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É necessário mudar a perspectiva sobre o câncer de mama: afastar o rastreamento e priorizar a agilidade no diagnóstico e tratamento

É necessário mudar a perspectiva sobre o câncer de mama: afastar o rastreamento e priorizar a agilidade no diagnóstico e tratamento

Autores:

Charles Dalcanale Tesser,
Thiago Luiz de Campos d'Ávila

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.32 no.5 Rio de Janeiro 2016 Epub 31-Maio-2016

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XCO020516

O comentário do professor Luiz Henrique Gebrim apresenta propostas relacionadas ao nosso artigo Por Que Reconsiderar a Indicação do Rastreamento do Câncer de Mama?. Ali discutimos especificamente o fundamento da recomendação do rastreamento mamográfico, questionando-a frente às evidências atuais internacionais, sem entrar no tema da detecção precoce mais amplamente, ou no grande e crucial problema da agilidade na conclusão diagnóstica e na realização do tratamento, priorizado corretamente por Gebrim para a realidade brasileira.

Todavia, quanto ao tema específico do nosso artigo e a posição nele defendida, o comentário quase silencia. Esse quase silêncio ou omissão poderia significar uma anuência aos nossos argumentos e posição relativamente contrária à manutenção da recomendação oficial brasileira de rastreamento mamográfico. Porém, ao final de seu comentário, Gebrim defende, sem nenhum argumento a não ser a ignorância sobre o "custo/efetividade ou o impacto (do rastreamento oportunístico) nos indicadores de mortalidade do país", a manutenção na saúde suplementar e no SUS do rastreamento mamográfico oportunístico do câncer de mama.

Permitimo-nos corrigir um efeito de sentido criado pelos dois últimos parágrafos de seu comentário: ao dizer que na saúde suplementar e em parte significativa do Sistema Único de Saúde (SUS) vem sendo realizado rastreamento mamográfico a partir dos 40 anos, e no parágrafo anterior afirmar que isto está em conformidade com diretrizes internacionais "validadas pelo Ministério da saúde", o comentário sugere que o Ministério da Saúde e diretrizes internacionais recomendam rastreamento a partir dos 40 anos, o que não é correto em geral: a maior parte dos programas organizados ocorre em países europeus, os quais, na maioria, como o Ministério da Saúde, recomendam o rastreamento a partir dos 50 anos, como registramos em nosso artigo. Lembramos que programas organizados de rastreamento são sabidamente superiores aos rastreamentos oportunísticos 1, e a Organização Mundial da Saúde condiciona a sua recente posição favorável ao rastreamento mamográfico à existência de programas organizados 2.

O comentário dá a entender que a recomendação do rastreamento mamográfico e a ênfase no mesmo fundamentam-se na escassez de dados e publicações no Brasil a respeito da atual realidade da assistência às pacientes; ou pelo menos são induzidas pela mesma, que "favorece a discussão para abordagens empíricas por muitas sociedades médicas, mídia, ONGs e até mesmo universidades públicas". Ao final, o autor parece mesmo adotar essa posição, ao reafirmar simplesmente que o rastreamento "deve secundariamente ser considerado".

O que fundamentamos no nosso artigo e aqui destacamos é que a existência dessa ignorância e escassez de dados e publicações sobre a relação danos x benefícios do rastreamento mamográfico na realidade brasileira, frente às evidências e publicações internacionais, exigem uma postura oposta, de suspensão da recomendação. Repetimos os motivos: considerando que esse rastreamento produz sabidamente danos significativos (sintetizados no nosso artigo), o ônus da prova da relação danos x benefícios favorável cabe aos propositores da intervenção. Ou seja, para haver recomendação de rastreamento deve haver provas de que o citado balanço seja amplamente favorável aos benefícios. Assim, a mamografia periódica só deve ser recomendada oficialmente às mulheres na presença dessas provas, que devem ser robustas, amplamente favoráveis, confiáveis e idôneas (sem conflitos de interesse). Na ausência delas e/ou no caso de dúvidas, polêmicas ou avaliações desfavoráveis ou duvidosas do balanço danos x benefícios (literatura internacional), a postura técnica e eticamente exigida, defensável, sustentável, recomendada e prudente é um ceticismo negativista resistente à intervenção.

Novamente repetimos para enfatizar: a garantia de benefícios, a tolerância aos danos e o manejo da incerteza são essencialmente diferentes no cuidado clínico ao adoecimento presente e nas ações preventivas (primárias específicas e secundárias) com grande potencial iatrogênico. No primeiro é aceitável postura de maior otimismo interventor pró-ativo, maior tolerância aos danos, maior margem de incerteza e ausência ou menor garantia de resultados, justificada pela pressão por tratamento derivada do adoecimento vivido e da expectativa de cura/controle/alívio do mesmo. Tudo isso é diferente na prevenção. As mulheres rastreadas são a priori saudáveis, todas expostas aos potenciais de riscos e danos sintetizados no nosso artigo. Nesse caso, há muito maior exigência de resultados favoráveis, com mínimos ou nulos danos, muito maior garantia de benefícios e muito menor margem de incerteza quanto ao resultado da intervenção. É fundamental não deixar que a pressão por intervenção e a angústia/pressão emocional/situacional da clínica de um adoecimento grave como o câncer (com terapêuticas agressivas e muito limitada efetividade em estágios avançados e graves) invada o raciocínio, o julgamento e a decisão para a recomendação de rastreamento.

Devido à atual avaliação de fracasso da mamografia como técnica de rastreamento 3 (pouca ou nenhuma redução de mortalidade a ela atribuída frente aos significativos danos), ou pelo menos dúvidas consistentes nessa avaliação, é fundamental e importante deslocar a discussão sobre o câncer de mama do rastreamento para a promoção da saúde e a prevenção primária inespecífica (redução do tabagismo, alimentação saudável etc.), bem como e, sobretudo, para a detecção precoce (que não o autoexame das mamas, devido ao seu desfavorável balanço danos x benefícios) e para o melhoramento institucional do SUS na sua capacidade de diagnose e tratamento das pacientes sintomáticas, que padecem por excesso de demora nesse processo. Mas, simultaneamente, é necessário, crucial e importantíssimo retificar as informações de divulgação científica e as orientações à população, pois é comum que folhetos, campanhas e informativos destaquem os benefícios do rastreamento sem fornecer informações sobre riscos e danos (ou minimizando-os), como falsos positivos, sobrediagnósticos e tratamentos excessivos, mesmo na Europa 4.

Por isso, concordamos com o grosso da perspectiva do comentário de Gebrim, embora não tenhamos base para um posicionamento detalhado sobre a proposta por ele defendida de agilização diagnóstica, considerando a heterogeneidade regional, a extensão territorial e a pequenez da grande maioria das cidades brasileiras. A esse respeito, destacamos que um maior investimento em extensão e qualificação do cuidado clínico prestado pelas equipes de Saúde da Família − com redução do número de pessoas vinculadas às equipes e facilitação do acesso 5), (6 − e melhor formação dos médicos ali atuantes (através da expansão das residências em Medicina de Família e Comunidade), associado a uma efetiva regionalização e expansão da atenção especializada articulada com as equipes de saúde da família, são passos incontornáveis e necessários para a melhoria na agilidade da diagnose dos casos suspeitos e na rapidez de provisão da terapêutica. Isso deve ser prioridade na discussão do tema do cuidado ao câncer de mama no SUS e no país.

REFERÊNCIAS

1. Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Rastreamento. (acessado 07/Abr/2016).
2. World Health Organization. WHO position paper on mammography screening. (acessado em 07/Abr/2016).
3. Baum M. 'Catch it early, save a life and save a breast': this misleading mantra of mammography. J R Soc Med 2015; 108:338-9.
4. Gummersbach E, Piccoliori G, Zerbe CO, Altiner A, Othman C, Rose C, et al. Are women getting relevant information about mammography screening for an informed consent: a critical appraisal of information brochures used for screening invitation in Germany, Italy, Spain and France. Eur J Public Health 2010; 20:409-14.
5. Tesser CD, Norman AH. Repensando o acesso ao cuidado na Estratégia Saúde da Família. Saúde Soc 2014; 23:869-83.
6. Norman AH, Tesser CD. Acesso ao cuidado na Estratégia Saúde da Família: equilíbrio entredemanda espontânea e prevenção/promoção da saúde. Saúde Soc 2015; 24:165-79.