versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.110 no.1 São Paulo jan. 2018
https://doi.org/10.5935/abc.20180011
A possibilidade de se limitar uma lesão miocárdica isquêmica tem sido um importante foco de pesquisa cardiovascular ao longo de 4 décadas e, literalmente, milhares de intervenções foram testadas nesse sentido.1 Infelizmente, essa tem sido uma longa saga não concluída e, com exceção da reperfusão, a maioria das intervenções não foram bem-sucedidas na área clínica.1 Com o advento das formas clínicas de reperfusão, o objetivo desses estudos passou a ser identificar terapias adjuvantes que protejam o miocárdio da lesão de reperfusão. Contudo, praticamente nenhuma intervenção conseguiu alcançar, de fato, um cenário realista de teste clínico, apesar de terapias celulares e outras intervenções emergentes, tais como o transplante mitocondrial, apresentar possibilidades concretas de trazer uma nova perspectiva de cardioproteção. Estima-se que o total de investimentos mundiais em pesquisa sobre cardioproteção realizados por agências de financiamento tenha ultrapassado 1 bilhão de dólares americanos até o momento.1 Portanto, é plausível questionar se é justificável insistir nesse tipo de investigação.1 Com esse intuito, o Instituto Nacional da Saúde dos EUA (National Institutes of Health) criou um consórcio para realizar uma rigorosa avaliação pré-clínica das terapias cardioprotetoras (CAESAR).2 Hoje, a resposta para essas questões na área de isquemia/reperfusão depende dos resultados dos estudos em andamento.1,3 Enquanto isso, é possível que compreender os mecanismos pelos quais intervenções específicas promovam cardioproteção na lesão de reperfusão tenha implicações mecanísticas em outras áreas. Por exemplo, várias anormalidades relacionadas à regulação do cálcio na isquemia/reperfusão podem ser relevantes para compreender a fisiopatologia da insuficiência cardíaca,4 e vias de sinalização associadas com respostas à hipóxia podem modular muitos aspectos da resposta vascular à lesão.5 Portanto, a investigação de intervenções acessíveis e não tóxicas, que promovam proteção ao cardiomiócito e em particular a identificação de mecanismos associados, pode ser relevante em diversos aspectos.
O artigo de Hu S et al.,6 nesta edição, traz uma contribuição a esse cenário. Os autores demonstram que as concentrações farmacológicas do hormônio melatonina (N-acetil-5-metoxitriptamina), produzido pela glândula pineal, promove cardioproteção. Primeiramente, os autores utilizaram um modelo de cultura de uma linhagem de cardiomiócitos submetidos à hipóxia/reperfusão, e mostraram que o pré-tratamento com melatonina resulta em redução na morte celular e melhor organização do citoesqueleto da actina. Os autores questionaram se esses mecanismos protetores poderiam estar associados a uma melhor regulação do cálcio. De fato, a incubação com melatonina promoveu uma diminuição na sobrecarga de cálcio intracelular. Ainda, preveniu o aumento na expressão do receptor inositol trifosfato e a diminuição na expressão de Ca2+ -ATPase do retículo sarcoplasmático (SERCA), ambos associados à hipóxia/reperfusão. Esses dois últimos foram reproduzidos em um modelo de isquemia/reperfusão em ratos. Esses resultados indicam uma melhora na regulação do cálcio pelo retículo sarcoplasmático, e consequentemente a existência de um possível mecanismo de cardioproteção. Ainda, vale mencionar que a incubação com melatonina causou um aumento na fosforilação de ERK1 (isto é, ativação da quinase 1 regulada por sinal extracelular) e a inibição farmacológica do ERK1 na presença do composto PD98059 anulou os efeitos protetores da melatonina sobre a sobrevivência celular, organização da actina e regulação do cálcio. Assim, a preservação da ativação da ERK1 é um mecanismo provável dos efeitos protetores da melatonina.
Este estudo soma-se a outros trabalhos, indicando um efeito cardioprotetor da melatonina por uma gama de mecanismos antioxidantes,7 que inclui a preservação da integridade mitocondrial.8 É provável que tal efeito antioxidante possa ter contribuído para a melhor regulação do cálcio. Todos esses dados sugerem que os mecanismos associados com cardioproteção dependente de melatonina merecem mais estudos, os quais podem resultar no desenvolvimento de intervenções não tóxicas e acessíveis. Essas, por sua vez, podem ter muitas implicações, inclusive mostrar que a cardioproteção não está morta.1