versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.42 no.6 São Paulo nov./dez. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/s1806-37562016000000098
A terapia inalatória é a modalidade mais efetiva para o tratamento da asma e da DPOC. Os diversos tipos de inaladores disponíveis no mercado têm especificações diferentes e exigem técnicas diferentes, levando a uma série de erros na realização, reduzindo assim a eficácia do tratamento e a adesão ao mesmo. Até 76% dos pacientes cometem algum tipo de erro na técnica inalatória.1 Evidências crescentes sugerem que o ensino e a revisão da técnica inalatória têm um impacto positivo no controle da doença.2,3 Este estudo foi realizado no contexto de um ensaio intervencionista, com o objetivo de avaliar o impacto do ensino da técnica inalatória no controle clínico e funcional de pacientes com asma ou DPOC. Resultados preliminares contendo a análise transversal basal dos pacientes incluídos no ensaio foram publicados anteriormente.4 Os resultados sugerem uma relação significativa entre o número de erros cometidos e o nível de controle clínico e funcional alcançado em pacientes com asma.
Foram incluídos pacientes com asma ou DPOC, todos em tratamento com pelo menos um dispositivo inalatório. Os pacientes foram avaliados em duas visitas distintas, com intervalo de seis a oito meses entre as mesmas. Após a primeira visita, os pacientes foram ensinados a usar os dispositivos corretamente. A técnica inalatória foi avaliada apenas para o principal dispositivo de tratamento, e, portanto, o uso de dispositivo para alívio dos sintomas não foi avaliado. As variáveis estudadas foram dados demográficos; controle clínico - por meio do Asthma Control Test (ACT), Control of Allergic Rhinitis and Asthma Test (CARAT), escala modificada do Medical Research Council (mMRC) e COPD Assessment Test (CAT); controle funcional - VEF1 absoluto (em porcentagem do valor previsto e em ml), PFE (em porcentagem do valor previsto e em ml), CVF (em ml e em porcentagem do valor previsto), relação VEF1/CVF, FEF25-75% e SpO2; e número de etapas da técnica inalatória realizadas corretamente (por definição, etapa 1: acionamento do dispositivo; etapa 2: expiração prévia; etapa 3: inspiração; e etapa 4: apneia final de 5-10 s). Os dados foram compilados no programa Microsoft Office Excel 2010, e as análises estatísticas foram realizadas utilizando-se o programa IBM SPSS Statistics, versão 20.0 (IBM Corporation; Armonk, NY, EUA). O nível de significância adotado foi de p < 0,05.
Dos 62 pacientes inicialmente convidados para participar do estudo, 18 o abandonaram. Portanto, 44 pacientes foram incluídos na reavaliação de acompanhamento (média de idade, 59 ±16 anos). Dos 44 pacientes da amostra, 21 (47,8%) eram homens e 23 (52,2%) eram mulheres. Entre os 44 pacientes, 23 (52,2%) e 21 (47,8%) foram diagnosticados com asma e DPOC, respectivamente. Na primeira visita, um número pequeno de erros técnicos associou-se significativamente com o ensino prévio da técnica inalatória (p < 0,05; teste exato de Fisher) e com a idade (p < 0,05; R = 0,13; coeficiente de correlação de Pearson), embora não com o tempo de diagnóstico em anos (coeficiente de correlação de Pearson). Houve associação entre menor número de erros e melhor controle clínico no grupo asma, indicado pelas pontuações do ACT (diferença média máxima: 11,6 pontos) e do CARAT (diferença média máxima: 12,3 pontos; p < 0,05; ANOVA). No entanto, embora um padrão gráfico semelhante tenha sido encontrado no grupo DPOC, as diferenças dentro desse grupo não foram estatisticamente significativas.
A Figura 1 inclui os principais resultados obtidos. Na segunda visita, houve uma diminuição significativa no número de erros após a sessão educativa, com uma diminuição média de 0,7 erro (variação: 0,29-1,02; p < 0,05; teste t para amostras pareadas). Entre os 44 pacientes, 20 (46%) melhoraram sua técnica inalatória, com resultados significativos encontrados na etapa 2 (melhora relativa de 45,5%) e na etapa 4 (melhora relativa de 52%; teste t para amostras pareadas para ambas). No grupo asma, houve melhora dos parâmetros funcionais (em porcentagem dos valores previstos) após a intervenção: a média do VEF1 aumentou de −10,26% para −2,52% (melhora relativa de 6,4%); a média da CVF aumentou de −12,99% para −4,14% (melhora relativa de 8,6%); e a média do PFE aumentou de −14,35% para −2,35% (melhora relativa de 8,3%). Ao compararmos os valores dos parâmetros funcionais antes e após a intervenção, observamos que as diferenças foram significativas (p < 0,05 para todos; teste t para amostras pareadas). Além disso, a melhora da técnica inalatória correlacionou-se significativamente com uma melhora na pontuação do CARAT (OR = 14,4; p < 0,05; teste exato de Fisher), embora não na do ACT. No entanto, com relação ao grupo asma, se definíssemos um aumento > 4 pontos na pontuação do CARAT como melhora clinicamente significativa de controle, constataríamos que apenas 5 participantes (23,8%) preencheram o critério para essa melhora. Utilizando a mesma abordagem, se estabelecêssemos um aumento > 3 pontos na pontuação do ACT como melhora clinicamente significativa de controle, constataríamos que apenas 8 participantes (38,0%) preencheram o critério. No grupo DPOC, não houve variações significativas nas variáveis de controle clínico e funcional. No entanto, se definíssemos um aumento > 1 ponto na pontuação da escala mMRC como melhora clinicamente significativa de controle, constataríamos que 6 pacientes (28,6%) preencheram o critério. Se definíssemos um aumento > 2 pontos na pontuação do CAT como melhora clinicamente significativa de controle, constataríamos que 5 participantes (23,8%) preencheram o critério.
Figura 1 Número de participantes que usaram o dispositivo inalatório corretamente, de acordo com as etapas pré-estabelecidas (em A); número de erros cometidos na técnica inalatória na primeira e segunda visitas (em B); e parâmetros de controle funcional na primeira e segunda visitas nos grupos asma e DPOC (em C). *p < 0,05; teste t para amostras pareadas.
Em uma análise post hoc dos parâmetros funcionais, em valores absolutos (ml), observamos melhora estatisticamente significativa do VEF1 no grupo DPOC (aumento médio: 145,7 ml; IC95%: 11,7-279,8; p = 0,035; teste t para amostras pareadas). No grupo asma, houve melhora, embora a diferença não tenha sido estatisticamente significativa (aumento médio: 105,9 ml; IC95%: −47,6 a 259,4; p = 0,17; teste t para amostras pareadas). Para o PFE (em ml), houve melhoras que se mostraram estatisticamente significativas no grupo asma (aumento médio: 460 ml; IC95%: 30,9-890,0; p = 0,037; teste t para amostras pareadas), mas não no grupo DPOC (aumento médio: 212,9 ml; IC95%: −184,0 a 609,7; p = 0,276; teste t para amostras pareadas)
Esses resultados mostram que a maioria dos pacientes comete erros na técnica inalatória, e isso parece se associar com a idade e o treinamento prévio sobre a técnica. Os pacientes mais jovens cometem menos erros, o que pode ser decorrente de diferenças nos níveis de alfabetização. O pequeno tamanho da amostra pode ter reduzido o poder estatístico de alguns achados, como a associação com o tempo de diagnóstico em anos. Nossos resultados também mostram que técnica inalatória adequada associou-se com melhor controle clínico nos pacientes com asma, e melhorar a técnica poderia também afetar os parâmetros funcionais, principalmente aqueles diretamente relacionados à obstrução das vias aéreas, como o VEF1, a CVF e o PFE. Ao compararmos as pontuações do CARAT e do ACT, observamos que aquelas foram mais sensíveis na detecção de tais alterações, possivelmente porque o CARAT é uma teste clínico mais abrangente.5 Nos pacientes com DPOC, não foi observada melhora significativa, nem no controle clínico nem nos parâmetros funcionais (em porcentagem do valor previsto), o que, como mencionado anteriormente, pode ser decorrente do pequeno tamanho da amostra ou até das diferenças fisiopatológicas entre as doenças. No entanto, alguns desses pacientes apresentaram melhora clinicamente significativa após o ensino da técnica inalatória, o que sustenta a hipótese de que amostras maiores e treinamento contínuo podem ser mais acurados na detecção de diferenças estatisticamente significativas. No entanto, observamos alguma melhora do desempenho funcional (VEF1 em ml). Embora esse achado tenha sido estatisticamente significativo, o VEF1 em porcentagem do valor previsto não o foi. Essa discrepância pode ser explicada pelo fato de que mais de 50% de nossos pacientes com DPOC foram classificados como estágio 1 ou 2 de acordo com os critérios da Global Initiative for Chronic Obstructive Lung Disease . Portanto, esses pacientes apresentaram maiores valores de VEF1, o que quer dizer que um aumento relativo de 145,7 ml representou uma pequena parcela do valor total, levando à subestimação desse achado. Além disso, pacientes com DPOC grave são mais velhos do que os com formas mais brandas da doença e, portanto, são menos sensíveis à educação para melhora da técnica inalatória e, consequentemente, ao seu potencial impacto benéfico. Em nosso estudo, embora o ajuste para idade não tenha tido efeito nos resultados da análise estatística dos impactos clínicos e funcionais, a idade se mostrou um fator determinante na realização de testes de técnica inalatória. Novos estudos devem ser realizados com populações idosas, pois elas têm características particulares que podem influenciar a técnica inalatória e seu impacto. O fato de que a obstrução das vias aéreas é mais reversível em pacientes com asma pode também justificar a maior diferença em suas medidas funcionais, bem com em sua percepção dos sintomas respiratórios. Esses achados são compatíveis como os obtidos em outro estudo.6 Atualmente está em andamento um grande ensaio com o objetivo de abordar o impacto de diferentes abordagens educativas em pacientes com DPOC, e espera-se que seus resultados sejam esclarecedores.7
O estabelecimento de um programa de consultas de vigilância na atenção primária à saúde poderia representar uma solução para o problema do conhecimento limitado do paciente sobre a técnica inalatória adequada, permitindo o tratamento de um maior número da pacientes na população geral. Nessa rede, outros profissionais de saúde, como médicos de outras especialidades, terapeutas respiratórios, enfermeiros e farmacêuticos, poderiam ser envolvidos na educação desses pacientes. Alguns estudos testaram o ensino da técnica inalatória e sugeriram que rechecagem e cursos de reciclagem regulares são necessários, pois a técnica inalatória adequada se deteriora após a intervenção inicial.8,9 A perda de habilidades é acompanhada pela deterioração do controle da asma a partir de três meses após a intervenção. Embora diversas estratégias possam ser utilizadas a fim de fornecer esse tipo de intervenção educativa, a mesma se dá de forma mais eficiente por meio de instruções verbais e demonstrações físicas da técnica por um educador qualificado, em vídeo ou presencialmente, como fizemos em nosso estudo.8,9 Algumas outras técnicas educativas devem ser estudadas e testadas em estudos com desenhos apropriados, como os que envolvem grandes coortes que fornecem grandes conjuntos de dados de acompanhamento. Além disso, devem-se abordar formas alternativas de integrar equipes multidisciplinares e diferentes profissionais de saúde e também o efeito de treinar esses profissionais para educar adequadamente seus pacientes no uso dos inaladores.
Concluímos que o ensino da técnica inalatória melhora o desempenho dos pacientes, levando à melhora do controle clínico e funcional da asma. Em DPOC, a marcante característica fisiopatológica de obstrução irreversível pode limitar esse benefício. Novos estudos sobre a asma devem enfocar desfechos do paciente que importam, em termos do impacto do ensino da técnica inalatória no desempenho da mesma pelo paciente, como a redução do risco de exacerbações. A mesma abordagem deve ser adotada para pacientes com DPOC, ajustando-se os tamanhos das amostras para a otimização do poder estatístico dos ensaios de controle randomizados e a obtenção de boas evidências.