versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.114 no.1 São Paulo jan. 2020 Epub 02-Set-2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190174
A insuficiência cardíaca (IC) é uma síndrome multifatorial com repercussões sobre a qualidade de vida (QV).
Investigar os principais fatores que interagem e pioram a qualidade de vida de pacientes ambulatoriais com IC.
Estudo transversal observacional com 99 pacientes, de ambos os sexos, atendidos no ambulatório de IC de um hospital universitário, todos com uma fração de ejeção reduzida (<40%) pela ecocardiografia. Os participantes foram avaliados usando-se um questionário sociodemográfico, um questionário clínico, o Minnesota Living with Heart Failure (MLwHF), e Hospital Anxiety and Depression scale (HADS). QV foi a variável de desfecho. Foram usados dois modelos de análise multivariada, a regressão beta (paramétrica) e a árvore de regressão (não paramétrica), considerando um p < 0,05 e 0,05 < p < 0,10 para significância estatística e clínica, respectivamente.
A análise por regressão beta mostrou que os sintomas de depressão e ansiedade pioraram a QV de pacientes com IC, bem como o sexo masculino, idade inferior a 60 anos, nível educacional mais baixo, renda familiar mensal menor, internações recorrentes e comorbidades tais como doenças cardíacas isquêmicas e hipertensão arterial. A árvore de regressão confirmou que as classes funcionais da NYHA III e IV pioraram todas as dimensões do MLwHF, interagindo com sintomas de ansiedade, e influenciando direta ou indiretamente, a presença de pior escore total e dimensão emocional do MLwHF. Internações anteriores, na dimensão emocional, e idade inferior a 60 anos, na dimensão geral, associaram-se com ansiedade e classe funcional NYHA, piorando também a QV dos pacientes com IC.
IC com fração de ejeção reduzida associou-se com pior resultado do MLwHF. Sintomas de ansiedade, internação prévia e idade mais jovem também associaram-se com pior MLwHF. O conhecimento desses fatores de risco pode, portanto, orientar a avaliação e o tratamento dos pacientes com IC.
Palavras-chave: Insuficiência Cardíaca; Ansiedade/diagnóstico; Hospitalização; Qualidade de Vida; Idade; Volume Sistólico
Heart failure (HF) is a multifactorial syndrome with repercussions on quality of life (QoL).
To investigate the main interacting factors responsible to worsen quality of life of outpatients with HF.
Cross-sectional observational study with 99 patients of both genders, attending a HF outpatient clinic at a university hospital, all with a reduced ejection fraction (<40%) by echocardiography. They were evaluated using sociodemographic and clinical questionnaires, the Minnesota Living with Heart Failure (MLwHF), and the Hospital Anxiety and Depression scale (HADS). QoL was the outcome variable. Two multivariate models were used: the parametric beta regression analysis, and the non-parametric regression tree, considering p < 0.05 and 0.05 < p < 0.10 for statistical and clinical significance, respectively.
Beta regression showed that depression and anxiety symptoms worsened the QoL of HF patients, as well as male sex, age younger than 60 years old, lower education level, lower monthly family income, recurrent hospitalizations and comorbidities such as ischemic heart diseases and arterial hypertension. The regression tree confirmed that NYHA functional class III and IV worsen all dimensions of MLwHF by interacting with anxiety symptoms, which influenced directly or indirectly the presence of poorer total score and emotional dimension of MLwHF. Previous hospitalization in the emotional dimension and age younger than 60 years in general dimension were associated with anxiety and NYHA functional class, also worsening the QoL of HF patients.
HF with reduced ejection fraction was associated with poorer MLwHF. Anxiety symptoms, previous hospitalization and younger age were also associated with worsened MLwHF. Knowledge of these risk factors can therefore guide assessment and treatment of HF patients.
Keywords: Heart Failure; Anxiety/diagnosis; Hospitalization; Quality of Life; Age; Systolic Volume
A insuficiência cardíaca (IC) é a principal causa de morbidade e mortalidade por doença cardíaca, e é mais comum em indivíduos com idade de 60 anos ou mais.1 A IC compromete a saúde do indivíduo, com consequências físicas, psicológicas e sociais. A IC é uma síndrome que afeta profundamente a qualidade de vida (QV) dos pacientes, predispondo-os a internações recorrentes,2 e a altas taxas de morbidade e mortalidade, como observado no estudo de Framingham.3
Em um estudo4 com 204 pacientes com IC, os autores observaram que 46% dos pacientes atendidos no ambulatório apresentavam sintomas de depressão e de ansiedade no momento basal. Após cinco anos de acompanhamento dos pacientes, mesmo com o controle da gravidade da doença e de outros fatores de risco, os sintomas depressivos ainda estavam associados com desfechos como hospitalização e morte.5 Ao analisar os pacientes com dificuldade de tomar medicamentos, os autores observaram que esses pacientes apresentaram sintomas mais graves de IC e pior QV, o que pode ser explicado, em parte, pela coexistência de depressão e estados psicológicos como disforia e ansiedade.6
A associação entre depressão, sintomas físicos e QV de pacientes com IC foi observada por Bekelman et al.,7 em um estudo transversal com 60 pacientes ambulatoriais. Foi mais comum observar pacientes com depressão e ansiedade após apresentarem dispneia (OR 5,28, p < 0,05), e aqueles que apresentaram mais sintomas de depressão também apresentaram mais sintomas de IC (p < 0,0001) e pior QV. Outro estudo com pacientes que foram diagnosticados com IC concluiu que a depressão estava associada com um pior estado de saúde, e foi um forte preditor de internação e pior sintomas de IC, estado funcional e QV.8
Os sintomas físicos são afetados por depressão e ansiedade, conforme relatado em um estudo9 que mostrou que variáveis psicológicas afetaram a QV e os sintomas de IC de maneira comparável. Em uma análise de regressão múltipla, sintomas físicos, idade, status de emprego, e ansiedade foram os melhores preditores de QV após três meses de acompanhamento. Depressão, controle percebido da IC, status de emprego e idade mais jovem foram preditores do comprometimento físico após três meses. A grande pergunta, ainda sem resposta, é como essas variáveis interagem e pioram a QV dos pacientes, e quanto elas comprometem a abordagem terapêutica de diferentes graus de disfunção ventricular.
Assim, foram coletados dados sociodemográficos, de sintomas de ansiedade e de depressão, de uso de medicamentos, de internações hospitalares anteriores, e de fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) para investigar quais fatores estão associados e interagem para piorar a QV dos pacientes com IC.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho sob o número de protocolo 104/2010. Os pacientes assinaram o termo de consentimento para participar do estudo, o qual incluiu uma série observacional e transversal de casos consecutivos. Os pacientes incluídos apresentavam IC com FEVE < 4010 e classe funcional da New York Heart Association (NYHA) I a IV, e tinham idade ≥ 20 anos. Pacientes com IC causada por disfunção valvar e causas reversíveis, e pacientes que não puderam ser entrevistados devido a síndromes psiquiátricas, disfunção cognitiva avaliada clinicamente, ou perda auditiva foram excluídos. Todos os participantes foram recrutados no ambulatório de IC do Departamento de Cardiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro entre março de 2011 e setembro de 2012. Cento e vinte pacientes foram entrevistados individualmente e uma amostra de 99 pacientes de ambos os sexos preencheram os critérios de inclusão.
Todos os participantes preencheram um questionário sociodemográfico, um questionário clínico, a versão brasileira do Minnesota Living with Heart Failure Questionnaire (MLwHF),11,12 e Hospital Anxiety and Depression Scale (HADS).13,14
O questionário sociodemográfico avaliou idade, sexo, renda familiar mensal (em dólar), educação (anos de estudo) classificada em “analfabeto”, educação 1 (<5 anos), educação 2 (6-12 anos) e educação 3 (>12 anos), estado civil (casado) e suporte familiar. O questionário clínico considerou a classe funcional da NYHA, comorbidades tais como fibrilação atrial, insuficiência renal crônica, diabetes mellitus e hipertensão arterial; uso de medicamentos como betabloqueadores, espironolactona, inibidor da enzima conversora de angiotensina (IECA), bloqueadores dos receptores AT1 da angiotensina, nitrato, hidralazina; internações anteriores e FEVE.
O MLwHF é um questionário estruturado de QV para pacientes com IC, que foi traduzido e validado para a população brasileira.11,12 As perguntas são relacionadas a como o paciente se sentiu nos últimos 30 dias anteriores ao preenchimento do questionário. O MLwHF é composto por 21 perguntas que abordam a percepção do bem estar físico (fortemente correlacionado com dispneia e fadiga), emocional (correlacionado com aspectos emocionais e sociais), e geral (correlacionado com questões financeiras, efeitos colaterais da medicação e estilo de vida), e seus escores variam de 0 a 40, de 0 a 25 e de 0 a 40, respectivamente. Escores mais altos indicam uma pior QV.
A HADS foi desenvolvido especificamente para populações clinicamente doentes e se baseia no humor, depressão e anedonia, e exclui sintomas físicos, tais como distúrbio do sono, fadiga, e dor no corpo, os quais podem ser confundidos com sintomas de outras doenças. O questionário é composto de 14 questões, cada pergunta com quatro respostas possíveis. Consiste em duas subescalas - ansiedade e depressão - cada um com sete itens. As respostas referem-se a como os pacientes se sentiam nos últimos sete dias, e a soma de cada subescala varia de 0 a 21. A HADS foi traduzido e validado em uma versão brasileira, utilizando-se um ponto de corte ≥8, em amostras de pacientes clinicamente doentes.13,14 Para as análises, esse ponto de corte foi considerado indicador de depressão e ansiedade, as quais foram referidas neste estudo como “sintoma de depressão e ansiedade”. Essa variável foi dicotomizada em “possível ansiedade” (8 a 11) e “provável ansiedade” (12 a 21), e o mesmo para “possível depressão” e “provável depressão”.
As variáveis de desfecho foram as dimensões do MLwHF - Escore total, Física, Emocional e bem estar geral - e as variáveis independentes foram as variáveis sociodemográficas, as variáveis clínicas, os sintomas de ansiedade e de depressão, medicamentos em uso, internações anteriores, e FEVE.
As variáveis contínuas foram apresentadas em média ± desvio padrão (variáveis com distribuição normal), ou mediana e primeiro e terceiro quartis (variáveis sem distribuição normal). A normalidade dos dados foi testada pelo teste de normalidade de Shapiro-Wilk. A comparação entre os grupos NYHA = I/II e NYHA = III/IV foi feita pelo teste t de Student não pareado para variáveis contínuas com distribuição normal, Wilcoxon rank sum test para variáveis contínuas sem distribuição normal, e o teste binomial para variáveis categóricas.
O escore total, e as dimensões física, emocional e geral do MLwHF foram as variáveis de desfecho. A associação das variáveis descritas acima com os desfechos e dimensões de QV foi avaliada usando um modelo paramétrico de regressão beta e uma árvore de regressão não paramétrica.15 A regressão beta é um modelo novo, desenvolvido pelos autores brasileiros Silvia Ferrari e Francisco Cribari, utilizada quando o desfecho for uma variável contínua que varia no intervalo (0,1). A árvore de regressão, além de seu poder preditivo e de fácil interpretação visual, é também muito útil para identificar possíveis interações entre variáveis preditivas, inclusive em situações de interações inesperadas, como no nosso caso. Os nós finais resultam no boxplot das variáveis de desfecho.16,17 Foi utilizado o pacote Betareg18 do programa R.19 nas análises. Valores de p < 0,05 e 0,05 < p < 0,10 foram considerados de significância estatística e relevância clínica, respectivamente.
Dados de 99 pacientes foram analisados; dois pacientes não apresentavam dados de FEVE, e três não apresentavam dados de renda familiar mensal. Os dados faltantes foram repostos considerando o MCAR (missing completely at random) como mecanismo de perda desses dados, ou seja, totalmente ao acaso.20 Para facilitar a leitura das figuras, as escalas do MLwHF foram ajustadas para variarem de 0 a 100 (0, 1) e os escores foram invertidos, de modo que os escores mais altos corresponderiam a uma melhor QV.
A Tabela 1 descreve as características da amostra dividida de acordo com a classe funcional NYHA. Valores mais baixos de FEVE e de todas as dimensões do MLwHF foram significativamente mais comuns nos pacientes com classe funcional NYHA III e IV. Por outro lado, apoio familiar, ausência de comorbidades tais como diabetes mellitus, fibrilação atrial, insuficiência renal crônica e a não utilização de espironolactona, nitrato ou furosemida foram significativamente mais frequentes nos pacientes com classe funcional NYHA I e II.
Tabela 1 Características dos pacientes divididos pela classe funcional NYHA
Total | NYHA = I /II | NYHA = III/IV | p * | ||
---|---|---|---|---|---|
Número de pacientes | 99 (100%) | 59 (59,60%) | 40 (40,40%) | 0,0699 | |
Idade | |||||
Média ± DP | 61,05 ± 10,88 | 59,85 ± 10,65 | 62,83 ± 11,11 | 0,1829 | |
Renda familiar mensal | |||||
Mediana (1º; 3º quartil) | 914,28 (594,61; 1294,61) | 892,3 (594,61; 1564,10) | 923,07 (602,56; 1102,56) | 0,3978 | |
Fração de ejeção | |||||
Média ± DP | 35,58 ± 9,18 | 37,27 ± 8,7 | 33,1 ± 9,4 | 0,0258* | |
Escore total do MLwHF | |||||
Mediana (1º; 3º quartil) | 27 (10,5; 47,0) | 17 (5; 32,5) | 45 (31,5; 55,0) | < 0,0001*** | |
Bem-estar físico do MLwHF | |||||
Mediana (1º; 3º quartil) | 14 (3; 21) | 6 (2; 17,5) | 20 (15; 25) | < 0,0001*** | |
Bem-estar emocional do MLwHF | |||||
Mediana (1º; 3º quartil) | 6 (2; 13) | 3 (0,5; 10,5) | 10,5 (5,75; 15,25) | 0,0001*** | |
Bem-estar geral do MLwHF | |||||
Mediana (1º; 3º quartil) | 7 (3,0; 14,5) | 4 (1; 8) | 11 (8; 19) | < 0,0001*** | |
Homens | 61(100%) | 38 (62,30%) | 23 (37,70%) | 0,0722 | |
Escolaridade | |||||
Analfabetos | 6 (100%) | 3 (50,00%) | 3 (50,00%) | 1,0000 | |
<5 anos | 37 (100%) | 24 (64,86%) | 13 (35,14%) | 0,0989 | |
6-12 anos | 52 (100%) | 31 (59,62%) | 21 (40,38%) | 0,2116 | |
> 12 anos | 4 (100%) | 1 (25,00%) | 3 (75,00%) | 0,6250 | |
Casado | 64 (100%) | 39 (60,94%) | 25 (39,06%) | 0,1034 | |
Suporte familiar | 82(100%) | 51 (62,20%) | 31 (37,80%) | 0,0352* | |
Empregado | 19 (100%) | 12 (63,16%) | 7 (36,84%) | 0,3593 | |
Etiologia isquêmica | 39(100%) | 21 (53,85%) | 18 (46,15%) | 0,7493 | |
Ausência de fibrilação atrial | 82(100%) | 51 (62,20%) | 31 (37,80%) | 0,0352* | |
Ausência de insuficiência renal crônica | 84(100%) | 52 (61,90%) | 32 (38,10%) | 0,0375* | |
Ausência de diabetes mellitus | 57(100%) | 38 (66,67%) | 19 (33,33%) | 0,0163* | |
Hipertensão arterial | 69(100%) | 39 (56,52%) | 30 (43,48%) | 0,3356 | |
Ausência de internações anteriores | 63(100%) | 44 (69,84%) | 19 (30,16%) | 0,0022 | |
Provável ansiedade | 15(100%) | 10 (66,67%) | 5 (33,33%) | 0,3018 | |
Possível ansiedade | 35(100%) | 19 (54,29%) | 16 (45,71%) | 0,7359 | |
Provável depressão | 11(100%) | 7 (63,64%) | 4 (36,36%) | 0,5488 | |
Possível depressão | 27(100%) | 15 (55,56%) | 12 (44,44%) | 0,7011 | |
Uso de betabloqueadores | 96 (100%) | 57 (59,38%) | 39 (40,62%) | 0,0822 | |
Sem uso de espironolactona | 38(100%) | 28 (73,68%) | 10 (26,32%) | 0,0051** | |
Uso de IECA/BRA | 94(100%) | 57 (60,64%) | 37 (39,36%) | 0,0495* | |
Sem o uso de nitrato/hidralazina | 63(100%) | 43 (68,25%) | 20 (31,75%) | 0,0052** | |
Sem uso de furosemida | 25(100%) | 18 (72,00%) | 7 (28,00%) | 0,0433* | |
Tratamento otimizado | 87(100%) | 50 (57,47%) | 37 (42,53%) | 0,1980 |
***p < 0,001;
**p < 0,01;
*p < 0,05.
*Teste t de Student (para variáveis contínuas com distribuição normal); teste de Wilcoxon (para variáveis contínuas sem distribuição normal); e teste Binomial (para variáveis categóricas); MLwHF: Minnesota Living with Heart Failure, NYHA: New York Heart Association, IECA: inibidor da enzima conversora de angiotensina; BRA: bloqueador de receptor da angiotensina.
Os resultados da análise por regressão beta estão apresentados na Tabela 2. Vale destacar que a variável preditora classe funcional da NYHA apresentou associação estatisticamente significativa com todas as variáveis de desfechos, mostrando que a QV dos pacientes, em todas suas dimensões, foi influenciada pelos sintomas físicos da IC. Os sintomas de ansiedade também se associaram com todos os desfechos, exceto a dimensão bem-estar geral. Sintomas de depressão se associaram com a dimensão emocional, demonstrando que os sintomas psicológicos afetaram a QV dos pacientes nesta amostra. A ocorrência de internação hospitalar prévia piorou a QV dos pacientes ambulatoriais com IC em relação a aspectos emocionais e físicos. O uso de medicamentos tais como betabloqueadores, IECA e furosemida associou-se com pior MLwHF em diferentes dimensões. A dimensão bem-estar geral do MLwHF diminuiu com menor renda familiar dos pacientes. Vale mencionar que todos os modelos de regressão beta apresentaram um coeficiente de determinação R2 de aproximadamente 50% (Figura 1: A-50, B-48, C-56, D-44), o que significa que as variáveis prognósticas explicam 50% da variação do desfecho ou das variáveis dependentes.
Tabela 2 Análise de regressão beta e variáveis preditoras
Dimensões de QV do MLwHF | Variáveis preditoras | Estimativa (IC 95%) | p |
---|---|---|---|
Escore total | Educação (< 5 anos) | 0,734 (0,101; 1,366) | 0,023 * |
Educação (6-12 anos) | 0,589 (-0,033; 1,211) | 0,063 | |
Educação (> 12 anos) | 0,755 (-0,210; 1,720) | 0,125 | |
Renda familiar mensal | 0,000 (0,000; 0,001) | 0,019 * | |
NYHA II | -0,695 (-1,162; -0,229) | 0,003 ** | |
NYHA III | -1,416 (-1,904; -0,928) | < 0,001 *** | |
NYHA IV | -1,404 (-2,066; -0,742) | < 0,001 *** | |
Hipertensão arterial | 0,585 (0,239; 0,931) | 0,001 *** | |
Internação anterior | -0,553 (-0,898; -0,207) | 0,002 ** | |
Sintomas de ansiedade | -0,593 (-0,997; -0,190) | 0,004 ** | |
Sintomas de depressão | -0,402 (-0,828; 0,025) | 0,065 | |
Uso de betabloqueadores | 0,908 (0,064; 1,752) | 0,035 * | |
Físico | Educação (< 5 anos) | 1,078 (0,223; 1,934) | 0,013 * |
Educação (6-12 anos) | 1,077 (0,233; 1,921) | 0,012 * | |
Educação (> 12 anos) | 1,369 (0,124; 2,614) | 0,031 * | |
NYHA II | -1,087 (-1,658; -0,516) | < 0,001*** | |
NYHA III | -1,789 (-2,411; -1,167) | < 0,001*** | |
NYHA IV | -2,439 (-3,326; -1,552) | < 0,001*** | |
Hipertensão arterial | 0,755 (0,307; 1,203) | 0,001 *** | |
Internação anterior | -0,867 (-1,345; -0,389) | < 0,001*** | |
Sintomas de ansiedade | -0,967 (-1,404; -0,529) | < 0,001*** | |
Uso de betabloqueadores | 2,018 (0,847; 3,190) | 0,001 *** | |
Uso de furosemida | 0,520(0,031; 1,010) | 0,037 * | |
Emocional | Sexo masculino | 0,538 (0,145; 0,932) | 0,007 ** |
Educação (< 5 anos) | 0,725 (-0,088; 1,539) | 0,080 | |
Educação (6-12 anos) | 0,747 (-0,042; 1,535) | 0,063 | |
Educação (> 12 anos) | 1,135 (-0,099; 2,369) | 0,071 | |
Etiologia isquêmica | 0,561 (0,132; 0,990) | 0,010 ** | |
NYHA II | -0,229 (-0,78; 0,322) | 0,416 | |
NYHA III | -1,234 (-1,818; -0,65) | < 0,001 *** | |
NYHA IV | -0,727 (-1,537; 0,083) | 0,079 | |
Internação anterior | -0,606 (-1,059; -0,152) | 0,009 ** | |
Sintomas de ansiedade | -1,104 (-1,614; -0,595) | < 0,001*** | |
Sintomas de depressão | -0,879 (-1,420; -0,338) | 0,001 *** | |
Uso de IECA | -1,424 (-2,312; -0,536) | 0,002 ** | |
Geral | Sexo masculino | -0,342 (-0,708; 0,025) | 0,068 |
Idade | 0,030(0,013; 0,047) | < 0,001*** | |
Renda familiar mensal | 0,001 (0,000; 0,001) | 0,001 *** | |
NYHAII | -0,717 (-1,249; -0,184) | 0,008 ** | |
NYHAIII | -1,717 (-2,259; -1,176) | < 0,001*** | |
NYHA IV | -1,895 (-2,627; -1,162) | < 0,001*** | |
Uso de betabloqueadores | 1,280(0,323; 2,237) | 0,009 ** |
***p < 0,001;
**p < 0,01;
*p < 0,05.
MLwHF: Minnesota Living with Heart Failure; NYHA: New York Heart Association; IECA: inibidor da enzima conversora de angiotensina.
Figura 1 Árvore de regressão (A- escore total, B- Dimensão de bem-estar físico, C- dimensão de bem-estar emocional, D- dimensão de bem-estar geral) ilustrando que classes funcionais da NYHA (New York Heart Association) mais avançadas pioraram todas as dimensões do MLwHF (Minnesota Living with Heart Failure). Os sintomas de ansiedade influenciaram direta ou indiretamente a presença de um pior escore total e pior dimensão de bem-estar emocional do MLwHF. O mesmo foi observado para internação prévia na dimensão de bem-estar emocional, mostrando uma interação com as classes funcionais da NYHA I e II. Na dimensão bem-estar geral, as classes funcionais NYHA I e II associaram-se com pior MLwHF em pacientes com idade inferior a 60 anos. Prev Hosp: Hospitalização prévia.
A árvore de regressão, modelo não paramétrico, também avaliou a associação do conjunto das variáveis preditoras com cada variável de desfecho (Figura 1). Os resultados desse modelo estão de acordo com o modelo beta mostrado na Tabela 2, além de fornecer informações acerca de interações entre variáveis independentes. A Figura 1 ilustra os efeitos de uma pior classe funcional da NYHA sobre todas as dimensões do MLwHF. Os sintomas de ansiedade contribuíram direta ou indiretamente para um escore total mais baixo e piora da dimensão emocional no MLwHF. O mesmo foi observado para a variável internações anteriores na dimensão emocional, indicando uma interação com as classes funcionais NYHA I e II. Na dimensão bem-estar geral, as classes funcionais NYHA I e II associaram-se com pior MLwHF se os pacientes tivessem idade inferior a 60 anos. Devido à inversão do sistema de pontuação, a interpretação das árvores de regressão considera que os valores mais altos de cada variável de desfecho correspondem a uma melhor QV. Em outras palavras, poderíamos exemplificar que a melhor QV foi observada em pacientes com classe funcional da NYHA I, sem sintomas de ansiedade (Figura 1A: escore total, 14 pacientes, 14,1%), pacientes com classe NYHA I (Figura 1B: dimensão Física, 19 pacientes, 19,2%), pacientes com classe funcional NYHA I ou II pacientes sem sintomas de ansiedade ou hospitalização prévia (Figura 1 C: dimensão emocional, 27, 27.3%), e pacientes com classe funcional NYHA I ou II com idade superior a 59 anos (Figura 1D: dimensão bem-estar geral, 32 pacientes, 32,3%). Nós criamos um pseudocoeficiente de determinação R2 para a árvore de regressão, resultando em coeficientes de 30% e 40% aproximadamente (Figura 1: A-42, B-29, C-44, D- 29).
A originalidade deste estudo consiste nos métodos aplicados à pergunta em questão. A árvore de regressão é uma regressão não paramétrica, útil para a predição, e para obter dados não só a partir das variáveis relevantes, mas também das importantes interações entre essas variáveis. Na regressão tradicional, podemos obter as variáveis relevantes, porém é necessário definirmos quais interações nós consideramos relevantes. Na árvore de regressão, o algoritmo do Data Mining verificou, a partir dos dados existentes, quais variáveis e quais interações são as mais importantes, favorecendo um melhor entendimento das complexas relações observadas na prática clínica.
O estudo encontrou uma associação da função ventricular (representada pela classe funcional da NYHA), sintomas de ansiedade, sexo masculino, idade inferior a 60 anos, nível educacional mais baixo, renda familiar mais baixa, internação hospitalar recorrente, e comorbidades (tais como hipertensão arterial e doenças cardíacas isquêmicas), uso de medicamentos (tais como betabloqueadores, IECA e furosemida) com pior QV de pacientes com IC.
Em um estudo,21 os autores exploraram as percepções da QV em pacientes com IC para avaliar limitações na vida diária causadas por sintomas, estado de felicidade e relacionamentos, e encontraram que a QV foi influenciada não só pelo estado físico, psicológico, social e condição econômica negativos, mas também pela condição física, psicológica e social positivas, bem como pelo comportamento, apesar de não ter sido modificada por educação combinada à intervenção de autocuidado. O presente estudo revelou a associação entre a variável preditora classe funcional NYHA III-IV com todas as variáveis de desfecho, e de sintomas de ansiedade e de depressão com duas das três variáveis de desfecho no modelo beta. Ainda, nosso estudo mostrou que mesmo uma classe funcional NYHA mais baixa (I-II), associada com sintomas de ansiedade e internação prévia, pode piorar a QV, considerando tanto o escore total como a dimensão emocional.
A IC possivelmente é a doença crônica mais devastadora, uma vez que afeta a QV das pessoas em várias dimensões. De fato, outros autores apresentaram evidências de que melhorias nas habilidades de autocuidado podem melhorar os desfechos de pacientes com IC.22
Ter consciência do próprio diagnóstico acarreta um impacto profundo sobre os pacientes. Mulligan et al.,8 mostraram que, ao abordar o estado de ânimo e as crenças dos pacientes sobre suas doenças e tratamento, houve uma melhora nas dimensões físicas e emocionais do MLwHF e melhora de 55% e 43% nos sintomas de ansiedade e depressão, respectivamente, avaliados pela HADS no período precoce após o diagnóstico de IC. A redução de sintomas de ansiedade associou-se com menor percepção da gravidade da IC e do controle pelo tratamento da doença. A redução dos sintomas da depressão foi atribuída à melhora da classe funcional NYHA, à redução de sintomas, à gravidade percebida da IC, e ao aumento de confiança no tratamento. O presente estudo confirma esses achados de que os sintomas de depressão e de ansiedade contribuem para piora da QV relacionada aos sintomas físicos da IC. O estudo também confirma o fato de que quando pacientes são menos sintomáticos e não apresentam sintomas de ansiedade e internações recorrentes, a QV dos pacientes é melhor.
Em outro estudo,23 um menor suporte social e mais sintomas depressivos foram preditores independentes de uma pior QV. Ainda, a perspectiva dos pacientes em relação ao suporte familiar e apoio para autonomia, além do conhecimento da família sobre a IC, influenciaram os desfechos psicológicos de sintomas depressivos e QV emocional de pacientes com IC.24 Esses estudos corroboram nossos resultados, uma vez que as pessoas casadas, com suporte familiar, tinham uma percepção positiva do controle da IC, e os sintomas de ansiedade e de depressão afetaram direta e negativamente os sintomas físicos da IC, o que, por sua vez, interferiram com a QV desses pacientes.
Uma metanálise concluiu que os sintomas somáticos/afetivos da depressão associaram-se mais fortemente e consistentemente com mortalidade e eventos cardiovasculares em comparação a sintomas cognitivos/afetivos em pacientes com doença cardíaca.25 Outro estudo26 com 55 pacientes com IC congestiva também mostrou que sintomas depressivos somáticos/afetivos, mas não sintomas depressivos cognitivos ou de ansiedade, associaram-se com pior QV relacionada à saúde e capacidade funcional comportamental, independentemente da idade, condição clínica e funcional, e comorbidades.26 Nossos resultados contrastam com esses achados, uma vez que as classes funcionais NYHA III e IV pioraram todas as dimensões do MLwHF, e os sintomas de ansiedade influenciaram direta ou indiretamente a presença de um pior escore.
Estar disposto a seguir uma dieta pobre em sódio e ter maior apoio social associaram-se significativamente com maiores níveis de controle percebido e melhor QV.27 Um estudo recente28 indicou que sintomas depressivos exerceram um efeito negativo sobre a adesão ao tratamento medicamentoso relacionada à complexidade do regime de tratamento comumente prescrito a pacientes com IC. No presente estudo, também observamos que o uso de betabloqueadores, IECA e furosemida estiveram associados com pior MLwHF em diferentes dimensões, sugerindo ser uma barreira para atingir a adesão ao tratamento medicamentoso.
Porém, não se sabe ao certo como e por quais mecanismos essas associações ocorrem. Provavelmente, fatores fisiológicos e comportamentais incluindo disfunção endotelial, disfunção plaquetária, inflamação, disfunção do sistema nervoso, e menor envolvimento em atividades que promovem saúde, podem relacionar a depressão e a ansiedade com eventos cardíacos adversos e pior QV na IC.29,30
Este estudo tem algumas limitações. O estudo foi realizado em um único centro, apesar de incentivar o desenvolvimento de estudos futuros em outros centros especializados. Além disso, seu delineamento transversal dificultou a avaliação de possíveis mudanças na QV dos pacientes e de quais fatores contribuíram para tais mudanças, e especulações sobre o prognóstico, que só seriam possíveis em um delineamento longitudinal. Assim, generalizações devem ser feitas com cautela.
Com base nesses resultados, pode-se concluir que uma FEVE reduzida está associada a muitos fatores que comprometem a QV de pacientes ambulatoriais com IC, mesmo em casos menos graves clinicamente, como os pacientes em classe funcional NYHA I ou II. Esses achados podem ajudar na abordagem mais abrangente de pacientes com IC, sugerindo o diagnóstico e tratamento de sintomas de ansiedade, especialmente naqueles com várias internações hospitalares e com idade inferior a 60 anos.