versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.45 no.6 São Paulo 2019 Epub 14-Out-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1806-3713/e20190171
A investigação do sintomático respiratório (SR), pessoa com tosse e expectoração por três semanas ou mais, por meio de duas baciloscopias de escarro é orientada pela Organização Mundial da Saúde - desde a estratégia directly observed treatment short course (tratamento diretamente observado de curta duração) - como atividade primordial para o diagnóstico precoce da tuberculose.
O Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT) estima prevalências de 1% e 5%, respectivamente, de SR na população geral e nos consultantes com idade ≥ 15 anos que buscam atendimento em Unidades de Saúde (US); 4% desses são casos de tuberculose pulmonar ativa. A Organização Mundial da Saúde, ao avaliar pesquisas realizadas em regiões em desenvolvimento, estima uma prevalência de 5% de SR na demanda dos serviços de saúde.1 Essas taxas referem-se a diferentes panoramas epidemiológicos, e, portanto, há a possibilidade de variações conforme as características do serviço de saúde e da população local.
Muitas pesquisas dedicaram-se à estimativa de SR em apenas um dos cenários: comunidade ou US. Em Vitória2 e no Rio de Janeiro,3 taxas de SR em US foram de 4,0% e 10,7%, respectivamente. Já no Distrito Federal,4 a prevalência de SR na comunidade variou de 4,8% a 5,7%. Estudos simultâneos, na comunidade e entre os consultantes de US são escassos na literatura.
O objetivo do presente estudo foi conhecer a prevalência de SR e tuberculose em Paranaguá, município com elevada incidência (99/100.000 habitantes) desse agravo. Efetuou-se um estudo descritivo com a realização de dois inquéritos: um populacional e um sobre a demanda em US entre setembro e novembro de 2010, ano em que as incidências de tuberculose no Paraná e no Brasil, foram de, respectivamente, 23/100.000 habitantes e 37/100.000 habitantes.
Para a amostra ser representativa da comunidade e da população atendida em US, realizou-se uma amostragem por conglomerados (indicada para estudos populacionais),5 ponderada pelo tamanho da população e número de consultas no ano anterior; assim, bairros mais populosos e US com maior número de consultas tiveram maior número de conglomerados. No inquérito populacional (domicílios), excluíram-se moradores dos setores censitários especiais/aglomerados subnormais,6 cujas prevalências são sabidamente elevadas. Nas US, o inquérito foi constituído pelos consultantes que buscaram atendimento nas US básicas e na Estratégia Saúde da Família, independentemente do motivo da procura. Em ambos, a idade mínima foi de 10 anos e aplicou-se um questionário sobre dados sociodemográficos, tempo de tosse, assim como sinais e sintomas relacionados à tuberculose.
A fórmula para cálculo do tamanho amostral foi a de amostra aleatória simples - n = Nz2p(1 − p)/[d2(N − 1) + z2p(1 − p)] - multiplicada pelo efeito do desenho (ED = 2) para corrigir a diferença no tamanho amostral (correlação introduzida por conglomerados).2,5
A amostra comunitária foi constituída por 1.020 moradores sorteados em 30 conglomerados, envolvendo os 17 bairros mais populosos, com aproximadamente 30 pessoas em cada conglomerado (p = prevalência de SR = 1%). A amostra estimada para os consultantes nas US foi de 757 consultantes sorteados em 25 conglomerados das nove US em funcionamento (p = 5% do total de consultas). Para ambas as amostras, z2 = 1,96 e d = 2%.
Indivíduos com tosse produtiva, independentemente do tempo desse sintoma, foram classificados como indivíduos com tosse; se a tosse perdurasse 21 dias ou mais, foram identificados como SR. Definiu-se como tuberculose pulmonar confirmada bacteriologicamente os casos com qualquer tipo de exame bacteriológico positivo e tuberculose pulmonar não confirmada bacteriologicamente aqueles casos cujo diagnóstico foi estabelecido por critérios clinicorradiológicos.
Para todos os indivíduos com tosse foi recomendada a coleta de escarro para a realização de duas baciloscopias e cultura para BAAR. O frasco para a coleta de escarro era entregue imediatamente, tanto na US como no domicílio. Efetuou-se a dupla digitação dos dados dos questionários, e foi utilizado o programa Epi data para validar as variáveis. Dois anos depois do período do estudo, realizou-se a busca dos indivíduos com tosse e dos SR que não realizaram os exames durante o estudo, para excluir a possibilidade de que houvesse casos de tuberculose entre os não investigados (Tabela 1). O teste do qui-quadrado foi utilizado para comparar a diferença entre proporções e verificar se essas diferiam significativamente; em frequências menores que 5, utilizou-se o teste exato de Fisher. O nível de significância adotado foi de 5%, e os testes estatísticos foram efetuados pelo pacote estatístico Stata versão 13.0 (StataCorp LP, College Station, TX, EUA).
Tabela 1 Distribuição da amostra na comunidade e nas unidades de saúde segundo exames realizados, desfecho e tempo de tosse produtiva em dias, Paranaguá (PR).
Variáveis | Tempo de tosse produtiva em dias | IC95% | p* | |||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1-7 | 8-14 | 15-20 | ≥ 21 | Total | ||||||||
n | % | n | % | n | % | n | % | n | % | |||
Comunidade | ||||||||||||
Baciloscopia BAAR 1a amostra | ||||||||||||
• Realizada | 22 | 48,9 | 5 | 62,5 | 5 | 62,5 | 9 | 32,1 | 41 | 43,6 | 33,4-54,2 | 0,65 |
• Não realizada | 23 | 51,1 | 8 | 37,5 | 3 | 37,5 | 19 | 67,9 | 53 | 56,4 | 45,8-66,6 | |
Baciloscopia BAAR 2a amostra | ||||||||||||
• Realizada | 21 | 46,7 | 5 | 62,5 | 5 | 62,5 | 9 | 32,1 | 40 | 42,5 | 32,4-53,2 | 0,66 |
• Não realizada | 24 | 53,3 | 8 | 37,5 | 8 | 37,5 | 19 | 67,9 | 54 | 57,5 | 46,8-67,6 | |
Cultura para BAARa | ||||||||||||
• Realizada | 16 | 35,5 | 4 | 30,7 | 3 | 37,5 | 5 | 17,9 | 28 | 29,8 | 20,8-40,1 | 0,14 |
• Não realizada | 29 | 65,5 | 9 | 69,3 | 5 | 62,5 | 23 | 82,1 | 66 | 70,2 | 59,9-79,2 | |
Radiografia de tórax | ||||||||||||
• Realizada | 14 | 31,1 | 3 | 23,0 | 3 | 37,5 | 7 | 25,0 | 27 | 28,8 | 19,8-39,0 | 0,39 |
• Não realizada | 31 | 68,9 | 10 | 77,0 | 5 | 62,5 | 21 | 75,0 | 67 | 71,2 | 61,0-80,1 | |
Desfecho | ||||||||||||
• Não TB (baciloscopia e cultura negativas; clínica) | 28 | 62,2 | 8 | 61,5 | 5 | 37,5 | 13 | 46,4 | 54 | 57,4 | 47,8-67,6 | 0,48 |
• Não TBb (visita domiciliar, telefonema, sistemas de notificação) | 17 | 37,8 | 5 | 38,5 | 3 | 62,5 | 15 | 53,6 | 40 | 42,6 | 32,4-53,2 | |
Unidade de saúde | ||||||||||||
Baciloscopia BAAR 1a amostra | ||||||||||||
• Realizada | 16 | 32,0 | 1 | 33,3 | 3 | 25,0 | 7 | 70,0 | 27 | 40,2 | 28,5-53,0 | 0,10 |
• Não realizada | 34 | 68,0 | 2 | 66,7 | 1 | 75,0 | 3 | 30,0 | 40 | 59,8 | 47,0-71,5 | |
Baciloscopia BAAR 2a amostra | ||||||||||||
• Realizada | 16 | 32,0 | 1 | 33,3 | 3 | 25,0 | 7 | 70,0 | 27 | 40,2 | 28,5-53,0 | 0,10 |
• Não realizada | 34 | 68,0 | 2 | 66,7 | 1 | 75,0 | 3 | 30,0 | 40 | 59,8 | 47,0-71,5 | |
Cultura para BAARc | ||||||||||||
• Realizada | 10 | 20,0 | 1 | 33,3 | 2 | 50,0 | 6 | 60,0 | 19 | 28,3 | 18,0-40,7 | 0,47 |
• Não realizada | 40 | 80,0 | 2 | 66,7 | 2 | 50,0 | 4 | 40,0 | 48 | 71,7 | 59,3-82,0 | |
Radiografia de tóraxd | ||||||||||||
• Realizada | 11 | 20,8 | 0 | 0 | 2 | 50,0 | 4 | 44,5 | 17 | 26,1 | 16,0-38,5 | 0,25 |
• Não realizada | 38 | 79,2 | 3 | 100,0 | 2 | 50,0 | 5 | 55,5 | 48 | 73,9 | 61,5-84,0 | |
Desfecho | ||||||||||||
• TB pulmonare | 1 | 2,0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 10,0 | 2 | 3,0 | 0,4-10,4 | 0,68 |
• Não TB (baciloscopia e cultura negativas; clínica) | 11 | 22,0 | 3 | 100,0 | 4 | 100,0 | 9 | 90,0 | 27 | 40,3 | 28,5-52,9 | |
• Não TBf (visita domiciliar, telefonema, sistemas de notificação) | 38 | 76,0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 38 | 56,7 | 44,0-68,8 |
TB: tuberculose. aDe 37 amostras coletadas, 9 foram descartadas: amostras insuficientes, em 5; vazamento, em 3; e contaminação, em 1. bDois anos depois do período do estudo, os pacientes que não realizaram os exames foram contactados: 15 localizados encontravam-se assintomáticos; 2 sintomáticos respiratórios realizaram novos exames (baciloscopia, cultura e radiografia de tórax); e 23 não localizados foram pesquisados no Sistema de Informação de Mortalidade e no Sistema de Informação de Agravos de Notificação, sem notificação de tuberculose. cDe 27 amostras coletadas, 8 foram descartadas por serem insuficientes. dSem informação em 2; excluídos da análise. eConfirmação por critérios clinicorradiológicos (baciloscopia negativa), em 1; e confirmação bacteriológica (cultura positiva para BAAR), em 1. fDois anos depois do período do estudo, os pacientes que não realizaram os exames foram contactados: 11 localizados encontravam-se assintomáticos; e 27 não localizados foram pesquisados no Sistema de Informação de Mortalidade e no Sistema de Informação de Agravos de Notificação, sem notificação de tuberculose. *Teste exato de Fisher.
A taxa de realização de exames foi baixa tanto na comunidade quanto nas US (Tabela 1). Apesar da entrega imediata do frasco para a coleta do escarro, a maioria dos indivíduos preferiu realizar a coleta posteriormente e não retornou o material na US.
Na comunidade, entre 94 indivíduos com tosse, 28 eram SR (prevalência de 2,7%; IC95%: 1,8-3,9%), enquanto nas US, entre 67 indivíduos, 10 eram SR (prevalência de 1,3%; IC95%: 0,6-2,4%). A tuberculose foi identificada em 1 indivíduo com tosse de 5 dias e em 1 SR, o que corresponde a prevalência de 3% de tuberculose entre todos os indivíduos com tosse nas US.
A presente pesquisa de base populacional buscou preencher uma lacuna na literatura, ao ser conduzida na comunidade e nas US. A exclusão de assentamentos irregulares6 buscou minimizar o viés de seleção mas pode ter colaborado na subestimativa de tuberculose, assim como a baixa realização de exames de escarro, sendo ambas limitações do estudo.
Ao se avaliar a prevalência de SR na comunidade, ela foi maior que a estimada pelo PNCT. Foram encontrados resultados semelhantes na Índia (2,7%),7 Peru (3,3-3,8%)8 e em algumas áreas do Distrito Federal (4,8-5,7%).4 Essas regiões tinham em comum a alta endemicidade da tuberculose.
Não se encontraram casos de tuberculose no inquérito populacional, o que vai ao encontro de estudos que propõem que a investigação ativa de SR ocorra em grupos com maior risco de adoecimento e não na comunidade em geral. Vários autores apontam que a busca de SR no domicílio pode detectar casos de tuberculose, mas que essa não seria custo-efetiva, sendo indicada em moradores em situação de rua, drogaditos, população privada de liberdade, imigrantes, contatos de tuberculose, portadores de HIV/AIDS, moradores em áreas carentes, entre outros.9,10
A taxa de prevalência de SR nas US foi menor que a estimada pelo PNCT e em outros estudos.1) Isso seria explicado pelo predomínio da clientela feminina, cujas características são o maior cuidado com a saúde e a procura por atendimento mais rapidamente quando apresentam tosse. A identificação de casos de tuberculose em indivíduos com menor tempo de tosse nas US reforça a importância da investigação da tosse independentemente do tempo referido desse sintoma.3 Cabe a reflexão de que as taxas de SR e tuberculose são influenciadas pelas características da população, dos serviços de saúde, entre outros. Isso deve ser considerado ao se utilizar esses indicadores no planejamento e monitoramento das ações de controle de tuberculose em diferentes cenários.