso, esses participantes dos grupos procuram menos atendimento na unidade de saúde, ou seja, eles não descompensam (apresentam alterações da glicemia capilar, por exemplo) ou somente às vezes. A gente tinha muitos pacientes que vinham descompensados aqui. E eu acho que diminuiu bem a demanda de paciente passando mal ali na frente [no acolhimento] por causa do diabetes (Helena).
Além disso, o acompanhamento clínico e as informações transmitidas às pessoas com DM2 passam a estar “presentes” em suas vidas, mesmo quando o profissional da saúde está “ausente”. A gente não vai estar todo tempo com eles e precisamos estar passando orientação. Aqui é uma coisa e em casa, no dia a dia, pode ser outra. Tem que tomar remédio todo dia, a vida toda, um ou outro vai acabar não tendo disposição para cumprir direitinho (Ricardo). Dessa forma, por meio das orientações relativas ao DM2 que se tenta “ensinar” ao paciente, o saber médico é “deslocado” das imediações contextuais em que se dá o encontro clínico e passa a desempenhar uma ação capilar no cotidiano de vida dos indivíduos31.
No caso dos grupos Hiperdia estudados, a monitorização diária do autocuidado e o contato frequente com as orientações médicas fazia como que os mais assíduos nos encontros desenvolvessem certa habilidade de manejo da própria enfermidade, ou seja, produz indivíduos que “sabem se cuidar”. De acordo com Lopes23, esses casos caracterizam o “bom diabético”, diferente dos “revoltados” ou que ainda “não aceitam” o DM2 e os indiferentes. Para a autora, o “bom diabético”, além de “saber se cuidar”, desenvolve a “malandragem” que se manifesta por meio de estratégias de “saber entregar-se à sedução dos pratos mais desejados, compensando os ‘abusos’ com um controle maior na dieta do dia seguinte, por exemplo”23.
Portanto, podemos observar que as práticas de educação em saúde associadas ao acompanhamento clínico nos encontros dos grupos pesquisados apresentam duas “faces”: uma científica, que produz e manipula uma série de tecnologias de cultivação do self e faz circular os discursos da biomedicina cartesiana, tendo por objetivo último a instauração de um regime de controle marcado pela autodisciplina, autoconhecimento e automonitoramento24; e, outra, da experiência, na qual a ação e a criatividade dos sujeitos envolvidos instauram uma rede de relações que permitem resgatar no interior do ato educativo realizado no grupo os elementos próprios da ordem relacional estruturante nas classes populares32.
As duas “faces” das práticas de saúde desenvolvidas nos grupos Hiperdia estudados têm a potência de recompor o ato técnico instruído pela clínica e epidemiologia, sendo, portanto, um espaço com possibilidades dialógicas que permite aprendizagens recíprocas entre pacientes-pacientes, pacientes-profissionais e profissionais-profissionais.
A convivência nos grupos Hiperdia possibilitou a apreensão da ação criativa e original que se reflete nos usos que os membros dos grupos engendram a fim de superar a burocracia posta na organização dos serviços de saúde. Para Helena, o grupo significa um “recurso” para os pacientes, pois quando têm uma necessidade e não conseguem consulta médica é para o grupo que eles “correm”. Quando eles não conseguem consulta, eles usam o grupo para isso. Ou então não gosta de vir em grupo porque acha que demora muito, mas quando está precisando, e não consegue consulta, é para cá que eles correm! (Helena).
Como discutido acima, há entre os membros dos grupos pesquisados (profissionais e pacientes) uma rede de relações que permite resgatar no interior do grupo os elementos próprios da ordem relacional própria das classes populares. Essa ordem coloca em cena vários personagens: as pessoas que vivem com DM2, a médica, o ACS, a auxiliar de enfermagem e outros. Ao ativar essas redes se produz implicações, responsabilizações, comprometimentos com o outro: toma-o como pessoa; situa-o no mundo. Sendo assim, Ricardo é baiano, mora sozinho, é calmo, colaborativo e, também, é ACS; Helena é solteira, sorridente, tem um filho, nasceu e se criou no bairro e, também, é auxiliar de enfermagem; Dona Carla é cearense, viúva, migrou para Campinas há 24 anos, vive com uma filha e um neto, gosta de conversar na calçada de casa e, também, vive com DM2.
O material etnográfico deste estudo permitiu compreender a malha de relações e de articulações de forças, por meio das quais os pacientes e profissionais dialogam, jogam, fazem alianças, moldam e procuram brechas na estrutura posta pelo sistema de saúde. Nesse sentido, os profissionais legitimam os usos que os pacientes fazem dos grupos, principalmente como forma de obter acesso “facilitado” aos serviços médicos. O grupo é uma maneira de eles conseguirem ter acesso a mim, apesar de eu ser uma pessoa acessível para eles. É um acesso facilitado, porque eu sempre estou ali naquele horário. Eles não precisam pegar senha, passar no acolhimento. Eles sabem que eu vou estar lá. Sempre tem uma pessoa de referência (Paula).
Ou seja, os usos sociais que os pacientes faziam dos grupos se fundamentavam numa rede de relações produtora de vínculos e de confiança entre os agentes envolvidos. Eles sabem que eu vou estar lá, afirma Paula. Além disso, a atitude profissional de se colocar como pessoa de referência para os participantes dos grupos se revelava como uma possibilidade de efetivar, na prática, os princípios da atenção primária à saúde (acessibilidade, longitudinalidade e integralidade, principalmente) e, portanto, transformar os grupos Hiperdia numa “porta” sempre aberta e acolhedora: a gente não manda quem não é do grupo ir embora! Hoje ele achou que poderia vir e resolver alguma coisa aqui. Então o acolhemos no grupo, fazemos como se ele estivesse participando e no final ele é chamado para conversar! É um recurso deles! (Helena).
Contudo, apesar da atenção personalizada e da criação de vínculos, não se pode esquecer o pano de fundo no qual se dá essa rede de relações: a política de saúde e suas estratégias de gestão da vida do corpo social. Nessa perspectiva, é importante destacar que nessas relações também se faziam presentes os elementos gerais que demarcam as assimetrias de saber-poder entre profissionais da saúde e pacientes.
Por vezes, tinha-se em um ponto, os profissionais com seus saberes tecnológicos capazes de atender às demandas por medicalização dos pacientes, o domínio das normas e das rotas para acessar o sistema de saúde; e no outro, os pacientes reconheciam e legitimavam os saberes tecnológicos dos profissionais como eficazes no manejo de seus sofrimentos e infortúnios, propunham relações amistosas e pessoalizadas aos profissionais e, em troca, aceitavam participar das atividades propostas no interior dos grupos.
Nos discursos dos profissionais a finalidade e a característica dos grupos aparecem “divididas” entre a educação em saúde e a “autoajuda”. Para Márcia, o grupo tinha que ser educativo: eu acho que tinha que ser uma coisa mais educativa. Tem paciente que vem no grupo só para pegar a receita do remédio e falar com a doutora. Ele não vem aqui porque precisa aprender. Nessa perspectiva, os grupos significavam uma prática de saúde pública cujos objetivos eram a adesão ao tratamento médico e a diminuição da demanda de pacientes descompensados. Logo, os profissionais que operavam os grupos deveriam se comprometer com a técnica, percebendo-os como instrumentos de trabalho. O enfoque na transmissão de informações e conhecimentos científicos, voltados a doenças e a outras condições de saúde, turvava aspectos potentes que eram engendrados nos grupos, como o compartilhamento de experiências.
É importante assinalar que, durante o trabalho de campo, Márcia já não participava dos encontros dos grupos hoje eu não participo. Talvez sua condição “de fora” baseada na experiência pregressa impossibilitava a compreensão de elementos que Paula e Ricardo, por exemplo, conseguiam relatar. Esses profissionais atribuíam outros significados aos grupos Hiperdia, ampliando a vocação “educativa” defendida por Márcia.
Para Ricardo, Paula e Helena, os grupos eram espaços de produção de cuidado em saúde cuja eficácia simbólica era delineada pelos encontros, pelas relações interpessoais, pelos vínculos, pelas estratégias de acesso, pela experiência com a enfermidade de longa duração: eles procuram participar dos grupos para, em parte, terem um lugar para ir, para frequentar, para se encontrarem. São pessoas idosas que não têm muita opção de lazer. O grupo acaba sendo um lugar de encontros (Ricardo).
Com base na discussão anterior sobre as duas “faces” (ciência e experiência) que se manifestavam nas concepções de educação em saúde dos informantes, podemos afirmar que o caráter “dividido” dos grupos é um reflexo dessas “faces”. Na verdade, a identidade desses grupos se construía e garantia sua continuidade ao longo de mais de 10 anos, à época da pesquisa, justamente pela coexistência dessas “faces” que, a um só tempo, se repulsavam e se complementavam. A divisão era posta pelos “olhos” polarizados de alguns profissionais que perdiam de vista o meio, a mistura, a sutileza, o fugaz.
Para Paula, os grupos, também, funcionavam como grupo de “autoajuda”: serve como um grupo de autoajuda porque eles veem várias pessoas com o mesmo problema. Você viu a paciente falando? ‘Aqui é como uma família!’ Então mesmo o grupo não tendo uma finalidade de terapia, ele acaba sendo terapêutico, de apoio. Em seu discurso, Paula pontuou a distinção entre terapia e apoio, embora ambos se refiram às formas de manejar aspectos subjetivos na prática em saúde, mais especificamente nos grupos Hiperdia.
Naquele contexto, o termo terapia significava a maneira pela qual os profissionais podiam abordar os aspectos subjetivos que as pessoas que viviam com DM2 relatavam. Assim, a terapia operava na ordem da técnica, da ciência, da objetividade e do concreto. Em contrapartida, a noção de apoio buscava dar conta daquele “produto” que se fazia independente da condução de um profissional. Em outras palavras, o apoio era marcado pela ordem relacional, da pessoalidade, da experiência, da subjetividade e do abstrato. No apoio o protagonismo do saber técnico convivia com outros saberes e experiências que se colocavam como instituintes de outros protagonismos.
Apesar de distintas, tais categorias permitem apreender as estratégias e as ações dos atores sociais para integrar essas “faces” produzindo, em cada encontro, novos arranjos. Por isso, “por fora” os grupos podiam se mostrar cindidos, mas “por dentro” eles tomavam os contornos dado pelos nós da rede de relações engendrada por seus membros. Essas visões “de dentro” e “de fora” mobilizavam conflitos entre os profissionais da Equipe Prata. Em geral, criticava-se a maneira como os grupos eram conduzidos e tais críticas se personalizavam na figura da médica. Com a palavra, Márcia: Antigamente o grupo tinha tempo de duração. Hoje eu não participo. Primeiramente, porque eu nunca fui convidada. Segundo, porque eu não gosto do jeito como a médica conduz as coisas. Eu acho que o grupo que ela faz, infelizmente, é medicamentoso! Porque os pacientes não recebem alta.
Para Rosa, a enfermeira que ingressou na equipe em julho de 2012, sendo sua primeira experiência na atenção básica, os grupos eram da Paula e referia dificuldades de inserção nas atividades: eu não sou referência para os hipertensos e diabéticos, porque além de ser nova na equipe, não consegui estabelecer um trabalho legal com a médica. No começo, eu fiquei um pouco desmotivada para participar desse grupo, justamente por essa questão autoritária. No grupo dela, não dá nem 100 pacientes e apenas esses são seguidos. Mas a gente tem 500 cadastrados. Então eu acho que se deixa a desejar no seguimento devido a esse modelo médico-centrado. Ela não abriu espaço para o enfermeiro. A minha tarefa não é igual ao do auxiliar. Tudo bem, eu posso ajudar, ver a pressão, aferir o dextro [glicemia capilar], mas não se resume a isso. Mas a gente se dá bem.
Nas conversas informais e entrevistas realizadas com Helena e Ricardo, não foi levantado nenhum desses aspectos. Durante minhas participações nos encontros dos grupos percebia certa integração entre eles dois e Paula. Exemplo disso foi citado anteriormente quando relatei a divisão das tarefas dentro do grupo. Na entrada em campo não vivenciei resistências por parte desses três profissionais. Pelo contrário, foram muito receptivos, viam a minha pesquisa como uma forma de despertar aspectos para a melhoria do trabalho com os grupos. Isso ficou notório na última reunião de equipe que participei, em 24 de setembro de 2012, quando Paula contou para os outros profissionais que, em sua avaliação, minha presença nos grupos foi boa, pois “trouxe um olhar de fora, valorizou o nosso trabalho e isso foi importante devido às críticas que recebemos dos colegas. Isso nos ajudou a repensar nossas práticas” (Notas do diário de campo).
É importante conhecer o ponto de vista da Paula sobre essas críticas: Às vezes quem é enfermeiro fica incomodado um pouco: ‘eu não vou ficar ajudando a doutora!’ ‘Isso aí é função do auxiliar [de enfermagem]’ Eu sou assim ó: se a pessoa não faz, eu faço! Se a pessoa quer assumir, eu deixo! Eu até falei: ‘olha, se vocês [enfermeiras] quiserem vir com uma proposta pra um trabalho e eu ficar só com a parte de fazer receita no final, eu até prefiro!’ Mas as pessoas se incomodam... E às vezes é uma desculpa! As coisas têm que andar! A gente precisa ter credibilidade com o paciente. Se a gente chega lá e diz: ‘hoje não tem grupo!’ ‘Hoje veio pouca gente, não vou fazer!’ [...] as coisas não dão certo. Por que os grupos se mantêm? Porque Ricardo, Helena e eu estamos lá todo dia, no mesmo horário.
Apesar desses conflitos trazerem à tona as diversas compreensões sobre o processo de trabalho na Estratégia de Saúde da Família, o que nos interessa aqui é a maneira pela qual esses conflitos podiam influenciar nos significados que esses trabalhadores atribuíam aos grupos e a suas práticas. Voltamos à questão que compõe o nome desta categoria temática: afinal, é um grupo para o quê? Desde 2001, o Ministério da Saúde, em seu esforço para reorganizar a atenção à pessoa que vive com DM2 (e hipertensão arterial), tem proposto a realização desses grupos nos serviços da atenção básica. No entanto, os documentos oficiais10,11 enfatizavam a premência dessas ações em saúde, mas sem instrumentalizar teórica e metodologicamente os profissionais para sua execução. Em última instância, esses documento colocavam a realização dos grupos como um imperativo técnico e moral aos membros das ESF, principalmente para médicos e enfermeiros8. Essa realidade tem começado a sofrer modificações, como resultado de estudos sobre o tema e das dificuldades dos profissionais em todo o Brasil. Em 2014, o Ministério da Saúde publicou um documento que traz elementos concretos que poderão auxiliar os profissionais na condução desses grupos12.
Por fim, o caráter “dividido” dos grupos que os colaboradores deste estudo apontaram, chama a atenção para a necessidade de uma perspectiva integrativa sobre suas “faces”. Para os informantes, portanto, os grupos Hiperdia traziam em sua “identidade” as marcas do dualismo que já não dá conta de explicar a complexidade das interações sociais engendradas naquele universo sociocultural. Logo, os grupos Hiperdia da Equipe Prata eram um híbrido de terapia e apoio que, no devir de seus arranjos, possibilitavam aos informantes (quiçá, para os pacientes) construírem outros significados para as normatizações da política de saúde e o dilema da cronicidade. Tal hibridização permitia a criação de saídas próprias às particularidades do trabalho em saúde.
Em síntese, a pluralidade de concepções de educação em saúde, os usos sociais dos grupos legitimados pelos profissionais e o caráter híbrido dos grupos, associados à ordem relacional instituída ao longo dos anos e renovada em cada encontro produzia um tipo de communitas relativa, na medida em que constituía um modelo de relacionamento humano fortemente marcado pelo vínculo e comunhão entre os indivíduos, não estruturado ou rudimentarmente estruturado e relativamente indiferenciado33. Adjetivei a communitas como “relativa” porque, como vimos, operam ali um conjunto de saberes, de práticas e de normas de orientação biomédica que instaura gradações e relações de saber-poder entre seus membros.
Ainda assim, nos significados atribuídos pelos colaboradores deste estudo, os grupos Hiperdia eram como uma família e, por isso, reproduzia em seu interior a mesma ordem moral da instituição familiar entre as classes populares brasileiras: a moral da reciprocidade fundamentada na obrigação fundamental de “dar, receber e retribuir contínuos”32. Seria a cumplicidade, os arranjos, as legitimações, as trocas e a confiança que vinculava esses sujeitos, fundada na mesma linguagem através da qual, segundo Sarti32, “os pobres traduzem o mundo social, orientando e atribuindo significado a suas relações dentro e fora de casa”?