versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.8 no.2 São Paulo abr./jun. 2010
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082010md1310
Já são conhecidos os efeitos benéficos das fibras alimentares sobre a saúde humana. A ingestão regular de fibras alimentares apresenta importante papel no funcionamento intestinal aumentando o bolo fecal e reduzindo o tempo de trânsito ao longo do intestino(1); colabora com redução plasmática de LDL-colesterol pelo aumento da excreção fecal de colesterol e ácidos biliares(2); diminui a glicemia pós-prandial de indivíduos saudáveis, diabéticos e com resistência à insulina(3); reduz riscos para desenvolvimento de alguns tipos de câncer(4); promove saciedade(3); colabora com o emagrecimento(5); e exerce efeito imunomodulador(6).
O consumo de fibras parece exercer, ainda, benefícios sobre processos inflamatórios(7–9) que têm sido associados a condições patológicas crônicas, como síndrome metabólica (SM), obesidade, diabetes mellitus tipo 2 (DM2), câncer e doenças cardiovasculares (DCV)(10–11). Estas afecções estão fortemente relacionadas ao estilo de vida ocidental e associadas a hábitos alimentares, como o aumento no consumo de alimentos refinados e quantidades maiores de gordura(12), assim como a redução no consumo de fibras(13).
Sugere-se uma relação entre o consumo de fibras e o seu papel nas doenças crônicas nos quais processos inflamatórios têm sido observados(14–15).
Dessa maneira, é apresentada nesta revisão a relação entre fibras alimentares e marcadores inflamatórios (MI), e seus possíveis mecanismos de ação.
Os sistemas metabólico e imune estão intimamente ligados e agem de modo interdependente. Muitos hormônios, citocinas, proteínas sinalizadoras, fatores de transcrição e lipídios bioativos podem acionar ambos os sistemas de modo que o tecido adiposo passe a ter uma função secretória de substâncias pró-inflamatórias que antes eram associadas apenas ao sistema imune, como as interleucinas-6 (IL-6), fator de necrose tumoral-α (TNF-α)(10), proteína C-reativa (PCR) e plasma plasminogen activator inibitor (PAI1)(16).
Os processos inflamatórios estão fortemente associados ao excesso de tecido adiposo, sendo essa relação explicada pela interação entre sistemas. A atividade pró-inflamatória do tecido adiposo oferece risco potencial para desenvolvimento de outras doenças crônicas e suas complicações(11,17).
A síndrome metabólica (SM) é definida quando há a presença de uma gama de anormalidades metabólicas ocorrendo de forma simultânea em um indivíduo que apresente pelo menos três das seguintes condições: resistência à insulina, obesidade abdominal, hipertensão ou dislipidemia(13,18-19). O NCEP-ATPIII (National Cholesterol Education Program – Adult Treatment Panel III) inclui ainda, como componentes da SM, o estado pró-inflamatório (caracterizado pelo aumento de proteína C-reativa) e estado pró-trombótico (devido ao aumento de PAI1 e fibrinogênio)(19).
Globalmente, o número de portadores da SM aumenta e esse crescimento progressivo tem relação com o aumento na incidência de obesidade e DM2 na população(18).
Estudos têm mostrado de maneira interessante a relação de fatores característicos de processos inflamatórios com a SM, observando-se que quanto mais fatores da síndrome estão presentes, maiores as concentrações de citocinas inflamatórias. Marcadores inflamatórios também têm sido associados ao aumento do risco de mortalidade, além de DCV na SM(20).
A obesidade e suas consequências são problemas mundiais e crescentes que apresentam prejuízos devastadores para a saúde do homem(12).
É forte a relação entre o aumento de peso corporal, tratando-se de sobrepeso e obesidade, e de tecido adiposo com a ativação de mecanismos inflamatórios(11).
O tecido adiposo de obesos, infiltrado de macrófagos, sintetiza tanto proteínas associadas ao metabolismo de lípides, como proteínas secretórias ligadas ao sistema imunológico (Figura 1), onde uma célula passa a exercer as funções de síntese proteica da outra, ou seja, adipócitos passam a produzir proteínas pró-inflamatórias (como TNF-α e IL-6), enquanto macrófagos passam a produzir proteínas do metabolismo de lipídios, como as FABPs (Fat Acid Binding Protein) e PPARy (Peroxisome Proliferator-activated Receptor gamma)(11).
FABPs: Fat Acid Binding Protein; PPARy: Peroxisome Proliferator-activated Receptor gamma. Fonte: Wellen e Hotamisligil(11).
Figura 1 Colocalização de adipócitos e macrófagos no tecido adiposo: macrófagos passam a sintetizar proteínas características de adipócitos e este, por sua vez, passa a sintetizar citocinas inflamatórias estabelecendo o processo inflamatório.
Um prejuízo frequentemente presente nessa integração entre proteínas do metabolismo de lipídios e proteínas do sistema imunológico é a alteração na atividade da insulina, passando a representar risco adicional ao surgimento de DM2(16–17).
A obesidade e os fatores característicos da SM estão estritamente associados ao aumento do risco para desenvolvimento de DM2(18).
No processo inflamatório, a atividade insulínica é prejudicada por citocinas inflamatórias que parecem exercer papel fundamental nessa disfunção(11), e esta condição parece ser a chave para ativar mecanismos ligados ao desenvolvimento de DM2 em indivíduos com predisposição hereditária, iniciando, primeiramente, a resistência à insulina e, então, os prejuízos na sua secreção. Real e Pickup sugerem que o sistema imune inato, na etiologia do DM2, é ativado como uma resposta de sobrevivência que capacita o organismo para se recuperar de injúrias e, quando esta resposta não é proporcional à injúria, a doença de manifesta(21).
Hotamisligil e Wellen propõem que o estresse do retículo endoplasmático gerado a partir de citocinas inflamatórias que prejudicam a ação da insulina seja uma das principais causas do desenvolvimento do DM2(11).
Mesmo sem conhecer de forma detalhada o desdobramento do DM2 e a sua relação com a inflamação, é possível inferir que a explicação da etiologia do DM2 está direta ou indiretamente associada a um processo inflamatório.
Dentre as doenças crônicas, as doenças cardiovasculares (DCV) são a maior causa de mortalidade mundial. Doenças relacionadas ao coração estão associadas a processos inflamatórios devido, principalmente, ao efeito de lipoproteínas de baixa densidade, principalmente das LDL-colesterol, de induzirem a inflamação do endotélio de artérias resultando em complicações ateroscleróticas(11).
MI são largamente utilizados para predizer os riscos para as doenças cardíacas. A PCR é um conhecido marcador inflamatório e preditor de incidência para DCV(22). A IL-6 mostra uma associação forte com DCV, sendo que seus níveis aumentados podem predizer um futuro infarto do miocárdio em indivíduos saudáveis(23), e a contagem de leucócitos também é bastante utilizada, sendo que seus níveis aumentados estão associados às DCV(24).
A obesidade é um dos maiores contribuintes para as DCV, predispondo a todas as anormalidades de vasculopatias coronárias: hipercolesterolemia, aterosclerose, disfunção plaquetária, nas atividades de coagulação, resistência à insulina, SM e DM2, que estão relacionados a processos inflamatórios(25). Dessa forma, verifica-se estreita ligação entre fatores da SM, obesidade, DM2 e DCV, inclusive a relação destas patologias com os processos inflamatórios, mostrando papel determinante na etiologia destas doenças.
O Institute of Medicine (IOM) propôs, em 2002, como parte da revisão e desenvolvimento das DRI (Dietary Reference Intake) do mesmo ano, a seguinte redefinição para fibras alimentares: fibra dietética é a parte comestível não-digerível de carboidrato e lignina que são intrínsecas e estão intactas na planta. Alimentos com fibras dietéticas incluem vegetais, frutas, legumes e grãos integrais. Fibra funcional consiste na fibra que mostra ter benefícios similares das fibras dietéticas, porém são isoladas ou extraídas de fontes naturais ou sintéticas. Na classe de fibras funcionais estão: pectina extraída de frutas cítricas, celulose extraída de árvores e outros tipos de fibras isoladas. Esta definição de fibras funcionais pretende excluir produtos similares às fibras que não trazem benefícios à saúde (definidos por apresentarem poder laxativo, atenuação na colesterolemia e glicemia). Fibra total é a soma das fibras dietéticas e fibras funcionais no alimento(26–27).
Estudos têm observado uma relação benéfica entre o consumo de fibras alimentares e processos inflamatórios.
Ma et al. avaliaram a relação entre ingestão de fibras e MI em mulheres pós-menopausadas do Women's Health Initiative Observational Study. A parcela da população de mulheres com maior consumo de fibras (24.7 g/dia), em comparação àquelas com menor consumo (7.7 g/dia), apresentou redução plasmática de IL-6 e TNF-α-R2 (receptor 2 de TNF-α). Não houve relação entre fibras e PCR(18).
Ajani et al. também observaram menor concentração da PCR em indivíduos do National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES) (dados coletados entre 1999 e 2002) que consumiam maior quantidade de fibras diariamente (32 g) em comparação aos indivíduos com menor consumo de fibras (5,1 g)(9).
Da mesma forma, ao avaliar o consumo de fibras de 5.496 indivíduos de diferentes grupos étnicos, observou-se que aqueles que mais consumiam fibras (1,39 g/porção de alimento) (em comparação ao menor consumo de fibras de 0,02 g/porção) eram favorecidos com menores valores para PCR, embora para IL-6 não tenha sido observada esta relação(13). Os mecanismos pelos quais o consumo de fibras reduziria as concentrações de PCR ainda são incertos, mas muitas possibilidades têm sido consideradas, como a ação da fibra de retardar a absorção de glicose e a modulação de citoquinas, atenuando a hiperglicemia, agindo sobre o estresse oxidativo, favorecendo resposta da flora intestinal e produzindo citocinas anti-inflamatórias(28).
Qi et al. analisaram o consumo de fibras e de marcadores de inflamação de mulheres diabéticas do Nurse's Health Study e concluíram que aquelas com maior consumo de fibras apresentavam menores valores para MI (PCR e TNF-α-R2)(29). Alimentos ricos em fibras, mais especificamente os grãos integrais, são alimentos que possuem muitos componentes bioativos como minerais, vitaminas, fitoestrógeno, fitoesterol, compostos fenólicos e antioxidantes, podendo ser os responsáveis pelo seu efeito protetor. A atividade sinérgica desses componentes presentes na parede celular de grãos integrais confere tal efeito reduzindo os riscos para o diabetes e doenças cardíacas(30).
Jensen et al. não encontraram relação estatisticamente significativa entre o consumo de 43,8g/dia de fibras (comparado a 8.2 g/dia) e MI, exceto pela menor homocisteinemia entre os 938 profissionais da área da saúde analisados no estudo. Os autores fazem várias observações para esses resultados, sinalizando que muitos fatores podem ter impactado no resultado do estudo, como homogeneidade do grupo, melhores condições dos avaliados para adquirir alimentos ricos em fibras, o fato de serem profissionais da área da saúde, erros estatísticos nas medidas de randomização, apenas uma medida de biomarcadores analisada sendo que os biomarcadores de inflamação são suscetíveis à variação em curto prazo(30).
Jacobs Jr et al., ao analisarem dados de 27.312 mulheres do Iowa Women's Heatlh Study, observaram associação inversa entre doenças inflamatórias (doenças não-cardiovasculares e não-câncer), infecção e estresse oxidativo versus consumo de 19 porções de fibras por dia (comparado a 3,5 porções/dia)(31). O estresse oxidativo tem sido associado ao desenvolvimento prematuro de aterosclerose(15) e, mais recentemente, às flutuações pós-prandiais de glicose, culminando em hiperglicemia crônica de pacientes diabéticos(32). Os antioxidantes presentes nos grãos integrais podem contribuir com os processos oxidativos dessas condições.
De modo geral, os levantamentos populacionais descritos acima apontam uma associação epidemiológica entre o consumo muito alto de fibras (obtido por questionários alimentares) e um melhor perfil de MI. Resta saber se por trás dessa associação existe uma relação causal das fibras, o que só pode ser obtido por estudos clínicos e experimentais.
Salman et al. incubaram células mononucleares do sangue de doadores de um banco de sangue, com e sem citrus pectin, uma fibra solúvel de frutas cítricas, para avaliar o impacto desta fibra sobre MI (TNF-α, IL1-B, IL-6) e marcadores anti-inflamatórios (IL1-a e IL-10) estimulados por um lipopolissacarídeo. Foi observada inibição de processo inflamatório, pois houve estímulo na produção de citocinas de ação anti-inflamatória e inibição de citocina com atividade pró-inflamatória, a IL1-B(7). Embora o estudo não tenha evidenciado alteração para TNF-α e IL-6, observa-se uma outra perspectiva de ação da fibra, que é a de estimular a produção de citocinas anti-inflamatórias.
King et al. avaliaram o efeito de dieta rica em fibra (30 g/dia, dieta DASH) em comparação à suplementação com psyllium (30 g/dia) sobre as concentrações de PCR de indivíduos eutróficos. Houve redução de PCR em ambas as intervenções, comparando-se ao período basal, sendo que para a dieta DASH a redução foi de 14% e para a suplementação com psyllium, 18%(28). Outro estudo com suplementação de psyllium (7 ou 14 g/dia) avaliou MI (PCR, IL-6, células brancas e fibrinogênio) de indivíduos com sobrepeso e não observou alterações para nenhum dos marcadores(14). Entre os dois estudos, observa-se a diferença na quantidade suplementada do mesmo tipo de fibra. Apesar de existirem vários outros fatores que possam ter influenciado este resultado, podemos inferir que há uma quantidade mínima para a efetividade da suplementação de psyllium sobre MI.
A prevenção e a melhora de processos inflamatórios vinculados a doenças crônicas ocorrem como consequência de fatores associados como o controle de peso, a prática de atividade física(33), a dieta equilibrada em macronutrientes(34), a redução no consumo de gordura saturada e trans(35), a ingestão adequada de frutas e vegetais(36), a redução no consumo de alimentos refinados e industrializados e o aumento de alimentos ricos em fibras(37).
Considerando a forte relação entre inflamação e doenças crônicas, pode-se inferir que, por exemplo, a melhora do perfil lipídico inibirá o desenvolvimento de DCV, ou o emagrecimento promoverá aumento da sensibilidade à insulina e colaborará com a pressão arterial e também com o perfil lipídico(12). Da mesma forma, os processos inflamatórios estão vinculados a doenças crônicas e devem diminuir em resposta a toda intervenção globalmente favorável. O mesmo raciocínio pode ser aplicado a intervenções alimentares que favoreçam melhoras metabólicas.
Poucos estudos identificam a relação causal entre o consumo ou a suplementação de fibras com a redução de MI. Até o momento, o que se tem na literatura é apenas uma relação epidemiológica que aponta para uma forte possibilidade de atuação de fibras sobre o perfil metabólico de indivíduos. Certamente, muitos estudos estão sendo conduzidos com o objetivo de esclarecer essa relação, dada a sua importância e a novidade do assunto.
Ainda que se evidencie uma relação causal entre fibras e MI, ressalta-se aqui que é preciso considerar a tolerância individual na prática clínica quanto aos efeitos gastrintestinais para maiores quantidades de fibras, e que quantidades excessivas também podem interferir na absorção de outros nutrientes(38). Neste contexto, é importante considerar as recomendações diárias dos nutrientes propostas pelas entidades de pesquisas para assegurar equilíbrio nesse consumo:
Carboidratos: de 45 a 65% do valor calórico total (VCT) |
Proteínas: 15% de Proteínas |
Gorduras totais: de 20 a 35% do VCT |
Gorduras poliinsaturadas: ω-de 5 a 10% e ω de 0.6 a 1.2% do VCT |
Fibras totais: 25 g/dia para mulheres e 38 g/dia para homens entre 19-50 anos |
Fonte: Dietary Recommended Intakes, Institute of Medicine(39)
De modo geral, na literatura, não se defende que a suplementação traga vantagens a uma alimentação naturalmente rica em fibras, pois o consumo adequado de frutas, verduras, legumes e alimentos ricos em grãos integrais se resume em um consumo equilibrado e saudável de fibras alimentares, o que proporciona fornecimento ideal deste nutriente para manter as atividades metabólicas em sua adequada condição de funcionamento.