versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.3 São Paulo jul./set. 2018 Epub 18-Jun-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-3949
O trato gastrointestinal funciona como uma barreira entre o ambiente externo e o meio interno do corpo. A camada epitelial do trato gastrointestinal forma uma barreira seletivamente permeável, que permite a entrada passiva de nutrientes, íons e água, ao passo que simultaneamente restringe a entrada de patógenos nos compartimentos do tecido subjacente. Vários estímulos fisiológicos e patológicos regulam dinamicamente a permeabilidade desse epitélio por meio de alterações nas estruturas envolvidas nos mecanismos de adesão celular e formação de junções celulares1,2.
Além disso, as células epiteliais intestinais (CEIs)expressam inúmeros receptores e mediadores pró-inflamatórios que permitem sua comunicação com o sistema imunológico3,4. As CEIs são a primeira linha de defesa contra patógenos e desempenham um papel importante no processo de tolerância intestinal em relação a microrganismos comensais4-6. Através de receptores toll-like (TLR), as células epiteliais intestinais reconhecem componentes celulares bacterianos7,8. Os TLRs desencadeiam respostas imunológicas contra agentes patogênicos, mas são também regulados para limitar a resposta inflamatória em direção a microbiota comensal no lúmen5,6. Além disso, a atividade dos TLRs parece levar à reorganização da estrutura das junções de oclusão, o que favorece a função de barreira epitelial9. Portanto, o reconhecimento da microbiota comensal pelos TLRs desempenha importante papel na manutenção da homeostase intestinal10,11.
A doença renal crônica (DRC) é uma patologia caracterizada pela perda gradual da função renal ao longo do tempo, com consequente retenção de uma série de compostos coletivamente denominados toxinas urêmicas. Em indivíduos com DRC, a presença de inflamação - um importante mediador de complicações associadas à doença, especialmente no sistema cardiovascular - é comum12,13. Vários fatores contribuem para o estado inflamatório, incluindo a diminuição da depuração de citocinas pró-inflamatórias, toxicidade urêmica, estresse oxidativo, acidose metabólica e o próprio processo de diálise14. Recentemente foi sugerido que alterações na composição da microbiota intestinal15-17 e na permeabilidade intestinal18-21 em consequência da DRC também podem contribuir para a resposta inflamatória18,22,23.
Portanto, há um interesse crescente em torno da investigação do papel da uremia sobre a permeabilidade intestinal. Vaziri et al.24 realizaram um estudo in vivo com ratos urêmicos e relataram uma ampla redução na expressão de proteínas das junções de oclusão, tais como claudina-1, ocludina e zônula de oclusão-1 (ZO-1) na mucosa colônica, o que indica dano acentuado na barreira intestinal. Achados semelhantes na expressão dessas proteínas também foram encontrados pelo mesmo grupo de pesquisadores em um estudo in vitro com colonócitos humanos incubados em meio contendo plasma de pacientes em hemodiálise. As células incubadas em plasma urêmico exibiram redução significativa na expressão de proteínas das junções de oclusão, acompanhada por diminuição na resistência elétrica transepitelial (RET). Tais eventos indicam aumento da permeabilidade da monocamada de células e sugerem que os compostos presentes no plasma urêmico podem estar envolvidos no processo de dano intestinal causado pela uremia25.
Uma vez que os mecanismos envolvidos no dano à barreira intestinal causado pela uremia não são totalmente compreendidos, o presente estudo investigou o efeito do soro urêmico sobre a permeabilidade epitelial intestinal e avaliou se o soro urêmico afeta a expressão de TLRs, estresse oxidativo e a secreção de citocinas pró-inflamatórias em células epiteliais do cólon humano.
Quatro pools de soro foram preparados a partir dos seguintes grupos: quatro indivíduos saudáveis, que serviram como controles (Saudável); cinco pacientes em tratamento conservador da doença renal crônica (Conservador) com taxa de filtração glomerular estimada entre 15 e 29 mL/min/1.73m2; e cinco pacientes em hemodiálise antes (Pré-HD) e após (Pós-HD) uma sessão de hemodiálise. Pacientes menores de 18 anos ou com mais de 70 anos, indivíduos em diálise por menos de três meses, pacientes com diabetes mellitus, doenças infecciosas ou inflamatórias, HIV, câncer ou doenças autoimunes, que utilizaram corticosteroides ou imunossupressores ou que tivessem recebido transplante renal não foram incluídos. Todas as amostras de sangue foram colhidas em condições de jejum (8 horas), com exceção das amostras pós-HD. Após a coleta de sangue, o soro foi imediatamente separado e os pools preparados e armazenados a -80 °C. Concentrações de creatinina, ureia, paratormônio, cálcio, fósforo e potássio foram determinadas em cada pool de soro. O Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de São Paulo aprovou o estudo. Foi obtido o consentimento informado de todos os participantes do estudo.
Células T84 foram obtidas da American Type Culture Collection (Manassas, VA, EUA) e cultivadas em frascos para cultura de tecidos de 75 cm2 em meio DMEM/F12 (Life Technologies Inc., Carlsbad, CA, EUA). O meio foi suplementado com bicarbonato de sódio 1,2 g/L, L-glutamina 2,5 mM, HEPES 15 mM, piruvato de sódio 0,5 mM, 10% de soro bovino fetal e penicilina/estreptomicina 0,5% (10.000 UI/mL e 10 mg/mL, respectivamente) e as células foram mantidas em incubadora a 37ºC, umidificada com 5% de CO2.
De forma a estabelecer um sistema de cultura celular em monocamada polarizada, as células foram cultivadas em placas de 12 poços com insertos de cultura celular suspensos Millicell com diâmetro de 12 mm e poro de 0,4 µm (EMD Millipore Inc., Billerica, MA, EUA) com 400.000 células/inserto. De maneira a determinar qualitativamente se as células T84 atingiram a confluência, formaram as junções de oclusão e estabeleceram polaridade celular, foi monitorada a resistência elétrica transepitelial (RET) através da monocamada usando um medidor Millicell ERS-2 (EMD Millipore Inc., Billerica, MA, EUA ). As monocamadas de T84 foram mantidas por aproximadamente 10 dias em meio completo. O meio foi trocado a cada dois dias e a RET medida regularmente. Quando a RET ultrapassou 1.000 Ω/cm², as monocamadas foram incubadas por 24 h em meio DMEM/F12, suplementado com 10% de pool de soro (Saudável, Conservador, Pré-HD e Pós-HD). A RET foi medida na conclusão do período de 24 horas de incubação. Em seguida, as células foram processadas para análise de citometria de fluxo e os sobrenadantes foram centrifugados por cinco minutos a 4°C; os sobrenadantes livres de células foram armazenados a -80 °C até serem utilizados na análise de citocinas. Nove experimentos foram realizados. Seus resultados foram utilizados na análise estatística.
Após incubação nas condições descritas anteriormente, as células foram lavadas com PBS e tripsinizadas. Para detectar a expressão de TLR-2, TLR-4 e TLR-9 na superfície celular, 1 × 105 células T84 foram incubadas no escuro por 15 min em temperatura ambiente com anticorpos correspondentes marcados por fluorescência: anti-TLR2 humano conjugado com APC (TL2.1, eBioscience, San Diego, CA, EUA), anti-TLR-4 humano conjugado com PE-Cy7 (HTA125, eBioscience, San Diego, CA, EUA) e anti-TLR9 humano conjugado com PE (EB72-1665, BD - Pharmingen, San Diego, CA, EUA). As células foram então lavadas com PBS, o sobrenadante foi descartado e o sedimento final foi ressuspenso em PBS. A detecção de todos os anticorpos foi realizada por citometria de fluxo (FacsCanto I, BD Biosciences, San Diego, CA, EUA). As dispersões frontal e lateral da luz foram utilizadas para estabelecer o gate das células T84 e excluir detrito celular. As expressões de TLR2, TLR4 e TLR9 foram apresentadas em médias de intensidade de fluorescência (MIF) e em porcentagens (%). O método de controle Fluorescência Menos Um (FMO control) foi utilizado para identificar e estabelecer os gates das células a serem analisadas e controlar a sobreposição de fluoróforos.
Os níveis intracelulares de EROs foram detectados pela conversão do 2'-7'-diclorofluoresceína diacetato (DCFH-DA) (Sigma, St. Louis, MO, EUA) para 2',7'-diclorofluoresceína (DCF), composto que fica fluorescente na presença de radicais de oxigênio26. Antes da incubação em DCFH-DA, as células foram lavadas com PBS e tripsinizadas. Para detectar EROs, 1 × 105 células T84 foram incubadas no escuro por 30 min a 37ºC com DCFH-DA na concentração de 0,3 mM. Em seguida, as células foram lavadas com PBS, o sobrenadante foi descartado e o sedimento final foi ressuspenso em EDTA a 3 nM. A detecção de EROs foi realizada por citometria de fluxo (FacsCanto I, BD Biosciences, San Diego, CA, EUA). As dispersões frontal e lateral da luz foram utilizadas para estabelecer o gate das células T84 e excluir detrito celular. A expressão de EROs foi apresentada em média de intensidade de fluorescência (MIF) e em porcentagem (%).
A concentração de IL-6 nos sobrenadantes livres de células condicionados da monocamada de células T84 foi determinada por ensaio ELISA (HS Human IL-6 kit, R&D Systems, Minneapolis, MN, EUA) de acordo com as instruções do fabricante.
Após incubação, as células foram lavadas com PBS e tripsinizadas. Para detectar apoptose e necrose, 1×105 células T84 foram incubadas no escuro por 20 min em temperatura ambiente com anexina V conjugada com isotiocianato de fluoresceína (FITC) e iodeto de propídio (PI) (BD - Pharmingen, San Diego, CA, EUA). Células apoptóticas precoces foram positivas para anexina V e negativas para PI; células apoptóticas tardias foram positivas tanto para anexina V como para PI; e células necróticas foram positivas para PI e negativas para anexina V27. As leituras foram realizadas em um citômetro de fluxo (FACSCANTO I, BD Biosciences, San Diego, CA, EUA). As dispersões frontal e lateral da luz foram utilizadas para estabelecer o gate das células T84 e excluir detrito celular. Os dados foram apresentados em porcentagens (%).
Os dados foram apresentados na forma de média e desvio padrão (DP) ou mediana e intervalo interquartil, conforme o apropriado. Foi utilizado um modelo linear geral (MLG) para efetuar comparações entre os grupos, seguido de análise da diferença mínima significativa (DMS) usando o software SPSS® versão 18.0 para Windows (SPSS Inc., Chicago, IL, EUA). Significância estatística foi atribuída para diferenças com p < 0,05.
A Tabela 1 mostra os dados laboratoriais de cada pool de soro utilizado nos experimentos. Os valores ficaram dentro do esperado para cada condição. Como visto na Figura 1, o soro urêmico das três diferentes condições não promoveu mudanças na resistência elétrica transepitelial (RET) em relação ao grupo saudável ou nas comparações entre os demais grupos.
Variáveis | Saudável | Conservador | Pré-HD | Pós-HD |
---|---|---|---|---|
Idade (anos) | 31,4 ± 8,98 | 57,4 ± 11,43 | 58 ± 9,67 | - |
Sexo masculino [n (%)] | 2 (40) | 3 (60) | 1 (20) | - |
Creatinina (mg/dL) | 0,82 | 2,9 | 11,54 | 3,33 |
Ureia (mg/dL) | 33 | 108 | 149 | 32,0 |
PTH (pg/mL) | 23 | 161 | 763 | 381 |
Cálcio (mg/dL) | 9,7 | 9,2 | 9,0 | 10,5 |
Fósforo (mg/dL) | 3,4 | 4,1 | 4,8 | 2,3 |
Potássio (mEq/L) | 3,8 | 4,7 | 4,8 | 2,8 |
Pool de soro: Saudável- controles saudáveis; Conservador- indivíduos com doença renal crônica em tratamento conservador; HD- hemodiálise; PTH-paratormônio.
Além disso, como mostra a Tabela 2, o soro urêmico das três condições não promoveu alterações na expressão de TLR-2, TLR-4 ou TLR-9 ou na produção de EROs em relação ao grupo saudável ou nas comparações entre os demais grupos. A Figura 2 ilustra a estratégia utilizada para detectar a expressão dessas proteínas e a produção de EROs por citometria de fluxo. Contrariamente, secreção mais elevada de IL-6 foi identificada nas células incubadas com soro pré e pós-HD em comparação às condições de incubação saudável e conservador (Figura 3).
Variáveis | Saudável | Conservador | Pré-HD | Pós-HD | p |
---|---|---|---|---|---|
TLR-2 (MIF) | 10.227 ± 2.653 | 10.391 ± 3.266 | 11.826 ± 3.422 | 14.940 ± 9.032 | 0,493 |
TLR-2 (%) | 94,6 (89,9-96,9) | 93,3 (85,1-97,7) | 94 (88,4-98,2) | 94,8 (87,2-96,8) | 0,827 |
TLR-4 (MIF) | 6.030 (5.537-8.727) | 6.504 (5.609-8.364) | 7.668 (6.263-9.834) | 9.119 (5.743-15.812) | 0,418 |
TLR-4 (%) | 82,6 (76,2-91) | 80,6 (76-92,5) | 82 (77,2-93,4) | 84,9 (78,8-91) | 0,851 |
TLR-9 (MIF) | 3.773 (2.149-9.303) | 2.995 (2.115-12.856) | 2.789 (2.111-7.273) | 3.580 (2.980-8.425) | 0,937 |
TLR-9 (%) | 4,8 (1,15-7,7) | 4,6 (1,07-8,72) | 4,15 (0,82-6,8) | 4,45 (1,15-8,65) | 0,971 |
EROs (MIF) | 293,4 ± 72,7 | 289,2 ± 54,83 | 291±65,2 | 294,6 ± 44,8 | 0,999 |
EROs (%) | 40,8 (34,5-65,7) | 46,2 (35,9-62,8) | 38,4 (32,3-57,5) | 33,6 (25,3-50,5) | 0,628 |
IL-6 (pg/mL) | 0,76 ± 0,35 | 1,14 ± 0,53 | 2,27 ± 0,46* | 2,85 ± 0,93*† | < 0,001 |
Dados apresentados como média ± DP ou mediana (intervalo interquartil). *p < 0,01 vs. Saudável e Conservador; †p = 0,07 vs. Pré-HD. MIF- média da intensidade de fluorescência; TLR-2- receptor toll-like 2; TLR-4- receptor toll-like 4; TLR-9- receptor toll-like 9; IL-6- interleucina 6. Pool de soro: Saudável- controles saudáveis; Conservador- indivíduos com doença renal crônica em tratamento conservador; HD- hemodiálise.
Como ilustra a Tabela 3, boa viabilidade celular (> 80%) foi observada em todas as condições de incubação. O soro urêmico não promoveu alterações no tocante a apoptose.
Variáveis | Saudável | Conservador | Pré-HD | Pós-HD | p |
---|---|---|---|---|---|
Viabilidade (%) | 80,5 ± 5,2 | 82,9 ± 4,35 | 82,7 ± 4,8 | 82,1 ± 3,7 | 0,841 |
Apoptose precoce (%) | 6,8 ± 2,35 | 5,8 ± 1,6 | 5,5 ± 1,95 | 6,2 ± 2,3 | 0,751 |
Apoptose tardia (%) | 6,5 (6,1-8,4) | 6,3 (5,4-7,4) | 6,5 (5,7-7,4) | 6,4 (6,0-8,3) | 0,755 |
Necrose (%) | 4,6 (2,7-9,1) | 3,3 (2,1-8,7) | 3,9 (1,8-9,9) | 5,0 (2,3-7,0) | 0,984 |
Dados apresentados como média ± DP ou mediana (intervalo interquartil). p > 0,05 entre grupos. Pool de soro: Saudável- controles saudáveis; Conservador- indivíduos com doença renal crônica em tratamento conservador; HD- hemodiálise.
O presente estudo in vitro com células epiteliais intestinais mostrou que o soro urêmico nas três condições testadas não promoveu alterações na resistência elétrica transepitelial (RET), no estresse oxidativo ou na expressão de receptores toll-like. No entanto, foi observada elevação na secreção de IL-6 nas células incubadas com soro pré e pós-HD. Até onde sabemos, apenas um estudo avaliou o efeito do plasma urêmico sobre a permeabilidade da monocamada de células epiteliais intestinais. Em contraste com os nossos achados, Vaziri et al.25 identificaram que o plasma urêmico (pré e pós-HD) promoveu redução da RET e diminuição concomitante na expressão de proteínas das junções de oclusão em células T84. Embora tenhamos seguido atentamente as etapas descritas nos métodos desse estudo publicado anteriormente, não conseguimos reproduzir os resultados deles. As razões para a discrepância nos resultados são desconhecidas, mas algumas diferenças nos protocolos dos estudos podem estar na raiz da questão. Primeiro, usamos um pool de soro para cada condição de incubação, enquanto Vaziri et al. relataram que as células foram incubadas separadamente com o plasma de cinco pacientes. Em segundo lugar, os critérios que utilizamos para a seleção dos pacientes para preparar os pools de soro podem diferir em alguns aspectos dos critérios adotados por Vaziri et al. Contudo, como mostra a Tabela 1, os parâmetros laboratoriais dos pools preparados em nosso estudo foram consistentes com aqueles esperados para cada grupo experimental.
A ausência de alteração nos marcadores de integridade celular intestinal em nosso estudo indica que o soro urêmico pode não ter prejudicado a permeabilidade paracelular se um efeito direto fosse esperado. Embora o período de incubação possa ter alguma influência na permeabilidade intestinal, decidimos usar o período de 24 horas como feito no estudo anteriormente citado25. Contudo, antes de iniciar os experimentos, também testamos dois outros períodos de incubação (6 h e 48 h), mas os resultados foram semelhantes aos obtidos com o período de 24 horas. Além do mais, deve-se considerar que o dano às células epiteliais intestinais causado pela uremia pode ocorrer indiretamente em função dos seus efeitos no ambiente intestinal, que envolve a elevação do influxo de ureia para o trato gastrointestinal. Tal contexto favorece o aumento da fermentação de compostos nitrogenados, gerando um grande número de produtos que podem afetar negativamente o epitélio intestinal28-31. Com efeito, um estudo in vitro com células T84 incubadas com ureia mais urease (enzima bacteriana) relatou grandes reduções na RET e na expressão de proteínas das junções de oclusão, o que indica o efeito deletério de tal atividade enzimática sobre as células epiteliais intestinais32. Alterações no meio bioquímico podem resultar em alterações na composição e na atividade metabólica da microbiota intestinal30. De fato, um estudo realizado com pacientes com DRC descreveu importantes alterações na composição da microbiota intestinal. Essas modificações são caracterizadas pela expansão de famílias bacterianas que possuem urease e enzimas formadoras de indol e p-cresol, além de redução nas famílias que possuem enzimas produtoras de butirato16. O importante papel do ambiente intestinal na preservação da permeabilidade intestinal foi demonstrado em estudo recente. Uma atenuação significativa nas alterações das proteínas das junções de oclusão do tecido colônico foi identificada quando ratos urêmicos foram tratados com fibra alimentar fermentável, conhecida pelo seu efeito benéfico sobre a atividade enzimática e a composição da microbiota33. Portanto, o efeito da uremia no intestino parece ser complexo e envolve a interação tanto das células quanto da microbiota intestinal. Assim, a ausência de impacto negativo do soro urêmico no presente estudo pode ser atribuída à ausência de microbiota.
O rompimento do equilíbrio inflamatório no intestino representa um fator potencial que contribui com danos à barreira intestinal34. Como foi demonstrado em vários tipos celulares que as toxinas urêmicas têm efeito estimulante sobre as vias inflamatórias35-39, levantamos a hipótese de que tal efeito possa ocorrer também nas células epiteliais intestinais. Portanto, investigamos pela primeira vez se o soro urêmico modificaria a expressão de receptores toll-like (TLRs) e a produção de IL-6. Apesar da ausência de alteração nos TLRs nas condições urêmicas de nossos experimentos, foi observada elevação da secreção de IL-6 quando as células foram incubadas com soro de pacientes em hemodiálise (HD). Aparentemente, a ativação de TLR-2, TLR-4 e TLR-9 não esteve ligada à estimulação da liberação de IL-6 pelo soro urêmico. Embora não tenha sido testado em nosso estudo, a elevação observada da IL-6 pode ser consequência do efeito estimulante de outras citocinas, tais como TNF-α e IL-1, que frequentemente estão mais elevadas no soro de pacientes em HD40,41. Tal suposição é um tanto plausível se considerarmos que a produção de IL-6 não se elevou quando as células foram incubadas com soro urêmico de pacientes não dependentes de diálise. Com efeito, a presença de algum grau de função renal nesses pacientes pode permitir, pelo menos até certo ponto, a remoção de toxinas urêmicas, incluindo citocinas. Por outro lado, a remoção de vários tipos de moléculas tais como as citocinas é relativamente ineficiente no processo de hemodiálise42. A secreção aumentada de IL-6 pelas células incubadas com soro de HD não pareceu produzir efeitos deletérios sobre a integridade da monocamada de células, uma vez que nenhuma alteração na RET foi observada. Contudo, é importante considerar que o potencial dano à função da barreira, causado por distúrbios na resposta inflamatória, é complexo e envolve as relações entre diferentes tipos de células, particularmente as do sistema imunológico. Portanto, o modelo experimental utilizado no presente estudo não permite concluir se a IL-6 secretada pelas células epiteliais contribui para o processo inflamatório geral. Esse achado merece ser investigado mais profundamente de forma a fazer avançar o conhecimento atual sobre a relação entre DRC, inflamação e função da barreira intestinal.
Em conclusão, demonstramos que o meio urêmico não afetou a integridade da barreira intestinal, a expressão de TLRs ou a produção de espécies reativas de oxigênio. O soro de HD estimulou a secreção de IL-6 pelas células epiteliais intestinais. Uma vez que a uremia pode afetar a homeostase intestinal por diferentes vias, mais estudos são necessários para melhor explicar a relação entre a DRC e o intestino.