versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762
Interface (Botucatu) vol.20 no.56 Botucatu jan./mar. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015.0700
Na realidade brasileira, o debate e as práticas apoiadas na educação interprofissional (EIP) são recentes1. A despeito disso, há importantes acúmulos históricos que constroem um contexto fértil para sua ampliação e fortalecimento, tendo em vista que a concepção e a proposta da EIP estão fortemente alinhadas com os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS)2. Este constitui a política pública de saúde do país e preconiza: universalidade do acesso, integralidade, participação social e a atenção básica à saúde como ordenadora do cuidado3.
Neste editorial, assinalamos processos sociais e políticos que têm contribuído para o desenvolvimento da prática interprofissional no Brasil. Também resumimos os resultados do I Colóquio internacional, que se constituiu num importante fórum para discussão e debate da educação e colaboração interprofissional. Finalmente, baseados nas discussões do colóquio, detalhamos a necessidade de se estabelecer uma rede colaborativa de educação e prática interprofissional.
Este editorial também marca uma iniciativa de colaboração dos editores do Journal of Interprofessional Care e da Interface - Comunicação, Saúde, Educação para publicar editoriais em inglês e português que delineiam uma série de questões críticas relacionadas com o avanço da colaboração interprofissional no Brasil.
O processo social e político de construção do SUS4 , ancorado nos princípios acima referidos, levou ao reconhecimento da necessidade do trabalho em equipe interprofissional e interdisciplinar, em especial na atenção primária e nas redes de atenção à saúde.
Essa trajetória permitiu formular propostas inovadoras de desenvolvimento do trabalho em equipe centrado nas necessidades das pessoas no âmbito individual e coletivo. Estudos mostram que existem iniciativas na atenção básica, na saúde mental e em hospitais públicos, entre outros, que revelam “êxitos a partir da reorganização do modus operandi de suas equipes com base em um modelo tecnoassistencial que favorece a colaboração interprofissional”5 (p. 254).
Não obstante as experiências de sucesso, o trabalho em equipe no Brasil ainda tem um longo caminho pela frente para se consolidar como uma prática eficaz para superar o tradicional processo de trabalho fragmentado, se tomarmos como referência o quadro das práticas colaborativas interprofissionais proposto como meta global pela Organização Mundial da Saúde6.
Esse contexto promissor e a necessidade de reforçar as políticas públicas para uma reorientação da formação profissional de saúde foram o ponto de partida para a realização do I Colóquio Internacional de Educação e Trabalho Interprofissional, em Natal (Rio Grande do Norte, na região Nordeste do Brasil ), nos dias 12 e 13 de julho de 2015.
O colóquio foi organizado pelas: Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN), Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde do Ministério da Saúde, e Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Importantes universidades brasileiras foram participantes-chave na organização: Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com apoio de projetos Pró-Ensino na Saúde da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
O evento contou com a participação de: professores universitários, estudantes de graduação e pós-graduação, residentes, profissionais dos serviços de saúde, gestores de serviços de saúde e pesquisadores de diversos estados e universidades brasileiras. O Colóquio contemplou tanto a realidade nacional como internacional.
Foram analisados quatro grandes temas durante o colóquio: (1) papel da educação e prática interprofissional na promoção da equidade em saúde, abordagem que precisa ser intensificada dada a enorme desigualdade presente no país; (2) a EIP no âmbito das políticas nacionais de reorientação da formação de profissionais de saúde no Brasil, com ênfase no papel indutor desempenhado pelo Ministério da Saúde no cenário atual; (3) a necessidade de desenvolvimento de pesquisa sobre EIP e prática interprofissional PI, que possa mostrar o impacto tanto sobre a qualidade da formação quanto da atenção à saúde; e (4) reflexões sobre iniciativas pioneiras de EIP no Brasil, articuladas com a perspectiva intersetorial.
Foram apresentadas experiências de EIP que representam inovações amplas em universidades federais do país. A Unifesp, campus Baixada Santista, implantou, em 2006, um currículo integrado interprofissional abrangendo seis cursos da saúde, orientado pela EIP para o trabalho em equipe e prática colaborativa; a Faculdade de Ceilândia (FC) da Universidade de Brasília (UnB), instalada em 2008, criou cinco cursos de graduação da saúde integrados, e representou o acolhimento de expressiva demanda dos movimentos sociais da comunidade local para o acesso à universidade pública e gratuita; e a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), criada em 2013, que adotou a formação em ciclos para maior flexibilidade no percurso do Ensino Superior, iniciando com o Bacharelado Interdisciplinar em Saúde, e seguindo, se for opção do estudante, com formação específica em uma área profissional da saúde e, depois, na pós-graduação.
Todas essas iniciativas foram consideradas modelos de mudanças do processo de formação, e são especialmente relevantes, considerando o atual contexto de expansão de universidades e cursos da área da saúde para cidades do interior do Brasil e a implantação de programas e políticas públicas direcionadas para consolidar o modelo de atenção à saúde centrado na AB.
As discussões do Colóquio salientaram, também, a importância das políticas indutoras para a reorientação da educação dos profissionais de saúde desenvolvidas pelo Ministério da Saúde em parceria com o Ministério da Educação: o Programa de Educação pelo Trabalho em Saúde (PET Saúde) e a Residência Multiprofissional.
A primeira constitui estratégia para promover a integração ensino-serviço-comunidade, a partir da formação de grupos de trabalho que envolvem docentes, estudantes de diferentes cursos de graduação e profissionais de saúde. É uma “aposta” na qualificação do processo de ensino-aprendizagem de estudantes pelo trabalho na rede de atenção à saúde, que promove a inserção efetiva dos estudantes na atenção básica, em especial, na Estratégia Saúde da Família. Desse modo, o PET-Saúde configura-se como locus privilegiado de integração entre as atividades de atenção à saúde e da formação em saúde.
Uma visão geral da EIP no Brasil, em um artigo recente que mapeou iniciativas no contexto global, incluindo a América Latina2, mostra um conjunto de experiências ainda tímido e disperso na extensão e diversidade do território nacional. Um dos pontos fortes do Colóquio foi evidenciar a necessidade de se sistematizar a variedade de experiências que estão sendo desenvolvidas nas diferentes regiões do Brasil. Também foi destacada a necessidade de divulgação do que vem sendo realizado, como contribuição para se pensar e refletir criticamente sobre esses cenários de implementação da EIP, somando forças na superação das dificuldades e na reivindicação pela continuidade de políticas indutoras duradouras e sólidas.
Como resultado do Colóquio, foram elencadas ações e áreas que requerem investimentos para o fortalecimento da EIP no Brasil: criação de núcleos locais e regionais para mobilização em torno da EIP e obtenção do necessário apoio institucional das universidades para introduzir e consolidar iniciativas com esta abordagem; manutenção das políticas indutoras do Ministério da Saúde e da Educação, como PET-Saúde e Residência Multiprofissional; construção de uma Rede Colaborativa em Educação e Trabalho Interprofissional em Saúde que permita trocas, aprendizado e ampliação da EIP, e práticas colaborativas no país, e uma Rede das novas escolas médicas que permita fortalecer as inovações e ampliar o diálogo com a formação em todas as outras profissões da saúde; diálogo e colaboração com outras comunidades internacionais de EIP; desenvolvimento de pesquisas que produzam evidências sobre as experiências brasileiras de EIP, seus impactos na qualidade da formação e dos serviços de saúde, bem como contribuições para avançar no compartilhamento de conceitos e terminologias.
Há muito por fazer no Brasil, e os avanços requerem não somente diálogo, mas, também, a efetiva articulação entre todos os envolvidos com a atenção à saúde e a formação dos profissionais – universidades, profissionais, gestores de serviços em todos os níveis de governo, órgãos de regulação das profissionais, usuários e população. Com este movimento, busca-se superar os modelos dominantes de educação e prática uniprofissional, que já não respondem mais aos desafios e à complexidade das necessidades de saúde.