versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.81 no.5 São Paulo set./out. 2015
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2015.07.004
O emprego da imitância acústica com frequência de 220 Hz tem contribuído para o diagnóstico clínico das alterações de orelha média, principalmente aquelas que promovem alteração da rigidez do sistema. Vários autores têm sugerido que o emprego de frequências adicionais aos 220 Hz possa fornecer dados sobre o comportamento tímpano-ossicular, principalmente quando estimulado por tons agudos.1 6
Uma linha alternativa de pesquisa no funcionamento da orelha média em adultos e crianças tem usado medidas da imitância acústica em um ambiente de pressão estática com uma ampla faixa de frequência7: são os chamados testes de admitância e reflectância. A reflectância acústica é a razão da energia refletida de uma superfície sobre a energia que atinge a superfície (energia incidente). Este conceito revela quanto de energia é refletida pela membrana timpânica e quanto é absorvida pela orelha média. Os sistemas de reflectância acústica podem medir uma ampla faixa de frequência, e como a reflectância acústica está matematicamente relacionada com a impedância e admitância, é possível derivar qualquer quantidade de imitância das medidas da reflectância.
Ao longo dos anos, as medidas de reflectância acústica têm sido citadas como uma importante ferramenta na avaliação das afecções da orelha média.7 12 As medidas de reflectância acústica têm vantagens potenciais em relação à timpanometria, particularmente na população infantil. Primeiro, não é necessária a pressurização do canal auditivo e com isso não há distorção no canal. Segundo, as medidas são realizadas em uma faixa de frequências ao contrário de uma única frequência avaliada, como na timpanometria. E, finalmente, as medidas podem ser obtidas rapidamente. Sendo assim, é possível que as medidas de reflectância acústica possam proporcionar mais informaçõese de forma mais rápida que a timpanometria, no diagnóstico das disfunções de orelha média.
O sistema auditivo é constituído por vias auditivas aferentes e eferentes que atuam integradamente. A via auditiva eferente possui conexões desde o córtex até as estruturas mais periféricas. Desta via, são destacados os sistemas de neurônios motores eferentes, sendo o trato olivococlear responsável pelo envio de fibras ao órgão espiral e aos neurônios motores dos músculos da orelha média.13 16
Tem havido crescente interesse no estudo da estimulação acústica contralateral e no seu efeito na ativação da via eferente auditiva. Estudos têm demonstrado que a introdução de estímulo simultâneo na orelha contralateral gera mudanças no padrão de respostas auditivas, tanto em medidas de emissões otoacústicas (EOA) como em potenciais evocados auditivos (PEA), sendo observada redução da amplitude de respostas17 20 como em imitância acústica, cujos estudos revelam aumento do limiar de reflexos.21 22
Por meio da ação integrada do sistema auditivo, observa-se que a atuação da via auditiva eferente na audição periférica modifica a resposta das células ciliadas externas e ativa o reflexo da musculatura da orelha média. A partir deste princípio, surgiu a hipótese de que a reflectância acústica, por ser uma medida de alta resolução, poderia identificar possíveis mudanças na transferência de energia da orelha média, quando ativada a via auditiva eferente por meio de ruído branco na orelha contralateral.
Não foram encontrados, na literatura pesquisada, estudos semelhantes que forneçam pistas sobre o efeito desta estimulação no perfil das curvas de reflectância acústica. Dessa forma, o objetivo deste estudo foi verificar a influência da estimulação contralateral por ruído branco nas medidas de reflectância acústica da orelha média em adultos jovens.
Trata-se de um estudo observacional, de coorte contemporânea. A presente pesquisa foi desenvolvida em um laboratório de investigação em audição humana, após a aprovação da mesma pela comissão de ética, por meio do protocolo 212/10.
Os participantes foram recrutados dentre os estudantes universitários do centro de docência e pesquisa da própria instituição. A casuística foi composta por 30 participantes, sendo 15 do gênero masculino e 15 do feminino, na faixa etária de 18 a 30 anos. Para evitar influência de lateralidade ou dominância cerebral, todos os sujeitos manifestaram dominância lateral direita, segundo Inventário de Edimburgo.23
Os critérios de inclusão para esta pesquisa foram: ausência de alterações de orelha média constatada à timpanometria (curva tipo A), sem histórico de otites na infância e nos últimos cinco anos, reflexos acústicos ipsilaterais presentes nas frequências de 500 a 4.000 Hz e limiares auditivos até 20 dB.
Para esta pesquisa foram utilizados:
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Protocolo para registro de dados de identificação e investigação de queixas relacionadas à audição. |
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Audiômetro GSI 61 - Grason Stadler - O equipamento está de acordo com os padrões ANSI S 3,6-1989; ANSI S3,431992; IEC 645-1(1992); IEC 645-2(1993); ISO 389; UL 544. Para a realização da audiometria limiar (250 a 8.000 Hz) e pesquisa do limiar de ruído branco, foram utilizados fones de inserção em transdutor calibrado para o modelo ER- Etymotic. |
3 |
Analisador de Orelha Média AT235 microprocessado e provido de duas frequências de tom na sonda de imitância: 226 Hz. O equipamento foi utilizado para as medidas timpanométricas de forma automática, na velocidade de 50 decapascals por segundo (daPa/s); e para as medidas dos reflexos acústicos ipsilaterais foi utilizada a forma manual do equipamento. |
4 |
MEPA3 - Middle-Ear Power Analysis - Mimosa Acoustics. Foi utilizado para obtenção das medidas de reflectância por meio do programa de módulo clínico MEPA 3, com as seguintes características técnicas: Faixa de frequência: 169-6.613 Hz Intensidade de estímulo: 60 dBNPS Tempo da amostra (janela): 0,1 a 10 segundos por ponto Estímulo: "Chirp" Sonda ER 10C Etymotic Research Olivas de látex em oito tamanhos adaptáveis para crianças e adultos O equipamento MEPA foi calibrado em sala acusticamente tratada e o exame de reflectância foi realizado dentro da cabine acústica em que foi realizada a audiometria. |
Inicialmente, os sujeitos foram informados sobre os objetivos e procedimentos da pesquisa e, uma vez concordando com a participação, assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
Os procedimentos foram realizados em uma única sessão, com duração de aproximadamente 20 minutos. Foi realizado registro dos dados de identificação em protocolo específico e à anamese foram abordadas as queixas relacionadas à audição e ao histórico otológico na infância e nos últimos cinco anos, pois, para a inclusão na pesquisa, os sujeitos não poderiam apresentar queixas ou histórico de otites. Em seguida, os sujeitos eram instruídos a preencher o protocolo de Edimburgo, para que fosse verificada a influência de lateralidade ou dominância cerebral.
Após estas etapas, os sujeitos foram submetidos aos seguintes procedimentos:
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Inspeção do meato acústico externo. |
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Imitanciometria composta pela timpanometria com sondas de 226 e 1.000 Hz e pesquisa dos reflexos estapedianos nas modalidades ipsilateral e contralateral, nas frequências de 500 Hz, 1.000 Hz, 2.000 Hz e 4.000 Hz. |
3 |
Audiometria tonal limiar nas frequências de 250 a 8.000 Hz com método descendente em 10 dB e ascendente em 5 dB, com início na frequência de 1.000 Hz, seguida das frequências de 2.000, 3.000, 4.000, 6.000, 8.000, 500 e 250 Hz. Foi feita pesquisa do limiar de ruído branco para estabelecimento do valor de base para introdução do ruído na mesma relação de intensidade. Assim, foi adotado o nível de 30 dB NS (decibel nível de sensação) para a intensidade de ruído. O ruído foi gerado pelo audiômetro GSI 61, e apresentado por meio de fone de inserção em transdutor calibrado para o modelo ER- Etymotic. |
4 |
Pesquisa da reflectância da orelha média em três passos: a) Obtenção da curva de reflectância no intervalo de frequência de 200 a 6.000 Hz na intensidade de 60 dB SPL. Cada estímulo teve duração de 0,1 a 10 segundos por ponto. A coleta foi realizada com o estímulo acústico chirp; b) Reteste para confirmação da curva de reflectância obtida; c) O procedimento foi repetido novamente, com a presença de ruído contralateral simultâneo por meio de fone de inserção a 30 dBNS, em relação ao limiar de ruído branco. Ao final, totalizaram-se três medidas em cada orelha. A partir das três medidas foi calculada a diferença entre os níveis de repostas coletadas sem e com ruído contralateral. |
Os dados foram exportados automaticamente pelo próprio equipamento MEPA para o programa Microsoft Excel. Para verificar se houve mudança no padrão de respostas em cada uma das frequências avaliadas nas condições com e sem ruído contralateral, considerou-se aumento ou diminuição quando a subtração dos valores foi diferente de zero.
As variáveis estudadas foram submetidas à análise estatística, e para todas as análises foi adotado o nível de significância de 5% para rejeição da hipótese de nulidade.
Na tabela 1 e na figura 1 estão os resultados da análise comparativa das diferentes condições de avaliação para os estímulos chirp.
Foram observadas diferenças estatísticas na frequência de 2 kHz para o estímulochirp em orelha direita, quando comparadas as situações de teste e teste com ruído contralateral
e reteste com teste com ruído contralateral, cujos p valores foram 0,011 para teste e 0,002 para a situação de reteste.
Em relação à orelha esquerda, não houve diferença estatística quando comparadas as situações de teste, reteste e teste com ruído contralateral para o estímulochirp. Os resultados podem ser observados na tabela 2 e na figura 2.
A orelha média é classicamente citada na literatura como um transmissor de energia mecanoacústica de caráter linear que permite a passagem e oferece certa oposição ao som.7 24 Apenas em intensidades elevadas a orelha média perderia esta característica linear, pois há a contração da musculatura intratimpânica em situações de estímulo sonoro elevado. A ação reflexa desta musculatura atua diretamente na proteção do sistema auditivo a sons de elevada intensidade.24 26
Na frequência de 2 kHz em orelha direita, para o estímulo chirpfoi encontrada diferença estatística quando comparadas as condições de teste e reteste com a condição de teste com ruído contralateral. As médias das respostas tenderam a aumentar quando ativada a via auditiva eferente. O efeito inibitório causado agiria como protetor do sistema auditivo, fazendo com que o sistema aumentasse a reflexão do som. Sendo assim, a transferência de energia através da orelha média passa a ser menor, evitando danos ao sistema auditivo e melhorando a discriminação sonora, principalmente em ambientes ruidosos, evidenciando que a orelha média pode ser o primeiro filtro de seleção do sistema auditivo, como já sugere outro estudo.24 Vale ressaltar que tais resultados foram observados em indivíduos destros, com dominância lateral direita confirmada pelo protocolo de Edimburgo. Dessa forma, o estudo observou vantagem da OD, assim como em outros estudos do sistema auditivo,17 27 quando submetido à ativação da via auditiva eferente. A questão que se discute é se a mesma vantagem da orelha direita seria observada em indivíduos com dominância lateral esquerda, sendo necessários estudos acerca do tema.
Figura 1 Box plot das comparações das respostas entre as condições teste, reteste e teste com ruído contralateral em orelha di reita.
A intensidade de WN utilizada foi de 30 dBNS, corroborando os demais estudos.21 22 Esta intensidade foi adotada a fim de se ativar a via auditiva eferente sem ativar os reflexos acústicos. A supressão contralateral do reflexo acústico pode ser utilizada para verificar o funcionamento da via eferente quando o sistema auditivo é apresentado a altos níveis de intensidade,27 porém, sob a influência da estimulação acústica contralateral observam-se mudanças nas respostas da latência e limiar do reflexo acústico.21 22 Estudos com EOA e PEA adotaram nível de estímulo contralateral na intensidade de 60 dBNA20 28 30; contudo, em estudo comparando diferentes níveis de estímulo contralateral, observou-se que uma intensidade menor ou igual a 50 dBNA não afeta o registro clínico das ondas N1 e P2.30
Figura 2 Box plot das comparações das respostas entre as condições teste, reteste e teste com ruído contralateral em orelha esquerda.
Tabela 2 Resultados da análise estatística da reflectância acústica entre as comparações nas condições teste, reteste e teste com ruído contralateral para estímulo chirp em orelha esquerda
OE, orelha esquerda; CV, coeficiente de variação; N, número de orelhas; IC, intervalo de confiança.
A influência da via auditiva eferente segue por todo o sistema auditivo, indo da porção mais central até a mais periférica. Pesquisas com EOA, PEATE (potenciais evocados auditivos de tronco encefálico) e PEA de média e longa latências com estimulação acústica contralateral trazem a informação de que existe modificação das respostas nestes procedimentos.20 31 34 Com o mesmo intuito, porém estudando a orelha média, alguns autores21 22 relacionaram as mudanças de respostas encontradas à influência da via auditiva eferente nesta porção do sistema auditivo. Os achados da presente pesquisa sugerem que a via auditiva eferente atua na orelha média gerando mudanças nos padrões de respostas de reflectância acústica.
Quando ativada a via auditiva eferente por meio da estimulação acústica contralateral com ruído branco, nota-se diferença estatística na frequência de 2 kHz em OD para estímulo chirp, tanto para teste como para retesteEsta consistência de efeito permite concluir que a via auditiva eferente exerce influência na transferência de energia sonora pela orelha média, com vantagem da orelha direita e frequência média.