versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.36 no.4 São Paulo out./dez. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20140071
As doenças cardiovasculares (DCV) representam a causa mais comum de mortalidade e morbidade dos pacientes em hemodiálise (HD). O aumento no risco de DCV não está apenas relacionado aos fatores de risco tradicionais, mas também aos não tradicionais e àqueles específicos da uremia, tais como hipervolemia, anemia, distúrbios do metabolismo de cálcio e fósforo, inflamação e estresse oxidativo.1
Acredita-se que o estresse oxidativo em pacientes em HD seja o resultado do aumento da atividade próoxidante (idade avançada, diabetes, inflamação crônica, síndrome urêmica, bioincompatibilidade das membranas de diálise) e da redução da atividade dos sistemas antioxidantes (vitamina C, níveis intracelulares de vitamina E, sistema da glutationa e compostos fenólicos).2,3
Os compostos fenólicos atuam como antioxidantes por conta de sua capacidade de doar hidrogênio ou elétrons e evitar a oxidação de vários compostos, em particular os ácidos graxos e óleos.4 Frutas, especialmente as de cor vermelha ou azul (tais como uvas, ameixas, cerejas), são as mais importantes fontes de polifenóis.5
Com efeito, o aumento da ingestão de antioxidantes presentes em alimentos é uma medida alternativa promissora para reduzir o dano oxidativo celular e a resposta ao estresse.6 Apenas quatro estudos avaliaram os efeitos de sucos de frutas ricas em polifenóis sobre a capacidade antioxidante, estresse oxidativo e perfil lipídico de pacientes em HD.2,6-8 No entanto, estudos sobre a suplementação dietética com pó de uva como fonte de polifenóis nunca foram realizados em pacientes em HD, fato que nos parece interessante, já que a restrição de líquidos é um elemento importante no controle da dieta desses pacientes. Assim, o objetivo do presente trabalho foi avaliar os efeitos da suplementação com pó de uva sobre os níveis de proteína C reativa e glutationa peroxidase em pacientes em HD.
O presente ensaio clínico randomizado, duplocego, controlado por placebo avaliou pacientes em HD clinicamente estáveis tratados no Centro Integrado de Nefrologia no Rio de Janeiro. Os critérios de inclusão foram: idade > 18 anos e diálise de manutenção em curso há pelo menos seis meses. Pacientes com diabetes mellitus, doenças inflamatórias, câncer, AIDS, doenças autoimunes, níveis de potássio acima de 5,5 mg/dL, fazendo uso de catéter de acesso para HD ou suplementos vitamínicos antioxidantes foram excluídos. Dos 35 pacientes em HD que satisfizeram os critérios de elegibilidade, um se recusou a participar. Assim, 34 pacientes foram randomizados. Após a randomização, um paciente de cada grupo (experimental e placebo) foi perdido durante o seguimento (por transferência para outra clínica ou mudança de modalidade de tratamento) e 32 concluíram o estudo (16 em cada grupo).
A duração da diálise era de 3,5-4,0 h/sessão, três vezes por semana, com fluxo de sangue superior a 350 ml/min e fluxo de dialisato de 500 ml/min. As principais etiologias da doença renal crônica (DRC) eram nefroesclerose hipertensiva (13), glomerulonefrite crônica (6), doença renal policística (3) e outras doenças ou causas desconhecidas (10). Como medicamentos anti-hipertensivos, dois pacientes eram tratados com inibidores da ECA, quatro tomavam β-bloqueadores e dois tinham prescrição para bloqueadores do canal de cálcio. Quatro pacientes receberam uma combinação de β-bloqueadores e inibidores da ECA. Além disso, os pacientes receberam tratamento de combate à anemia que incluía eritropoietina e suplementação com ferro. Nenhum paciente recebeu medicamentos para baixar o colesterol durante o período do estudo.
Medidas de peso e estatura foram realizadas imediatamente após a sessão de HD por um pesquisador treinado, utilizando técnicas padronizadas. O índice de massa corporal (IMC) foi calculado como peso corporal dividido pelo quadrado da altura. O protocolo do estudo foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina do Hospital Universitário Antônio Pedro (nº 264/10). Os pacientes tinham conhecimento do estudo e assinaram termo de consentimento após a leitura do documento em questão.
O conteúdo fenólico total foi determinado pelo método descrito por Singleton & Rossi9 em seis diferentes marcas de pós de uva disponível no mercado. A determinação foi realizada pela interpolação da absorvância das amostras contra uma curva de calibração construída a partir de padrões de ácido gálico (mg/ml) e expressa em mg de ácido gálico equivalente por grama de extrato. O pó de uva com maior quantidade de polifenóis foi adquirido da Linho Lev Company Inc® (Santo Ângelo, RS). A capacidade antioxidante foi avaliada através do método de degradação do radical estável DPPH.10
O suplemento especificado de pó de uva utilizado no estudo (12 g) continha 18,8 kcal (1,2 g de proteínas, 2,6 g de carboidratos e 0,6 g de lipídios), 1,8 mg de sódio, 234 mg de potássio e 500 mg de polifenóis totais (usando ácido gálico como calibrador). Sódio e potássio correspondiam a 0,12% e 7,8% dos valores recomendados para os pacientes, respectivamente.
O pó de uva foi pré-pesado e misturado em geleia de uva, de forma que a geleia com e sem adição de pó de uva tivessem diferença desprezível em termos de suas características sensoriais. As geleias foram embaladas em recipientes plásticos opacos com quantidade suficiente para uma semana de consumo. A cada semana um novo pacote de geleia era oferecido aos pacientes. Assim, foi possível realizar uma avaliação mais precisa dos níveis de adesão e dos eventos adversos.
Os pacientes foram instruídos a consumir uma colher de sopa de geleia de uva por dia durante cinco semanas no lanche da tarde (no dia da diálise, portanto, após o procedimento de HD). O grupo placebo ingeria apenas geleia de uva, enquanto o grupo experimental consumia pó de uva (na quantidade de 12 g - 500 mg de polifenóis totais) somado à geleia.
As amostras de sangue foram coletadas pela manhã, após jejum durante o período noturno. O sangue foi colhido antes da sessão de diálise, a partir da fístula arteriovenosa, em uma seringa contendo EDTA (1,0 mg/ml). O plasma foi separado (15 min, 3000 x g, 4 ºC) e armazenado a -80 ºC até o momento da análise. Não houve diferença no ganho de peso interdialítico no dia da coleta de sangue correspondente ao início e ao final da suplementação. Assim, as diferenças nos níveis plasmáticos antes e após a suplementação não devem ser atribuídas às flutuações da retenção de líquidos.
A atividade da GSH-Px foi determinada por ELISA (Cayman Chemical, Ann Arbor, MI, EUA). O ensaio de Cayman da GSH-Px mede atividade enzimática indiretamente por uma reação juntamente com a glutationa redutase (GR). A glutationa oxidada, produzida pela redução do hidroperóxido por GSH-Px, é reciclado para o seu estado reduzido pela GR e NADPH. A oxidação de NADPH a NADP+ é acompanhada por uma diminuição da absorvância a 340 nm. Nas condições em que a GSH-Px é limitante da velocidade, a velocidade de diminuição da absorvância a 340 nm será diretamente proporcional à atividade da GSH-Px na amostra. Os coeficientes de variação intra e inter-ensaios foram de 5,7% e 7,2%, respectivamente.
A PCR de alta sensibilidade plasmática foi determinada pelo método ELISA através de kits da R&D Systems® (Minneapolis, MN, EUA). Os coeficientes de variação intra e inter-ensaios foram de < 8,5 e 7%, respectivamente. As medidas dos níveis de albumina sérica e potássio foram feitas de acordo com exigências de rotina para pacientes em HD (por verde de bromocresol e método de eletrodo íon-seletivo, respectivamente). O Kt/Vsp foi utilizado para representar a dose de diálise.
Os dados foram apresentados como média ± desvio padrão ou mediana (intervalo interquartil), quando adequado. A análise estatística das mudanças em relação aos valores basais foi realizada através do teste de Wilcoxon ou do teste t para amostras pareadas. As diferenças entre os grupos placebo e experimental foram analisadas pelo teste de Mann-Whitney ou pelo teste t de Student. Significância estatística foi atribuída para diferenças com valores de p < 0,05. Todas as análises foram realizadas utilizando o software estatístico S-PLUS 8.0 (Chicago, IL, EUA).
As características basais dos grupos placebo e experimental estão listadas na Tabela 1. Sexo, idade, tempo em diálise, dose de diálise, IMC e níveis de albumina foram semelhantes em ambos os grupos. O consumo de geleia não foi diferente entre os grupos experimental e placebo [3,5 (1,75) x 4,5 (2) recipientes, respectivamente, p = 0,11].
Tabela 1 Características basais dos pacientes em hemodiálise
Grupos | ||
---|---|---|
Placebo | Experimental | |
Homens/Mulheres | 9/7 | 9/7 |
Idade (anos) | 52,7 ± 13,7 | 53,0 ± 9,8 |
Tempo em diálise (meses) | 110,4 ± 93,1 | 111,6 ± 58,2 |
Kt/Vsp | 1,22 ± 0,3 | 1,25 ± 0,2 |
IMC (kg/m2) | 22,6 ± 3,6 | 22,0 ± 2,1 |
Albumina (mg/L) | 3,8 ± 0,3 | 3,9 ± 0,2 |
IMC: Índice de massa corporal; Kt/Vsp, representa a dose de diálise.
No grupo experimental, o consumo de pó de uva foi associado a elevação da atividade da GSHP-x. O grupo placebo apresentou baixa atividade da GSH-Px antes da suplementação em relação ao grupo experimental e, embora a atividade da GSH-Px também tivesse aumentado após a intervenção, os valores antes e após o consumo de geleia de uva não foram estatisticamente diferentes (Tabela 2). Os valores individuais para a atividade da GSH-Px nos grupos experimental e placebo antes e após a intervenção são apresentados nas Figuras 1 e 2, respectivamente. Em relação a inflamação, os níveis de PCR foram mantidos após o consumo de pó de uva. Contudo, os níveis de PCR se elevaram significativamente no fim do período do estudo no grupo placebo (Tabela 2).
Tabela 2 Alterações no estresse oxidativo e nos biomarcadores inflamatórios segundo a intervenção
Grupo Experimental | Grupo Placebo | |||
---|---|---|---|---|
Antes | Depois | Antes | Depois | |
Atividade da GSH - Px (nmol/min/ml) | 16,5 (41,0)a | 42,0 (43,3)b | 1,0 (3,46) | 17,8 (50,3) |
Proteína C reativa (mg/dL) | 2,6 (0,3) | 2,7 (0,3) | 2,6 (0,3) | 2,8 (0,2)c |
ap < 0,05 entre grupos experimental e placebo antes da suplementação;
bp < 0,05 grupo experimental antes e depois da suplementação;
cp < 0,05 grupo placebo antes e depois da suplementação.
Figura 1 Atividade da glutationa peroxidase (GSH-Px) para cada paciente no grupo experimental antes e depois da intervenção.
Figura 2 Atividade da glutationa peroxidase (GSH-Px) para cada paciente no grupo placebo antes e depois da intervenção.
Os níveis de potássio foram mantidos antes e depois da intervenção nos dois grupos (4,9 ± 0,5 x 4,8 ± 0,6 mg/dL, respectivamente, no grupo experimental; 4,7 ± 0,6 x 4,8 ± 0,7 mg/dL, respectivamente, no grupo placebo). Nenhum evento adverso foi associado à suplementação com pó de uva (constipação ou diarreia, por exemplo). Não houve correlação entre as variáveis.
O presente estudo foi o primeiro a oferecer suplementação com pó de uva como fonte de compostos fenólicos para pacientes em HD. Considerando-se uma dosagem de polifenóis totais de 500 mg, nossas observações fornecem evidências de que a oferta de antioxidantes baseados em alimentos pode ser uma terapêutica adequada para combater o estresse oxidativo e evitar a progressão da inflamação.
O estresse oxidativo, mais elevado em pacientes em HD, desempenha papel na mediação do processo inflamatório.11 Para combater os efeitos destrutivos dos oxidantes, há enzimas antioxidantes endógenas como superóxido dismutase (SOD), catalase (CAT) e GSH-Px, que ajudam a desintoxicar o estresse oxidativo.12-14 Os níveis plasmáticos de GSH-Px e de suas formas redox são considerados indicadores do estado oxidativo do organismo como um todo e de doença cardiovascular. A restauração dos níveis de GSH através da substituição da N-acetilcisteína, precursor da glutationa, ou da superexpressão da GSH-Px previne disfunção cardíaca. Finalmente, foi descrita uma relação negativa entre a função do endotélio vascular e o índice de GSH redox em pacientes com DRC, destacando o importante papel deste marcador na regulação da disfunção endotelial dos pacientes.12
A literatura indica que os polifenóis elevam a capacidade antioxidante sérica devido à indução do fator nuclear eritroide 2 relacionado ao fator 2 (Nrf2),15 um fator de transcrição responsável tanto pela expressão constitutiva como induzível de elementos de resposta antioxidante regulados por genes.16 Com efeito, observamos em nosso estudo um aumento significativo na atividade da GSH-px em pacientes que receberam pó de uva como fonte de polifenóis. Curiosamente, a atividade da GSH-Px também se elevou no grupo placebo (embora não de forma estatisticamente significativa), provavelmente devido aos polifenóis presentes na geleia de uva.
Quanto aos marcadores inflamatórios, os níveis de PCR aumentaram no grupo placebo, mas ficaram estáveis no grupo experimental. Apesar do aumento de apenas 0,2 mg/L no grupo placebo não ter sido clinicamente relevante, este resultado mostra que a suplementação com pó de uva pode evitar a progressão da inflamação. Com efeito, Overman et al.17 observaram que o extrato de pó de uva atenua a inflamação mediada por lipopolissacarídeos (LPS) em macrófagos, possivelmente reduzindo a ativação de citocinas inflamatórias, quimiocinas e prostaglandinas.
Estudos anteriores demonstraram os efeitos benéficos dos polifenóis para pacientes em HD. Após oferecerem suplementação dietética com 100 ml de suco de uva vermelha concentrado para 26 pacientes em HD por 14 dias, Castilla et al.7 observaram uma melhora no perfil das lipoproteínas (redução na Apo B-100 e aumento da Apo AI), uma redução nas concentrações plasmáticas de proteína quimiotática de monócitos-1 (MCP-1) e nos níveis de LDL oxidada, além de aumento da capacidade antioxidante total. Além disso, comparando a suplementação dietética com suco de uva e vitamina E oferecida para pacientes em HD por 14 dias, Castilla et al.2 observaram que apenas o suco foi eficaz em reduzir as concentrações plasmáticas de colesterol total e os níveis de Apo-B e aumentar o HDL-colesterol, enquanto ambos (suco e vitamina E) reduziram as concentrações plasmáticas de LDL oxidada e a atividade da NADPH oxidase em neutrófilos. Estes efeitos foram aprimorados quando os suplementos foram usados em combinação.
Além disso, Spormann et al.6 observaram uma diminuição significativa do dano oxidativo ao DNA, oxidação proteica, peroxidação lipídica e atividade de ligação do fator nuclear kB - um fator de transcrição responsável pela expressão de genes inflamatórios - em pacientes que consumiam 200 ml por dia de suco de frutas ricas em antocianina/polifenóis. Os autores relataram ainda um aumento nos níveis e status da glutationa, de forma semelhante ao nosso estudo. Assim, a ingestão regular de polifenóis a partir de sucos e também do pó de uva pode reduzir o estresse oxidativo e, consequentemente, o risco de doença cardiovascular na população em HD.
A segurança da suplementação com pó de uva não foi avaliada em pacientes com acometimento renal. Embora eventos adversos para a saúde não possam ser excluídos após o consumo de uma dose elevada de compostos individuais formulados como suplementos dietéticos,18 é improvável que tais eventos se manifestem por conta do consumo de alimentos ricos em polifenóis.6 Com efeito, nenhum evento adverso foi relatado em um estudo anterior realizado por Spormann et al.6 em que porções de 200 ml de suco de fruta com 700 mg de polifenóis totais foram oferecidas a 21 pacientes em HD durante quatro semanas. No presente estudo, eventos adversos relacionados à suplementação com pó de uva também não foram observados.
Nosso estudo tem algumas limitações. No que diz respeito a medidas de inflamação, a medição de PCR apenas em dois momentos é problemática. Com a inclusão de mais pontos de aferição e outros marcadores de inflamação, teríamos uma imagem mais clara do perfil inflamatório dos pacientes em HD. Contudo, em função de problemas de logística, outros biomarcadores inflamatórios e de estresse oxidativo não puderam ser avaliados. Além disso, a análise do teor de compostos fenólicos na geleia de uva poderia explicar o aumento na atividade da GSH-Px também observado no grupo placebo.
Em resumo, o presente estudo demonstra, pela primeira vez, que o consumo de 500 mg/dia de polifenóis em pó de uva eleva eficazmente a atividade da GSH-Px e evita a progressão da inflamação em pacientes em HD. Comparada aos sucos de fruta, a utilização do pó de uva como fonte de polifenóis pode ser uma boa estratégia para pacientes em HD por conta das restrições de fluidos a que esses indivíduos estão sujeitos. Assim, a suplementação com pó de uva pode desempenhar um importante papel como agente antioxidante e antiinflamatório em pacientes em HD. Mais estudos devem ser organizados para aprofundar o conhecimento sobre as recomendações para a utilização dos compostos fenólicos em pacientes com DRC.