versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.108 no.3 São Paulo mar. 2017
https://doi.org/10.5935/abc.20170022
Os efeitos da exposição crônica ao exercício sobre biomarcadores vasculares foram pouco estudados.
Nosso estudo teve como objetivo comparar as quantidades de células progenitoras endoteliais (CPEs), e de micropartículas endoteliais (MPEs) e plequetárias (MPPs) de corredores profissionais com controles sadios.
Vinte e cinco corredores de meia maratona e 24 controles pareados quanto à idade e ao sexo foram incluídos no estudo. CPEs (CD34+/KDR+, CD133+/KDR+ e CD34+/CD133+), MPE (CD51+) e MPPs (CD42+/CD31+) foram quantificadas por citometria de fluxo. Todas as amostras de sangue foram obtidas após 12 horas de jejum, e os atletas foram incentivados a realizar seus exercícios de rotina no dia anterior à coleta.
Em comparação aos controles, CPEs CD34+/KDR+ (p=0,038) e CD133+/KDR+ (p=0,018) estavam aumentados, e CPEs CD34+/CD133+ não foram diferentes (p=0,51) nos atletas. As concentrações de MP não diferiram entre os grupos.
A exposição crônica ao exercício em corredores profissionais associou-se a uma maior porcentagem de CPEs. Considerando o número similar de MPs entre atletas e controles, o estudo sugere um efeito favorável do exercício sobre esses biomarcadores vasculares.
Palavras-chave: Células Progenitoras Endoteliais; Exercício; Biomarcadores; Atletas; Esportes; Corrida
The effects of chronic exposure to exercise training on vascular biomarkers have been poorly explored.
Our study aimed to compare the amounts of endothelial progenitor cells (EPCs), and endothelial (EMP) and platelet (PMP) microparticles between professional runners and healthy controls.
Twenty-five half-marathon runners and 24 age- and gender-matched healthy controls were included in the study. EPCs (CD34+/KDR+, CD133+/KDR+, and CD34+/CD133+), EMP (CD51+) and PMP (CD42+/CD31+) were quantified by flow-cytometry. All blood samples were obtained after 12 h of fasting and the athletes were encouraged to perform their routine exercises on the day before.
As compared with controls, the CD34+/KDR+ EPCs (p=0.038) and CD133+/KDR+ EPCs (p=0.018) were increased, whereas CD34+/CD133+ EPCs were not different (p=0.51) in athletes. In addition, there was no difference in MPs levels between the groups.
Chronic exposure to exercise in professional runners was associated with higher percentage of EPCs. Taking into account the similar number of MPs in athletes and controls, the study suggests a favorable effect of exercise on these vascular biomarkers.
Keywords: Endothelial Progenitor Cells; Biomarkers; Athletes; Sports; Running
Um número adequado de células progenitoras endoteliais (CPEs) circulantes parece estar relacionado com a manutenção da homeostase vascular.1,2 De fato, número reduzido de CPEs foi associado com fatores de risco e mortalidade cardiovasculares, e recorrência de eventos cardiovasculares em indivíduos com doença coronariana,3,4 apesar de algumas controvérsias em relação à forma de medida, caracterização, origem e destino das células.5,6
Micropartículas (MPs) são pequenas partículas (100-1000nm) anucleadas de fosfolipídio, que podem ser identificadas por sua origem - MPs endoteliais (MPEs), plaquetárias (MPPs), ou de várias outras células. Número aumentado de MPEs foi associado com dano e disfunção endotelial.7,8 As MPPs, inicialmente consideradas como marcadores de trombose, são atualmente consideradas importantes para a sinalização transcricional, pela interação com monócitos, e ativação de resposta inflamatória.9
A prática de exercícios regulares tem sido amplamente recomendada para a prevenção de doença cardiovascular. Porém, informações sobre os efeitos da exposição crônica e intensa sobre esses biomarcardores vasculares são ainda escassos.10,11 Assim, o objetivo deste estudo foi avaliar os efeitos do exercício crônico sobre CPEs e MPs em corredores profissionais.
Vinte e cinco corredores profissionais de meia maratona e 24 controles pareados por sexo e idade, sem diagnóstico de doenças cardiovasculares foram incluídos prospectivamente. Foram excluídos indivíduos com fatores de risco cardiovasculares tais como hipertensão, diabetes, obesidade, tabagismo, ou hipercolesterolemia. O comitê de ética local aprovou o estudo (#1808/08) e todos os participantes assinaram o termo de consentimento antes de serem incluídos no protocolo do estudo.
As amostras de sangue foram obtidas após 12 horas de jejum, e as análises foram realizadas no laboratório central de nossa universidade. Todos os atletas mantiveram seus programas de exercício diário até mesmo no dia anterior ao da coleta de amostra de sangue. Os programas de treinamento dos atletas eram muito semelhantes entre si, correspondendo a duas sessões de corrida de longa distância diariamente, 15 km de manhã e 10 km à tarde, e treinamentos intensivos (tiros de 100 a 1000 m de distância, repetidos várias vezes) duas vezes por semana, nas terças e quintas de manhã. Todas as amostras de sangue foram colhidas nas quintas-feiras, antes do exercício.
As medidas de CPEs e MPs foram realizadas conforme descrito anteriormente, utilizando amostras de sangue fresco colhido em tubos contendo EDTA.12-15 Para a determinação de CPEs, foram adquiridos um mínimo de 500 000 eventos for citometria de fluxo (FACSCalibur, BD Biosciences, USA). Foram usados anticorpos de camundongos anti-humanos marcados por fluorescência para CPEs (CD34 FITC, BD Biosciences, USA; CD133 APC, Miltenyi Biotec, USA; KDR PE, R&D Systems, USA), MPPs (CD42 FITC e CD31 PE, BD Biosciences, USA), e MPEs (CD51 FITC, BD Biosciences). Foram usados recipientes descartáveis para quantificar o número de micropartículas por microlitro de plasma pobre em plaquetas (PPP).
Os resultados são apresentados em média ± desvio padrão (DP) ou mediana e intervalo interquartil para distribuições normais e não normais respectivamente. As variáveis categóricas foram comparadas por teste de qui-quadrado de Pearson. Os testes de Kolmogorov-Smirnov e Shapiro-Wilk foram usados para avaliar a normalidade das variáveis contínuas. Comparações entre grupos das variáveis contínuas foram feitas pelo teste t não pareado ou pelo teste de Mann-Whitney quando apropriado. O teste de correlação de Spearman foi usado para avaliar correlações de CPEs e MPs com variáveis de ergoespirometria. Todas as análises foram realizadas pelo programa SPSS para Windows, versão 17.0 (SPSS, Inc., Chicago, IL), e um valor de p<0.05 foi considerado significativo.
Todos os atletas relataram haver feito exercício no dia anterior à coleta de sangue (22,08±2,67 km, média ± DP), e a média de tempo entre a última sessão de exercício e a coleta de sangue foi de 16,5 ± 2,8 horas. Não houve diferença entre homens e mulheres quanto à distância percorrida (124 ± 25 vs. 128 ± 29 km por semana, p=0,88, respectivamente, média ± DP, teste t não pareado) ou tempo de treinamento (14±4 vs. 14±7 horas por semana, média ± DP, p=0,53, respectivamente, teste t não pareado). Apesar de haverem recebido o mesmo treinamento, atletas do sexo masculino relataram um melhor tempo médio para a distância de 10 000 metros em comparação a atletas do sexo feminino (32,4 ± 2,1 vs. 37,6±1,6 min, p<0,0001, média ± DP, teste t não pareado). Em comparação aos controles, os atletas apresentaram menor peso, índice de massa corporal, circunferência abdominal, e porcentagem de gordura corporal, menor frequência cardíaca, maior porcentagem de gordura corporal e valores similares de pressão sistólica e diastólica. Apresentaram ainda menores níveis de colesterol total, LDL-c e triglicerídeos, e valores mais elevados de HDL-c.
Em comparação aos controles, os atletas apresentaram maior porcentagem de duas linhagens de CPEs (CD34+/KDR+ e CD133+/KDR+) e porcentagem similar de células CD34+/CD133+ (Figura 1).
Figura 1 Box-plots mostrando a porcentagem de células progenitoras endoteliais (CPEs) determinadas por citometria de fluxo. Porcentagens mais altas de CD34+/KDR+ EPCs (A) (p=0,038 vs. controles, teste de Mann-Whitney) e de CD133+/KDR+ EPCs (p=0,018 vs. controles, teste de Mann-Whitney) (B) foram encontradas em atletas. Não foi observada diferença entre os grupos para CD133+/CD34+ (p=0,51) (C).
A quantidade de MPP não foi diferente entre os grupos (Figura 2).
Figura 2 Box-plots representando a quantidade de micropartículas circulantes determinada por citometria de fluxo. O número de micropartículas plaquetárias (MPPs) de CD42+/CD31+ (A) e micropartículas endoteliais (MPEs) de CD51+ (B) foi similar entre os grupos (MPPs, p=0,695, teste de Mann-Whitney; MPEs, p=0,496, teste de Mann-Whitney). PPP: plasma pobre em plaquetas.
Não houve correlação entre a porcentagem de CPEs ou MPs com variáveis de ergospirometria, incluindo taxa absoluta e máxima de consumo de oxigênio (VO2 max) (dados não apresentados).
O presente estudo revelou que a exposição crônica ao treinamento em corredores profissionais esteve associada com porcentagens aumentadas de CPEs circulantes sem alterações na quantidade de MPEs ou MPPs. Esses achados sugerem que o exercício crônico não se associou com apoptose de células endoteliais ou trombose nesses indivíduos. De fato, parece haver exercido um papel protetor, considerando-se o aumento nas CPEs. Em nossos atletas, as amostras de sangue foram coletadas durante seus programas de treinamento de rotina, uma vez que nosso objetivo foi avaliar CPEs e MPs no contexto da vida real desses indivíduos.
Vários fatores de risco cardiovasculares, incluindo diabetes,3 hipertensão,16 tabagismo,17 hipercolesterolemia,18 e idade19 foram relacionados à disfunção de CPEs. Por outro lado, o exercício foi reconhecido como uma ferramenta promissora para aumentar os níveis de MPEs.20,21 Estudos experimentais e clínicos iniciais22,23 relataram CPEs aumentadas após a prática regular de exercício, apesar de os efeitos dos exercícios sobre CPEs parecerem ser influenciados pelo regime de treinamento, idade dos indivíduos, e presença de doença cardiovascular, tais como doença arterial coronariana e insuficiência cardíaca.20
MPEs circulantes foram associadas a vários estímulos, incluindo a transcrição de interleucinas, quimiocinas e quimioatraentes, e ao estresse oxidativo.8,24 Todas essas condições estão associadas a fatores de risco cardiovascular clássicos mas, mais recentemente, novos efeitos biológicos mediados pelas MPEs foram considerados, incluindo transporte de RNAm, micro-RNAs e outras moléculas ativas, de importância fisiológica para a angiogênese e reparo tecidual.25
A ativação celular e a apoptose estão associadas à liberação de MPs. Particularmente, a quantidade de MPPs foi considerada como um possível marcador de trombose, dada à quantidade de fosfolipídios dessas partículas e potencial papel pró-trombogênico pela produção de trombina.26 Além disso, uma tensão de cisalhamento elevada leva à agregação plaquetária e liberação de MPs derivadas de plaquetas.27 Além disso, MPPs podem carregar fator tissular, o qual também pode produzir trombina e ativação plaquetária. No entanto, também é verdade que as MPs podem transportar alguns inibidores da coagulação, tais como inibidor da via do fator tecidual (TFPI) que pode neutralizar, em parte, as propriedades pró-coagulantes dessas MPs.28 Mais recentemente, foram propostos aspectos interessantes que ligam MPPs à sinalização de resposta imune e inflamatória, considerando fatores transcricionais potenciais nas plaquetas, que incluem o fator nuclear kappa B (NF-kB) e receptor ativado por proliferadores de peroxissoma gama (PPAR-γ).29
Em nosso estudo, encontramos porcentagens aumentadas de CPEs nos atletas, e quantidades semelhantes de MPEs e MPPs em comparação a indivíduos controles, apesar do treinamento intensivo desses indivíduos. Esses resultados promissores são importantes, uma vez que nosso entendimento sobre o papel do exercício sobre CPEs e MPs deriva-se principalmente da exposição aguda ao exercício ou em indivíduos não atletas.10,11,30,31 O exercício intermitente e de alta intensidade induz a liberação de catecolaminas e reduz células T altamente diferenciadas, mas não aumenta a quantidade de CPEs quando comparado ao exercício contínuo.33 Em outro artigo, apesar do aumento na contagem global de leucócitos, não houve alteração no número de CPEs em corredores maratonistas de idade avançada, quando coletados no período precoce após a corrida.33
Além disso, entre outras variáveis bioquímicas, os níveis de proteína C reativa foram mais baixos nos atletas que nos controles, e os níveis de creatinofosfoquinase um pouco aumentados, apesar do treino de rotina no dia anterior à coleta de amostra, o que reforça as propriedades protetoras do exercício de alto desempenho.
Apesar de ser um estudo transversal, de caso controle, nossos resultados não podem ser considerados como geradores de hipótese, uma vez que não temos dados laboratoriais basais dos atletas. Além disso, esses resultados são aplicáveis aos maratonistas, e não podem ser extrapolados a outros esportes.
O exercício crônico foi associado com um aumento favorável nos níveis de CPEs, sem afetar os níveis de MPs circulantes em corredores profissionais, sugerindo um impacto positivo da exposição prolongada ao exercício crônico nesses biomarcadores vasculares.