versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.3 São Paulo jul./set. 2018 Epub 25-Jun-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-3842
A Doença Renal Crônica (DRC) tornou-se um significativo problema de saúde pública devido à elevada prevalência no Brasil e no mundo, bem como ao seu impacto na morbimortalidade dos indivíduos acometidos.1,2,3
O diagnóstico precoce da doença e encaminhamento imediato do paciente a uma equipe que forneça o tratamento médico e nutricional são medidas benéficas não somente no que se refere ao retardo da progressão da falência renal, mas também para o tratamento das complicações associadas, que incluem principalmente as doenças cardiovasculares (DCV).2,4
Durante os estágios da DRC que antecedem a terapia renal substitutiva, a dieta hipoproteica (0,6g/kg/dia) é uma das estratégias terapêuticas mais importantes para esses pacientes, pois, além de retardar a falência renal, melhora os sintomas urêmicos, reduz as concentrações séricas de fósforo e a proteinúria, e melhora a acidose metabólica e a resistência à insulina.5-10
A restrição da proteína de origem animal na dieta leva consequentemente à redução da ingestão de gorduras saturadas e colesterol, que estão intimamente associadas ao desenvolvimento de dislipidemias e consequentes eventos cardiovasculares, especialmente a doença aterosclerótica.11,12 Obesidade e dislipidemias são comumente encontradas nos pacientes com DRC, e podem ser melhoradas com tratamento nutricional adequado.12-16
Sendo assim, considerando o impacto negativo dos fatores de risco cardiovascular em pacientes com DRC, especialmente excesso de peso e dislipidemia, a dieta hipoproteica prescrita para os pacientes em tratamento conservador pode também ser benéfica no que diz respeito à redução do peso de pacientes com sobrepeso e obesidade, bem como melhora no perfil lipídico. No entanto, poucos estudos avaliaram o efeito da restrição proteica na modulação de tais fatores de risco cardiovasculares discutidos anteriormente. Assim, o objetivo deste estudo foi avaliar os efeitos da dieta hipoproteica sobre parâmetros antropométricos e do perfil lipídico em pacientes com DRC em tratamento conservador.
Foi realizado um ensaio clínico longitudinal com 50 pacientes com DRC entre os estágios 3 e 4, encaminhados para o Ambulatório de Nutrição Renal da Faculdade de Nutrição da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. Dez pacientes não concluíram o estudo devido à desistência e ausência nas consultas para avaliação antropométrica, bem como nos dias de coleta de material biológico. Foram incluídos pacientes com TFG entre 15-44 mL/min, maiores de 18 anos de idade, sem acompanhamento nutricional prévio. Foram adotados os seguintes critérios de exclusão: fumantes, grávidas, pacientes com doenças autoimunes, neoplásicas e hepáticas, AIDS.
Os pacientes foram informados previamente sobre a coleta e uso de material biológico e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina-UFF sob parecer nº 565.857.
Na primeira consulta nutricional, foi prescrita aos participantes dieta hipoproteica (0,6 g de proteína/kg de peso ideal/dia), restrita em sal (3g/dia) e individualizada em potássio e fósforo. O cálculo da ingestão energética foi baseado na avaliação nutricional individual (30 a 35 kcal/kg de peso ideal/dia). As análises bioquímicas, antropométricas e dietéticas foram realizadas antes e após 6 meses da intervenção nutricional. As consultas de acompanhamento nutricional foram realizadas bimestralmente, e, quando necessário, foram feitos ajustes na dieta prescrita com base em oscilações de peso e preferências individuais.
A análise da ingestão alimentar foi realizada antes da intervenção e após 6 meses através do recordatório alimentar de 24h (R24h), realizado em um dia da semana e um dia do fim de semana. A ingestão de energia, macronutrientes e micronutrientes foi estimada usando o software Excel (2010), sendo a composição de nutrientes obtida pela Tabela Brasileira de Composição de Alimentos (TACO).17
Para maior adesão à dieta, foram promovidas oficinas culinárias, que é uma estratégia pedagógica de articulação teórica-vivencial pautada na participação e na troca de experiências. As oficinas tiveram como objetivo desenvolver habilidades culinárias, debater e aprofundar conceitos sobre fontes de proteínas, sal, potássio e fósforo e quantidades adequadas na dieta dos pacientes com DRC. Em cada encontro, além das discussões fomentadas no grupo, foram realizadas avaliações individuais escritas, nas quais os participantes puderam registrar livremente suas impressões sobre as atividades desenvolvidas, incluindo os conteúdos apresentados e a reflexão de como tal experiência poderia contribuir para o cuidado da saúde na prática cotidiana.18
O estado nutricional foi avaliado por nutricionistas da equipe em cada consulta, e foram aferidos peso corporal, estatura e circunferência da cintura (CC). Para avaliação do estado nutricional, foi utilizado o IMC, obtido pela razão entre peso corporal (kg) e o quadrado da estatura (m), classificado de acordo com o proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 2000).19 Os valores obtidos na aferição da CC (cm) foram comparados aos valores limítrofes associados ao risco de desenvolvimento de DCV, propostos pela OMS (2000).
Os valores percentuais de gordura corporal (%GC) e de massa magra (%MM) foram obtidos por meio do exame de absorciometria com raio x de dupla energia (DXA, Lunar Prodigy Advance Plus, General Electric Madison, Wisconsin, USA), realizado no Laboratório de Avaliação Nutricional da UFF (LANUFF) antes e após 6 meses de intervenção nutricional. Os valores de referência para o percentual de gordura corporal (%GC) foram adotados conforme estabelecido por Lohman et al. (1991).20
A coleta de sangue foi realizada com jejum de 12 horas, antes e após 6 meses da intervenção nutricional. As concentrações séricas de ureia, creatinina, albumina, cálcio, potássio, fósforo, glicose e perfil lipídico foram analisadas através de aparelho de automação BioClin® com kits comerciais apropriados. A TFG foi estimada pela equação CKD-Epi (Levey et al., 2009).21 Os parâmetros do perfil lipídico - colesterol total (CT), HDL-colesterol (HDL-c) e triglicerídeos (TG) - foram analisados através do método enzimático colorimétrico KATAL®. Os valores de LDL-colesterol (LDL-c) e VLDL-colesterol (VLDL-c) foram calculados pela equação de Friedewald. Como não há consenso sobre os valores-alvo do perfil lipídico a serem atingidos nos pacientes com DRC - o guideline National Kidney Foundation-Kidney Disease Outcomes Quality Initiative (NKF-KDOQI)22 não considera os valores de LDL na decisão do tratamento -, os valores do perfil lipídico do presente trabalho foram avaliados com base na V Diretriz Brasileira sobre Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose do Departamento de Aterosclerose da Sociedade Brasileira de Cardiologia de 2013 (Valores normais [mg/dL]): CT < 200, HDL-c > 40, LDL-c < 130, VLDL-c < 30, TG < 150).23
Foi utilizado o teste de Kolmogorov-Smirnov para testar a distribuição das variáveis, cujos resultados foram expressos em média ± DP (desvio-padrão) ou percentual, conforme adequado. Foi utilizado Teste-t pareado, qui-quadrado ou teste de Wilcoxon para avaliar a diferença nas variáveis de interesse em decorrência da intervenção. O coeficiente de correlação de Pearson foi considerado para avaliar a correlação entre as variáveis. Os testes foram fixados com valores de confiança em 95% (p < 0,05), considerados significativos. As análises estatísticas foram realizadas utilizando-se o programa Statistical Package for Social Sciences, versão 23.0 (SPSS, Inc., Chicago, IL, EUA).
Dos 40 pacientes que foram incluídos no estudo, 50% eram do sexo masculino, com idade de 62,7 ± 15,2 anos, e TFG média de 26,2 ± 9,4 mL/min/1,73m2. Todos os pacientes eram hipertensos, 45% apresentavam diabetes mellitus, e 35% apresentavam dislipidemias, com uso de hipolipemiantes. Quanto aos demais medicamentos utilizados, todos os pacientes faziam uso de anti-hipertensivos; 20% utilizavam bicarbonato de sódio; 32,5%, agente antidiabético; 17,5%, antianêmicos; e 17,5% faziam uso de suplementos vitamínicos. Ressalta-se que o uso desses medicamentos não foi alterado durante o tempo de acompanhamento.
Na avaliação da ingestão alimentar observou-se, após 6 meses, redução significativa na ingestão de energia, proteínas, colesterol e fibras, e aumento da ingestão de carboidratos, conforme consta na Tabela 1.
Tabela 1 Parâmetros dietéticos de pacientes renais crônicos em tratamento conservador no momento basal e após seis meses de intervenção com dieta hipoproteica
Parâmetros | Basal | Após 6 m | p valor |
---|---|---|---|
Energia (kcal/kg) | 29,0 ± 9,0 | 23,5 ± 6,4 | 0,0001 |
Proteínas (g/kg) | 1,4 ± 0,4 | 0,8 ± 0,4 | 0,0001 |
Carboidratos (%) | 58,1 ± 8,7 | 62,6 ± 9,0 | 0,03 |
Lipídeos totais (%) | 21,9 ± 7,9 | 21,6 ± 9,2 | 0,83 |
Ácidos graxos monoinsaturados (%) | 31,7 ± 5,4 | 36,3 ± 14,8 | 0,11 |
Ácidos graxos poliinsaturados (%) | 17,7 ± 8,5 | 15,7 ± 6,4 | 0,23 |
Ácidos graxos saturados (%) | 36,8 ± 10,5 | 33,6 ± 9,9 | 0,09 |
Colesterol (mg) | 201,9 ± 92,4 | 106,0 ± 73,5 | 0,0001 |
Fibras (g) | 25,2 ± 9,0 | 22,1 ± 9,6 | 0,03 |
Ferro (mg) | 12,7 ± 26,5 | 4,7 ± 2,0 |
Teste T de Student. Considerado estatisticamente significante p < 0,05. Dados apresentados como média ± DP. N = 40.
Com relação à antropometria, observou-se redução significativa do IMC, enquanto que a CC diminuiu significativamente apenas no sexo feminino. Já os percentuais de GC e MM não apresentaram diferença significativa (Tabela 2).
Tabela 2 Perfil antropométrico de pacientes com DRC em tratamento conservador antes e após seis meses de intervenção com dieta hipoproteica
Parâmetros | Basal | Após 6 m | p valor |
---|---|---|---|
Peso (kg) | 72,9 ± 14,5 | 70,4 ± 13,4 | 0,0001 |
IMC (kg/m2) | 28,1 ± 5,6 | 27,0 ± 5,3 | 0,001 |
CC (cm) – Mulheres | 95,1 ± 15,9 | 93,2 ± 15,7 | 0,04 |
CC (cm) – Homens | 94,4 ± 14,1 | 93,1 ± 13,56 | 0,13 |
% GC | 33,7 ± 8,2 | 33,4 ± 9,4 | 0,51 |
% MM | 64,0 ± 5,6 | 64,6 ± 6,3 | 0,47 |
Teste T de Student. Considerado estatisticamente significante p < 0,05. N = 40. Dados apresentados como média ± DP. IMC = Índice de Massa Corporal; CC: Circunferência da Cintura; %GC: Percentual de Gordura Corporal; %MM: Percentual de Massa Magra.
Após 6 meses de intervenção nutricional houve melhora da função renal, estimada pela TFG, e as concentrações séricas de ácido úrico foram reduzidas (Tabela 3). No momento basal da pesquisa 12 pacientes (30%) apresentaram elevadas concentrações séricas de potássio e 14 pacientes (35%) apresentaram níveis séricos de albumina inferiores a 3,8 mg/dL, não havendo melhora após a intervenção nutricional (dados não mostrados).
Tabela 3 Parâmetros bioquímicos e estimativa da taxa de filtração glomerular de pacientes com DRC em tratamento conservador após seis meses de intervenção com dieta hipoproteica
Parâmetros | Basal | Após 6 m | p valor |
---|---|---|---|
Ureia (mg/dL) | 85,2 ± 28,4 | 79,1 ± 26,4 | 0,20 |
Creatinina (mg/dL) | 2,6 ± 0,9 | 2,5 ± 1,2 | 0,32 |
TFG (ml/min/1,73m2) | 26,2 ± 9,5 | 28,9 ± 12,7 | 0,02 |
Ácido úrico (mg/dL) | 6,8 ± 1,4 | 6,2 ± 1,3 | 0,004 |
Glicose (mg/dL) | 110,4 ± 42,1 | 106,9 ± 43,2 | 0,69 |
Na (mg/dL) | 139,3 ± 3,7 | 139,4 ± 5,7 | 0,89 |
Potássio (mmol/L) | 4,8 ± 0,6 | 4,8 ± 0,5 | 0,83 |
Ca (mg/dL) | 8,7 ± 1,1 | 8,9 ± 0,6 | 0,48 |
Fósforo (mg/dL) | 3,5 ± 0,7 | 3,5 ± 0,6 | 0,99 |
Ferro (µg/dL) | 79,3 ± 38,0 | 81,1 ± 36,9 | 0,80 |
Ferritina (µg/dL) | 151,4 ± 111,3 | 128,1 ± 90,8 | 0,09 |
Albumina (g/dL) | 3,8 ± 0,4 | 3,8 ± 0,4 | 0,31 |
Teste T de Student. Considerado estatisticamente significante p < 0,05. N = 40. Dados apresentados como média ± DP. TFG: Taxa de Filtração Glomerular.
Quanto à análise do perfil lipídico, 40% dos pacientes apresentaram hipercolesterolemia. Esse valor foi reduzido para 27,5% (p = 0,01) após a intervenção. Houve redução significativa nas concentrações séricas de CT e LDL-c após 6 meses de prescrição de dieta hipoproteica, não havendo diferença significante nos demais parâmetros (Tabela 4).
Tabela 4 Parâmetros de perfil lipídico de pacientes com DRC em tratamento conservador após seis meses de intervenção com dieta hipoproteica
Parâmetros (mg/dL) | Basal | Após 6 meses | p valor |
---|---|---|---|
Colesterol total | 199,7 ± 57,1 | 176,0 ± 43,6 | 0,0001 |
LDL-c | 116,2 ± 48,1 | 97,4 ± 39, 1 | 0,0001 |
HDL-c | 50,2 ± 14,4 | 48,7 ± 12,9 | 0,29 |
VLDL-c | 32,9 ± 13,8 | 29,4 ± 14,6 | 0,15 |
Triglicerídeos | 167,0 ± 71,1 | 149,7 ± 75,9 | 0,18 |
Teste T de Student. Considerado estatisticamente significante p < 0,05. Dados apresentados como média ± DP. N = 40. LDL-c: low density lipoprotein cholesterol (lipoproteína de baixa densidade); HDL-c: high density lipoprotein cholesterol (lipoproteína de alta densidade); VLDL-c: very low density lipoprotein cholesterol> (lipoproteína de muito baixa densidade).
Neste estudo, verificou-se que a dieta hipoproteica prescrita durante seis meses para pacientes com DRC na fase pré-dialítica, além de preservar a função renal, auxiliou na perda de peso corporal, bem como na redução dos níveis séricos de ácido úrico, colesterol total e LDL-c.
Sabendo-se que o IMC não pode ser utilizado sozinho para avaliação da composição corporal, pois não diferencia massa muscular de massa gorda, tem-se utilizado o %GC e a aferição da CC como métodos adjuvantes para avaliar a distribuição de gordura corporal.24-26 A aferição da CC tem sido um método de escolha entre os pesquisadores por ter baixo custo e praticidade, além de referir-se ao acúmulo de gordura abdominal, que possui alta atividade metabólica e inflamatória, e assim associar-se a maior risco de mortalidade, inclusive cardiovascular.27
Dessa forma, apesar da melhora significativa nos perfis antropométricos observados após a intervenção nutricional, não foi verificada melhora significativa no %GC e %MM. Clinicamente, após intervenção com dieta hipoproteica, os pacientes continuaram a apresentar fator de risco para síndrome metabólica e para o desenvolvimento de DCV, uma vez que se mantiveram na classificação de sobrepeso, segundo o IMC, e obesidade abdominal, representados por valores elevados da CC.
De fato, a obesidade tem tomado grandes proporções nas últimas décadas, aumentando seu impacto no surgimento de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), incluindo a DRC e a DCV, bem como na mortalidade.28-31 Uma pesquisa realizada em uma população japonesa demonstrou que a obesidade sem anormalidades metabólicas estava associada a um maior risco de DRC em homens, porém não em mulheres.32 Assim, faz-se necessária a adoção de medidas terapêuticas nutricionais eficazes para reduzir o impacto negativo da obesidade, e auxiliar no tratamento da DRC, reduzindo a proteinúria e a hiperfiltração glomerular, melhorando a hipertensão arterial, dislipidemia, resistência à insulina e inflamação.33-35
No estudo conduzido por Lai et al. (2015)36 com 16 pacientes com DRC em estágios 3 e 4 submetidos à dieta hipoproteica por 12 meses, a análise da composição corporal mostrou redução não significativa de tecido adiposo e do IMC, com manutenção da massa magra. Não houve redução dos níveis séricos de albumina e proteínas, e a função renal permaneceu estável, com significante redução da excreção proteica urinária. Houve melhora, embora não significativa, nos perfis lipídicos com redução do CT e LDL-c, triglicerídeos e aumento do HDL-c. Marcadores de aterosclerose e de disfunção endotelial também permaneceram estáveis.
Por outro lado, Noce et al. (2016)37 não obtiveram bons resultados com a prescrição de dieta hipoproteica para 41 pacientes com DRC estágios 3b e 4. Apesar de ter havido retardo da progressão da falência renal, com redução significativa da creatinina e da azotemia, foi observado piora do estado nutricional, com diminuição significativa de albumina sérica e aumento de proteína C reativa, seguida por comprometimento da porcentagem de massa livre de gordura e aumento da relação entre massa extracelular e massa celular corporal. Também foi observado redução do ângulo de fase, que é um fator prognóstico negativo para a sobrevida.
No presente estudo, a dieta hipoproteica foi capaz de melhorar a TFG, o que corrobora com outras pesquisas. Sabe-se que o tratamento para pacientes com DRC deve levar em conta, dentre outros fatores, a velocidade da diminuição da filtração glomerular e a identificação de complicações e comorbidades, particularmente as cardiovasculares.38 Em um estudo longitudinal com 239.832 chineses para investigar a associação da TFG com DCV foi observado que aqueles com menor TFG apresentaram maior risco de prevalência de obesidade, diabetes mellitus, hipertensão arterial e dislipidemia; e risco significativamente maior para doença arterial coronariana e cardiovascular aterosclerótica.39
Vale ressaltar que os riscos relacionados à obesidade envolvem também as alterações no perfil lipídico, também chamada de dislipidemia, causada pelo catabolismo debilitado de lipoproteínas, considerado um dos principais fatores de risco tradicionais para DCV, especialmente para a doença aterosclerótica.11,40 A dislipidemia contribui para o aumento do processo inflamatório levando à progressão da DRC.41,42 Associado a isso, a DRC induz ao metabolismo prejudicado de lipoproteínas.43,44
A redução dos níveis séricos de colesterol total e LDL-c observada neste estudo corresponde ao esperado, uma vez que a redução da ingestão de proteínas de origem animal auxiliaria na redução dos níveis séricos de colesterol.
Na análise dietética, embora não tenha sido reduzida de forma significativa a ingestão de lipídeos em termos percentuais, houve redução significativa na ingestão de colesterol dietético, o que reforça os resultados encontrados nos parâmetros do perfil lipídico. A redução da ingestão diária de proteínas foi estatisticamente significativa, e a ingestão proteica correlacionou-se positivamente com a ingestão de colesterol dietético (dados não mostrados), o que reforça a teoria de que a dieta hipoproteica também promove redução da ingestão de colesterol dietético.
Anormalidades do perfil lipídico variam dependendo da excreção urinária proteica e do estágio da DRC. Nesses pacientes são observados aumento dos níveis séricos de triglicerídeos, diminuição de HDL-c, aumento da lipoproteína A e níveis normais de LDL-c.45 Em um estudo transversal retrospectivo com 136 pacientes com DRC em tratamento conservador foi observada alta prevalência de dislipidemias (75,7%), sendo a média dos valores de CT de 179,6±41,0mg/dL, HDL-c de 46,1±12,6mg/dL, LDL-c de 101,7±34,5mg/dL e triglicerídeos de 160,0±87,2mg/dL. Além disso, o grupo com dislipidemia apresentou níveis superiores de triglicerídeos e inferiores de HDL-c.46
Kanda et al. (2016)45 mostraram em sua pesquisa com 71 pacientes com DRC em estágios 4 e 5 que as subclasses de HDL estão associadas à progressão da DRC, sugerindo que não somente os níveis de colesterol das lipoproteínas, mas também a composição das subclasses, possam ter relação com maior risco de mortalidade nessa população. Em outro estudo, conduzido com 2.036 chineses com TFG média de 63 mL/min/1.73m2, observou-se que os níveis séricos de triglicerídeos apresentaram correlação negativa com a TFG e os estágios da DRC foram positivamente relacionados ao risco de hipertrigliceridemia.47
A prescrição dietética incluiu adequação da ingestão energética de acordo com as recomendações nutricionais dos pacientes, os quais não haviam passado por consulta nutricional prévia. Foi escolhido o método R24h para estimar a ingestão alimentar dessa população por ser um instrumento de fácil aplicação, rápido e de baixo custo, possibilitando a avaliação da ingestão de forma qualitativa e quantitativa. Entretanto, sua limitação é depender da memória do indivíduo, podendo ocorrer erros por sub ou superestimação.48 No presente estudo, os pacientes relataram ingestão de energia abaixo do recomendado, o que não se correlaciona com elevados valores de IMC ou mesmo de CC encontrados, sugerindo sub-relato da ingestão alimentar pelos participantes.
É importante ressaltar a baixa adesão ao tratamento, tanto em relação à dieta quanto ao uso de medicamentos, que tem sido relatada em diversos estudos com pacientes com DRC, variando entre 20% e 70%, dependendo do método de avaliação.49 Embora tenha havido redução na ingestão de proteínas, observou-se que o valor médio dessa ingestão após seis meses da prescrição da dieta ainda estava acima da recomendação. É compreensível a complexidade de seguir a dieta criteriosamente, pois se distancia dos padrões alimentares culturais encontrados na população brasileira, cuja dieta envolve grandes quantidades de proteínas, que geralmente incluem feijão, carne bovina, leite de vaca e derivados.50,51 No Brasil, a maioria das pessoas tem alta ingestão de proteínas, o que torna mais difícil a adesão à dieta hipoproteica. Dados da Pesquisa do Orçamento de Agregados Familiares, em 2009, mostraram que os alimentos mais consumidos pelos brasileiros foram feijão, arroz, carne, sucos (industrializados ou não), refrigerantes e café.52
Com relação aos parâmetros bioquímicos, somente os níveis séricos de ácido úrico apresentaram diferença significativa. Uma explicação seria a redução na ingestão de alimentos que aumentam a concentração sanguínea, como carne vermelha, miúdos, peixes, alimentos industrializados, produtos integrais, dentre outros, conforme orientado nas consultas nutricionais. Pode-se dizer que esse é um resultado satisfatório, visto que altos níveis de ácido úrico estão associados ao rápido declínio da TFG e ao maior risco de progressão da falência renal.53
Dentre as limitações do presente estudo, tem-se o pequeno número amostral, que permite considerar os resultados somente para a população em questão; o período de intervenção nutricional, que pode ter sido muito curto para mudar os hábitos alimentares dos participantes; e, por fim, a utilização do método recordatório alimentar de 24 horas, que possui como principal limitação a sub ou superestimação da ingestão alimentar. Dessa forma, mais estudos longitudinais são necessários para entender o efeito da dieta hipoproteica nos perfis lipídicos e antropométricos de pacientes renais.
Com base nos resultados encontrados neste estudo, pode-se concluir que a prescrição de dieta hipoproteica (0,6g/kg/dia) por seis meses em pacientes na fase pré-dialítica da DRC pode prevenir a progressão acelerada da DRC e auxiliar no controle de dois fatores tradicionais de risco para DCV, o excesso de peso e as dislipidemias.