versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192
BrJP vol.3 no.1 São Paulo jan./mar. 2020 Epub 27-Fev-2020
http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20200004
A dor é uma das mais importantes e complexas experiências humanas, associada à lesão tecidual real ou potencial, e o seu tratamento com opioides aumentou substancialmente nos últimos anos, tornando-os comumente prescritos nos Estados Unidos1,2. No entanto, o aumento de prescrições tem causado muitos problemas, entre os quais estão a falta de conhecimento referente à eficácia em longo prazo, uso abusivo e eventos adversos associados ao uso prolongado, incluindo a hiperalgesia induzida por opioides (HIO), fenômeno pelo qual, paradoxalmente, o opioide pode induzir ou sensibilizar os pacientes à dor aguda3,4. Nesse sentido, pacientes que recebem altas doses de opioides podem sofrer intensa dor aguda após a cirurgia, com aumento da dose de analgésicos, e ansiedade tanto para o paciente quanto para o médico4.
Múltiplos são os mecanismos propostos como responsáveis pela HIO, entre os quais alterações de receptores N-metil-D-aspartato (NMDA) e segundos mensageiros, ativação de ciclo-oxigenase (COX) espinhal, liberação de aminoácidos excitatórios, redução de neurotransmissores inibitórios, facilitação descendente e o sistema antianalgésico2,3,5,6.
O aumento da liberação de glutamato no corno dorsal da medula espinhal, e o consequente aumento mantido de estímulo e resposta dos receptores NMDA pela remoção de magnésio mediada por proteinocinase-C parecem ser importantes mecanismos implicados na HIO7. Esses receptores NMDA podem ser ativados por opioides, que atuam como neurotransmissores excitatórios facilitando a entrada de cálcio na célula e sensibilização central (SC). A entrada de cálcio provoca aumento da atividade da proteinocinase-C, fosforilação e inativação de receptores opioides, além de causar aumento de óxido nítrico sintase8.
A HIO tem sido associada ao aumento de colecistocinina, peptídeo relacionado ao gene da calcitonina (CGRP), substância-P e nociceptina na medula rostral ventromedial devido ao aumento da expressão dos receptores opioides excitatórios, em detrimento dos receptores opioides inibitórios5,9,10.
As vias descendentes facilitadoras, mediadas por opioides, localizadas na medula rostral ventromedial, também parecem estar envolvidas na HIO devido a alterações neuroplásticas, visto que a exposição à morfina causa alteração neuroplástica na medula rostral ventromedial, com aumento da liberação de dinorfina e neurotransmissores de fibras aferentes primárias3,6,11. Nessa linha, a administração de opioide provocaria aumento de dinorfina, que pode favorecer a HIO5,6.
Há evidências de que a dinorfina espinhal é pronociceptiva, provocando liberação de neurotransmissores excitatórios de neurônios aferentes primários, sugerindo retroalimentação positiva, amplificando a aferência sensitiva6. Além disso, as prostaglandinas, as citocinas e as quimocinas também podem ser relevantes no desenvolvimento de HIO, visto que os opioides ativam a liberação de citocinas, com aumento de proteína C-fos em neurônios sensitivos da medula. Outros sistemas que podem estar envolvidos na HIO com redução do controle inibitório glicinérgico são o óxido nítrico sintase e a hemo-oxigenase2,3.
Estudos em roedores têm demonstrado que o fentanil causa HIO e sugerido que a proteína quinase IIa (CaMKIIa) dependente de Ca2+/calmodulina na cápsula lateral do núcleo central da amígdala (CeLC) e na medula espinhal pode desempenhar papel fundamental na modulação da HIO12,13.
A duloxetina, fármaco antidepressivo da classe dos inibidores seletivos da recaptação de serotonina e noradrenalina (ISRSN), é indicada no tratamento do transtorno depressivo, transtorno de ansiedade generalizada e em condições dolorosas crônicas, como a dor neuropática diabética, fibromialgia e dores musculoesqueléticas crônicas14.
O papel da serotonina e da noradrenalina na regulação do humor ocorre por meio das vias neuronais ascendentes, a partir da porção média do cérebro, estendendo-se para o sistema límbico e para o córtex pré-frontal. Além disso, as projeções noradrenérgicas e serotoninérgicas do tronco cerebral descem pela medula espinhal, onde se acredita estarem envolvidas na regulação da percepção somática sensorial. Alterações nas vias serotoninérgicas e noradrenérgicas modificam tanto a percepção cerebral dos estímulos sensoriais das vias ascendentes, como alteram o mecanismo de inibição da dor pelas vias descentes. A depressão e a dor crônica compartilham essas vias neuronais serotoninérgicas e noradrenérgicas, razão pela qual a duloxetina tem se mostrado eficaz nessas duas condições15.
A duloxetina se mostrou eficaz em condições dolorosas crônicas como a fibromialgia, a neuropatia diabética periférica, sintomas dolorosos da osteoartrite do joelho e dores lombares crônicas. Há também evidências de alívio dos sintomas dolorosos associados à depressão e ao transtorno de ansiedade generalizada16.
O efeito da fluoxetina sobre o sistema serotoninérgico (ISRS) é conhecido, evidenciando a fluoxetina como opção de tratamento para diferentes condições de dor crônica como fibromialgia, cefaleia do tipo tensional crônica, enxaqueca sem aura, neuropatia diabética dolorosa, dor musculoesquelética, dor pélvica crônica e síndrome coronariana17. Devido aos efeitos dos ISRS elevando a serotonina no sistema nervoso central (SNC), postula-se que a duloxetina e a fluoxetina podem ter utilidade na atenuação da HIO.
O envolvimento da neurotransmissão do glutamato na plasticidade sináptica sugere que a pregabalina também pode ser útil na atenuação da HIO18, sendo um fármaco análogo do GABA, que se liga seletivamente com alta afinidade aos canais de cálcio, amplamente distribuídos no SNC e periférico, produzindo efeito modulador com redução da liberação excessiva de vários neurotransmissores excitatórios.
Diversos ensaios clínicos documentaram seu efeito no alívio da dor e na qualidade de vida, incluindo humor e distúrbios do sono, sendo, portanto, indicada para o tratamento da fibromialgia, dor neuropática e transtorno de ansiedade generalizada18,19.
A pregabalina tem mostrado eficácia no tratamento da fibromialgia, com melhora de vários parâmetros do sono. Foi evidenciada a redução da dor, independentemente ou não de sintomas de ansiedade ou depressão, sugerindo que a redução da dor propiciada pela pregabalina resulta, principalmente, de efeito direto do tratamento, e não de efeito indireto pela melhora dos sintomas de ansiedade e depressão20.
Testes comportamentais como a aplicação de filamentos de von Frey e hiperalgesia térmica têm sido utilizados para a avaliação da hiperalgesia em ratos21. Neste estudo foi utilizado o teste com os filamentos de von Frey com o objetivo de avaliar se o fentanil, opioide amplamente utilizado na prática clínica, produz hiperalgesia que pode sofrer interferência dos fármacos duloxetina, fluoxetina e pregabalina.
Foram utilizados, pelas características da amostra animal e por conveniência, 30 ratos Wistar machos, pesando entre 220 e 300g, alocados em número de 5 animais por compartimento, onde permaneceram por 15 dias antes do início do experimento para adequada adaptação, tratados com ração balanceada comercial e água “ad libitum”, ciclo claro-escuro de 12 horas e temperatura ambiente variando entre 19 e 25ºC.
Para a realização dos procedimentos experimentais foram obedecidas as Normas Éticas da IASP, que regula experimentos realizados em animais (Committee for Research and Ethical Issues of the IASP, 1983). Todos os experimentos foram realizados nas dependências do Laboratório de Farmacologia e Fisiologia da Universidade de Taubaté, SP.
Para obter indução anestésica suave, os animais foram colocados em uma câmara de vidro transparente com medidas de 15x25x15cm, dotada de cobertura transparente para possibilitar a visualização do animal, com orifício na parte anterior e posterior para permitir entrada e saída de oxigênio (O2), gases anestésicos e gás carbônico, respectivamente. O agente halogenado utilizado na indução anestésica foi o isoflurano (Isoforine®, Cristália, Itapira, Brasil), na concentração de 4,0% em fração inspirada de oxigênio (FiO2) de 1,0, administrado por vaporizador calibrado (HB Hospitalar) e mantido por três minutos, tempo necessário para que o animal apresentasse perda dos reflexos posturais e incapacidade de se deslocar na câmara. A seguir, o animal foi retirado da câmara e posicionado com o focinho em uma máscara por onde recebia isoflurano a 4% em O2 como na câmara de indução da anestesia.
O procedimento cirúrgico constou de uma incisão cirúrgica, longitudinal, de 1,0cm de extensão, na pata posterior direita, de acordo com o modelo de dor pós-operatória21. Essa incisão foi realizada com o auxílio de um bisturi com lâmina número 11, incisando a pele e a fáscia da região plantar da pata, iniciando-se a 0,5cm da borda do calcâneo e estendendo-se em direção aos pododáctilos. A seguir, o músculo plantar foi elevado e incisado longitudinalmente, permanecendo a sua inserção intata. Após hemostasia com leve pressão sobre a área cirúrgica, todos os planos foram aproximados e suturados com dois pontos separados com fio agulhado mononylon 4-0.
Os animais foram divididos aleatoriamente em seis grupos para receber volumes semelhantes de fármacos ou solução fisiológica (SF) a 0,9%. No grupo 1, os animais receberam 1mL de SF a 0,9% por via intraperitoneal (IP) e por gavagem; grupo 2 fentanil (100µg.kg-1) (IP) em dose única e SF a 0,9% por gavagem; grupo 3 fentanil (100µg.kg-1) (IP) em dose única e duloxetina (40mg.kg-1) por gavagem; grupo 4 fentanil (100µg.kg-1) (IP) em dose única e fluoxetina (40mg.kg-1) por gavagem e, grupo 5 fentanil (100µg.kg-1) (IP) em dose única e pregabalina (40mg.kg-1) por gavagem.
A avaliação da hiperalgesia foi realizada pela aplicação do teste de filamentos de von Frey21. Os animais foram alojados em uma câmara de madeira, com piso de tela galvanizada quadriculada de 0,5cm. Sob o piso foi acoplado um espelho que permitiu ao pesquisador observar a aplicação do filamento e o reflexo de retirada do membro. Antes da aplicação do filamento, os animais foram mantidos na caixa por cerca de 15 minutos para adaptação. Cada um dos filamentos, em ordem crescente de pressão, foi aplicado três vezes consecutivas com intervalo de 3 a 5 segundos, passando-se então ao filamento seguinte, sendo considerada resposta positiva quando o animal retirava o apoio do membro lesionado do piso à aplicação do filamento. Foi considerado valor zero de pressão quando os animais se apresentaram com o membro totalmente recolhido, ou seja, não sendo necessário nenhum estímulo para que o animal recolhesse o apoio do membro. Os dados colhidos foram registrados em uma ficha de coleta de dados específica para cada animal nos momentos: 2ª hora, 1, 3, 5 e 7 dias após o procedimento cirúrgico e administração dos tratamentos.
O projeto teve início após aprovação pelo Comitê de Ética no Uso de Animais CEUA/UNITAU, sob o nº 03/2017.
Foi utilizado o software JMP® do SAS (Statistical Analysis System) Institute, aplicando-se o teste t de Student, comparando par a par e adotando nível de significância menor que 5% (p<0,05).
Ao se comparar o peso médio dos animais antes do início do experimento, não houve diferença estatisticamente significante entre os grupos (p<0,05). Na 2ª hora após o procedimento cirúrgico, a intensidade da dor, avaliada pelos filamentos de von Frey estão expressas na figura 1, mostrando não haver diferença significante quando comparado o G1 com o G2 (p=0,3759), mas com significância estatística quando estes foram comparados aos grupos G3, G4 e G5 (p<0,05).
Figura 1 Teste t de Student não mostrou diferença significativa quando comparado G1** com G2** (p=0,3759), mas com significância estatística quando comparado com G3*, G4* e G5* (p<0,05).
No primeiro dia após o procedimento cirúrgico, a intensidade da dor, avaliada pelos filamentos de von Frey, está expressa na figura 2, mostrando diferença significante entre G1 e G2 (p<0,05) e, entre estes e os grupos G3, G4 e G5 (p<0,01).
Figura 2 Teste t de Student mostrou diferença significativa quando comparou o G1* com o G2** e com o G3***, G4*** e G5*** (p<0,01).
No terceiro dia após o procedimento cirúrgico, a intensidade da dor, avaliada pelos filamentos de von Frey, está expressa na figura 3, mostrando diferença significante entre o G1 e G2 (p<0,05) e, entre estes e os grupos G3, G4 e G5 (p<0,01).
Figura 3 Teste t de Student mostrou diferença significante quando comparou o G1* com o G2** (p<0,05) e com o G3***, G4*** e G5*** (p<0,01).
No 5º dia após o procedimento cirúrgico, a intensidade da dor, avaliada pelos filamentos de von Frey, está expressa na figura 4, mostrando diferença significante entre G2 e os grupos G1, G3, G4 e G5 (p<0,05).
Figura 4 Teste t de Student mostrou diferença significante quando comparou o G2* com os grupos G1, G3, G4 e G5 (p<0,05)
No 7º dia após o procedimento cirúrgico, a intensidade da dor, avaliada pelos filamentos de von Frey, está expressa na figura 5, sem mostrar diferença significante entre os grupos.
Os opioides são fármacos fundamentais para o tratamento da dor. Porém, ao mesmo tempo em que inicialmente são analgésicos e anti-hiperalgésicos, posteriormente podem provocar hiperalgesia, tornando o paciente mais sensível à dor2-5.
A HIO tem sido atribuída à dessensibilização aguda de receptores por descarrilamento da proteína G dos receptores opioides, ativação dos receptores NMDA, entre outros mecanismos2.
Um estudo evidenciou que o uso concomitante de baixas doses de antagonistas opioides e antagonistas dos receptores NMDA podem prevenir ou reduzir o desenvolvimento da HIO, e que a cetamina em baixa dose pode modular a HIO7,22,23.
Uma revisão comprova que os mecanismos implicados no desenvolvimento da HIO incluem o sistema glutamatérgico e receptores NMDA, ativação de ciclo-oxigenase espinhal, aminoácidos excitatórios, dinorfinas, citocinas e quimocinas, prostaglandinas e facilitação descendente. Nesse sentido, especula-se que a modulação da hiperalgesia pode ser feita com antagonistas de receptores NMDA, agonistas alfa-2 adrenérgicos, inibidores seletivos da recaptação de serotonina, inibidores de cicloxigenases e análogos do GABA24.
Em acordo com os presentes resultados, um estudo utilizando fentanil em ratos Sprague-Dawuley provocou a HIO e demonstrou efeito atenuante pelos fármacos duloxetina e pregabalina12.
No presente estudo, na 2ª hora após o procedimento cirúrgico, não se observou diferenças entre os grupos controle, que receberam SF por via IP associado à SF por gavagem em comparação com o grupo que recebeu fentanil por via IP associado à SF por gavagem. Entretanto, quando se comparou estes com os animais que receberam duloxetina, fluoxetina ou pregabalina, foi encontrada menor hiperalgesia, demonstrando possível envolvimento dos receptores de serotonina, noradrenalina e redução de neurotransmissores pró-nociceptivos dependentes de cálcio, na liberação na medula espinhal, em concordância com outros estudos25-27.
Quando os animais foram avaliados no 1º e 3º dia após o procedimento cirúrgico, o grupo que recebeu fentanil por via IP apresentou maior efeito hiperálgico e com diferença estatisticamente significante em relação ao grupo controle, evidenciando a HIO. Entretanto, o grupo que recebeu fentanil por via IP, além de apresentar diferença significante em relação ao controle com SF, exibiu diferença em relação ao grupo duloxetina, fluoxetina e pregabalina, que se mostraram diferentes do grupo controle que recebeu SF, sugerindo eficácia em reduzir a HIO.
No 5º dia após o procedimento cirúrgico, o grupo que recebeu fentanil manteve maior resposta álgica quando comparado aos outros grupos. Porém, embora o G1, que recebeu SF, tenha mostrado menor efeito hiperálgico em comparação ao grupo fentanil, não apresentou diferença em comparação aos grupos que receberam duloxetina, fluoxetina ou pregabalina, evidenciando ainda a presença de HIO.
No 7º dia não se observou diferenças entre os grupos, ou seja, o possível efeito residual da hiperalgesia induzida por dose única de fentanil não foi evidenciado.
Estudos utilizando duloxetina e fluoxetina no combate à dor em roedores apoiam os resultados deste estudo, que a 5-HT e a NE desempenham importante papel na atenuação dos mecanismos de dor persistente, presumivelmente por vias modulatórias descendentes da dor e consequentemente na HIO28-30.
O uso de pregabalina sobre o comportamento nociceptivo e a SC em modelo de dor trigeminal em ratos, atenuando a alodinia mecânica e a SC sobre o modelo de dor trigeminal referenda seu uso clínico no tratamento da dor e, embora sejam escassos estudos com a HIO, há evidencia que poder ser útil no controle desse tipo de dor31.
O presente estudo apresentou evidências de que o fentanil produz HIO e de provável efeito atenuante mediado pela serotonina e noradrenalina e pelo bloqueio de canais de cálcio, pelos fármacos duloxetina, fluoxetina e pregabalina.