versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.41 no.2 São Paulo abr./jun. 2019 Epub 04-Out-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0065
A função tardia do enxerto (FTE) é uma complicação frequente após transplantes renais com doadores falecidos que traz repercussões sobre o prognóstico do transplante.1 A mais utilizada entre as várias definições de FTE versa a respeito da necessidade de diálise na primeira semana após o transplante.2 Sua incidência global, segundo o Relatório Anual de 2012 do Organ Procurement and Transplantation Network/Scientific Registry of Transplant Recipients, encontra-se estável em cerca de 24% nos Estados Unidos da América.3 No entanto, taxas de incidência muito mais elevadas têm sido observadas em outros países, inclusive no Brasil, por motivos não plenamente estabelecidos e provavelmente relacionadas a condições não ideais de manutenção de doadores.4
As consequências da elevada incidência de FTE afetam custos, morbidade e talvez mortalidade.5 O retardo na recuperação da função do enxerto renal resulta em internações prolongadas e, portanto, maior custo para o sistema de saúde. Além disso, a FTE está associada a incidência mais alta de rejeição aguda, pior função e menor sobrevida do enxerto. Taxas mais elevadas de mortalidade também foram relatadas em pacientes com FTE.5
Embora as repercussões dessa condição tenham sido amplamente relatadas, as consequências da duração da FTE sobre a sobrevida e função do enxerto são menos certas. É concebível que a duração prolongada da FTE possa estar associada a desfechos menos favoráveis. O presente estudo foi realizado para avaliar os fatores de risco para FTE e as repercussões de sua duração para a sobrevida e função do enxerto renal no longo prazo.
O presente estudo observacional retrospectivo incluiu 517 receptores de transplante renal com doadores falecidos realizados entre janeiro de 2008 e dezembro de 2013 em nossa instituição. Vinte e oito pacientes foram excluídos da análise do estudo, uma vez que os critérios diagnósticos para FTE não puderam ser avaliados devido a disfunção primária, óbito precoce ou perda precoce do enxerto. FTE foi definida como necessidade de diálise na primeira semana após o transplante. Os pacientes foram seguidos por de um a seis anos. Os fatores de risco para FTE foram avaliados juntamente com os dados demográficos dos receptores, incluindo fatores como idade, sexo, etnia, tempo em terapia renal substitutiva, doença renal primária, incompatibilidade HLA, presença de anticorpos doador-específicos, anticorpos reativos ao painel e regime imunossupressor com uso de terapia de indução com anticorpos. As variáveis relacionadas ao doador incluíram dados demográficos, creatinina sérica final, causa de óbito, histórico de hipertensão e classificação como doador de critério expandido (DCE)6 Os fatores relativos à cirurgia de transplante e ao enxerto foram: tempo de isquemia fria, biópsia pré-implante (em sua maioria indicada em doadores com creatinina sérica inicial e pré-coleta acima de 1,5 mg/dL e 4,0 mg/dL, respectivamente, doadores diabéticos e doadores com idade acima de 65 anos) e órgãos oriundos de outros estados brasileiros transplantados em nosso centro de acordo com a regulamentação brasileira para a alocação de órgãos (órgãos de "fora do estado"). Foram adotados a técnica padrão para a captação de múltiplos órgãos e os protocolos de anestesia para transplante renal. Todos os rins foram submetidos a preservação estática. O tempo de isquemia fria foi medido a partir do resfriamento do órgão no doador até a sua retirada da solução de preservação. O tempo de isquemia quente foi medido desse ponto até a liberação do clampeamento vascular. Os transplantes foram realizados de acordo com técnicas cirúrgicas de rotina bem estabelecidas por cirurgiões experientes em transplante.
A duração da FTE foi medida em dias e o último dia de FTE foi considerado aquele em que o último tratamento dialítico foi realizado. Os desfechos avaliados foram: (a) incidência de FTE; (b) incidência de rejeição aguda avaliada durante o seguimento; (c) taxa de filtração glomerular do enxerto (TFGe) estimada pela equação do MDRD de acordo com a presença de FTE e sua duração; (d) Análise de Kaplan-Meier da sobrevida do paciente e do enxerto, em função da presença ou ausência de FTE e duração da FTE.
As análises estatísticas incluíram avaliações de normalidade dos dados por meio dos testes de Shapiro-Wilk e Kolmogorov-Smirnov. O teste de Tukey foi utilizado para analisar a FTE por quartis de acordo com sua duração. As variáveis foram submetidas a análise univariada e as que atingiram um nível de P ≤ 0,20 foram incluídas na análise multivariada por regressão de Poisson, de modo a avaliar os fatores de risco de forma independente.
Os dados foram analisados no programa IBM SPSS Statistics versão 20. Diferenças com P <0,05 foram consideradas estatisticamente significativas.
O estudo foi aprovado pelo comitê de ética e pesquisa da instituição.
Os dados demográficos constam da Tabela 1. Os pacientes eram predominantemente homens brancos de meia-idade dessensibilizados que receberam seu primeiro transplante. Um terço dos receptores receberam rins de doadores de critério expandido (DCE).6
Tabela 1 Dados demográficos dos receptores, doadores e variáveis do transplante
Variáveis dos receptores | Todos os pacientes | Com FTE | Sem FTE | P |
---|---|---|---|---|
(N = 517*) | (N = 339) | (N = 150) | ||
Idade (anos, média ± DP) | 49,2±0,6 | 49,3±0,7 | 49,0±1,0 | 0,819 |
Etnia (% brancos) | 84,71 | 88,20 | 92,66 | 0,325 |
Sexo (% masculino) | 54,93 | 58,40 | 57,33 | 0,843 |
Tempo em TRS (meses, média±DP) | 52,7±3,3 | 51,8±2,2 | 54,6±9,6 | 0,699 |
ARP Classe I (%) | 17,1±1,3 | 16,2±1,5 | 19,2±2,42 | 0,267 |
ARP Classe II (%) | 15,0±1,15 | 14,5±1,38 | 16,1±2,06 | 0,500 |
Presença de ADEs** (% com) | 16,24 | 16,81 | 18,00 | 0,895 |
Incompatibilidades HLA (ABDR) (média±DP) | 3,32±0,05 | 3,39±0,06 | 3,17±0,08 | 0,037 |
Terapia de indução (%) | 84,13 | 92,92 | 80,0 | 0,000 |
Transplante anterior (%) | 8,89 | 8,55 | 11,33 | 0,400 |
Doença renal primária | ||||
Hipertensão (%) | 24,56 | 23,30 | 29,33 | 0,259 |
Diabetes mellitus (%) | 21,08 | 23,01 | 18,0 | 0,234 |
Doença renal policística (%) | 12,77 | 11,50 | 16,0 | 0,188 |
Glomerulonefrite crônica (%) | 7,74 | 8,85 | 6,67 | 0,478 |
Neuropatia obstrutiva (%) | 4,45 | 4,13 | 4,67 | 0,811 |
Lúpus sistêmico eritematoso | 1,16 | 1,18 | 1,33 | 0,888 |
Outras (%) | 8,32 | 7,96 | 6,00 | 0,715 |
Desconhecida (%) | 19,92 | 20,06 | 18,0 | 0,623 |
Variáveis dos doadores | ||||
Idade (anos, média ± DP) | 43,7 ± 0,77 | 45,7±0,87 | 39,2±1,52 | 0,000 |
Sexo (% masculino) | 52,41 | 56,93 | 52,00 | 0,323 |
DCE (% sim) | 29,01 | 33,04 | 25,33 | 0,105 |
Creatinina sérica*** (mg/dL) | 1,60 ± 0,05 | 1,75±0,07 | 1,26±0,06 | 0,000 |
Histórico de hipertensão (% sim) | 25,91 | 30,68 | 20,00 | 0,003 |
Causa de óbito | ||||
Doença cerebrovascular (%) | 56,03 | 57,57 | 50,00 | 0,234 |
Trauma (%) | 34,63 | 34,12 | 39,33 | 0,251 |
Anóxia/afogamento (%) | 4,28 | 3,56 | 5,33 | 0,417 |
Outras (%) | 5,06 | 4,75 | 5,33 | 0,214 |
Variáveis relacionadas ao transplante | ||||
Tempo de isquemia fria (horas, média±DP) | 21,9 ± 0,25 | 22,49±0,31 | 20,6±0,41 | 0,001 |
Órgão de fora do estado (%) | 18,57 | 23,30 | 10,67 | 0,002 |
Biópsia pré-implante (%) | 39,65 | 47,20 | 30,0 | 0,000 |
*28 pacientes foram excluídos, ver texto;
**anticorpos doador-específicos
***Última creatinina sérica antes da captação do órgão
Os fatores de risco foram classificados como relacionados ao doador, relacionados ao receptor e relacionados ao enxerto. Sua análise foi feita através de métodos univariados e multivariados (Tabela 2). Idade do doador, creatinina sérica final e histórico de hipertensão foram fatores de risco significativos na análise univariada (P <0,05). Entre as variáveis relacionadas ao receptor, apenas o uso de terapia de indução com anticorpos (P = 0,002) e o número de incompatibilidades HLA ABDR (P = 0,034) foram fatores de risco significativos. As variáveis relacionadas ao enxerto, tempo de isquemia fria, rins de fora do estado e biópsia pré-implante para avaliação da adequação do enxerto foram fatores de risco significativos para FTE na análise univariada (P <0,001). A variável rins de fora do estado apresentou colinearidade significativa com o tempo de isquemia fria (P <0,01) e com biópsia pré-implante (P <0,01), e por esse motivo não foi incluída no modelo de análise multivariada. As variáveis que permaneceram significativas no modelo de análise multivariada foram: creatinina sérica final do doador (P = 0,012), idade do doador (P = 0,003), tempo de isquemia fria (P = 0,018) e uso de terapia de indução com anticorpos (P = 0,004). Os componentes da definição de DCE (idade do doador, creatinina, histórico de hipertensão e óbito por doença cerebrovascular) foram inseridos individualmente na análise multivariada.
Tabela 2 Análise dos fatores de risco da função tardia do enxerto
Variável | RR (IC 95%) | P |
---|---|---|
Análise Univariada | ||
Relacionadas ao Doador | ||
Idade (anos) | 1,007 (1,003 - 1,011) | 0,000 |
Sexo | 1,061 (0,941 - 1,196) | 0,335 |
DCE (UNOS) | 1,111 (0,984 - 1,255) | 0,090 |
Creatinina sérica final (mg/dL) | 1,116 (1,072 - 1,161) | 0,000 |
Hipertensão | 1,273 (1,091 - 1,485) | 0,002 |
Óbito cerebrovascular (%) | 0,903 (0,780 - 1,046) | 0,175 |
Trauma como causa de óbito | 0,928 (0,817 - 1,054) | 0,252 |
Anóxia/afogamento como causa de óbito | 1,090 (0,901 - 1,316) | 0,379 |
Outras causas de óbito | 1,092 (0,957 - 1,245) | 0,192 |
Variáveis relacionadas ao receptor | ||
Idade (anos) | 1,000 (0,996 - 1,005) | 0,855 |
Sexo | 1,015 (0,901 - 1,144) | 0,805 |
Hipertensão | 0,919 (0,780 - 1,046) | 0,255 |
Diabetes mellitus | 1,092 (0,957 - 1,245) | 0,192 |
Rim policístico | 0,878 (0,717 - 1,076) | 0,210 |
Glomerulonefrite crônica | 1,089 (0,901 - 1,316) | 0,379 |
Lúpus sistêmico eritematoso | 0,960 (0,544 - 1,696) | 0,960 |
Uropatia obstrutiva | 0,982 (0,733 - 1,314) | 0,902 |
Tempo em diálise (meses) | 1,000 (0,999 - 1,001 ) | 0,727 |
Presença de ADEs (%) | 0,983 (0,832 - 1,161) | 0,843 |
ARP classe I (%) | 0,999 (0,996 - 1,001) | 0,237 |
ARP classe II (%) | 0,999 (0,997 - 1,002) | 0,412 |
Incompatibilidades HLA ABDR | 1,059 (1,004 - 1,117) | 0,034 |
Terapia de indução com anticorpos (%) | 1,631 (1,204 - 2,210) | 0,002 |
Transplante prévio (%) | 0,898 (0,714 - 1,129) | 0,357 |
Variáveis relacionadas ao enxerto | ||
Tempo de isquemia fria (horas) | 1,019 (1,008 - 1,029) | 0,000 |
Rins de fora do estado (%) | 1,245 (1,108 - 1,400) | 0,000 |
Necessidade de biópsia pré-implante (%) | 1,305 (1,140 - 1,494) | 0,000 |
Análise Multivariada | ||
Tempo de isquemia fria | 1,018 (1,002 - 1,203) | 0,018 |
Idade do doador | 1,007 (1,003 - 1,011) | 0,000 |
Creatinina sérica final do doador | 1,099 (1,054 - 1,145) | 0,000 |
Indução com anticorpos | 1,479 (1,101 - 1,988) | 0,009 |
* anticorpos doador-específicos
As causas mais frequentes de doença renal crônica foram nefropatia hipertensiva (24,6%), nefropatia diabética (21,1%), doença renal policística (12,8%) e glomerulonefrite crônica (7,7%). As causas de óbito dos doadores foram predominantemente doença cerebrovascular (56,0%) e trauma (34,6%), que em si não eram fatores de risco para FTE (dados não exibidos).
FTE foi observada em 339 pacientes, resultando em incidência de 69,3%. A incidência foi elevada ao longo das seis coortes anuais, variando de 59,8% no ano de menor incidência a 74,4% no período de maior incidência. Duzentos e oitenta pacientes (57,3%) teriam sido diagnosticados com FTE se a condição fosse definida pela necessidade de mais de uma sessão de diálise na primeira semana pós-transplante.
O impacto da FTE sobre a função do enxerto é exibido na Figura 1, que mostra a TFG estimada pela equação do MDRD até 72 meses após o transplante. No grupo de pacientes sem FTE, a TFGe foi significativamente maior até quatro anos após o transplante (P <0,001), mas a diferença perdeu significância aos 60 meses (P = 0,072) e aos 72 meses (P = 0,219). De forma a analisar o impacto da duração da FTE sobre a função do enxerto renal, os pacientes foram classificados em quatro grupos: (a) sem FTE (N = 150), (b) com FTE por 1-7 dias (N = 154), ( c) com FTE por 8-14 dias (N = 81), e (d) com FTE por mais de 14 dias (N = 104). Os efeitos da duração da FTE sobre a TFGe são exibidos na Figura 2. Foi observada uma queda gradual na TFGe até quatro anos após o transplante em função da duração da FTE. As diferenças deixaram de ser significativas aos 60 e 72 meses devido às perdas de enxerto ocorridas predominantemente no grupo de pacientes com TFGe pior. Mesmo casos de TFE de curta duração levaram a repercussões negativas sobre a TFGe que persistiram durante todo o período de observação. O grupo de pacientes com maior tempo de FTE apresentou pior função renal e o grupo com FTE com duração de 8 a 14 dias apresentou valores intermediários de TFGe.
Figura 1 Taxa de filtração glomerular estimada pela equação do MDRD até 72 meses após o transplante de acordo com a ocorrência de função tardia do enxerto.* P < 0,01; ** P = 0,072; *** P = 0,219
De maneira geral, antes das exclusões, as sobrevidas não censuradas de pacientes e enxertos um e cinco anos após o transplante foram 95,6% e 86,5% e 84,0% e 69,1%, respectivamente. Um ano após o transplante, a sobrevida dos pacientes nos grupos FTE e não-FTE foi de 96,5% e 96,0% respectivamente, permanecendo essencialmente idêntica ao longo do seguimento (log rank P = 0,601). No entanto, uma diferença estatisticamente significativa foi encontrada na sobrevida do enxerto censurada para óbito (P = 0,038). Um ano após o transplante, a sobrevida do enxerto foi de 94,0% (grupo FTE) e 96,6% (grupo não-FTE). Aos cinco anos, a sobrevida foi de 84,6% e 95,0%, respectivamente (P = 0,038). Sessenta e cinco perdas de enxerto ocorreram no seguimento. As principais causas de perda do enxerto foram trombose vascular em 26 casos (40%), rejeição em 14 (21,5%) e insuficiência crônica do aloenxerto em 13 pacientes (20%). A duração da FTE não teve impacto na sobrevida dos pacientes até seis anos após o transplante. Contudo, esse mesmo fator exerceu impacto significativo na sobrevida do enxerto. O grupo de pacientes com FTE por mais de duas semanas apresentou menor sobrevida do enxerto (Figura 3).
No primeiro ano após o transplante, dados de biópsia confirmaram (Banff ≥ 1A) que rejeição aguda ocorreu em 24,5% do grupo com FTE e 14,7% do grupo sem FTE (P = 0,017). Rejeição aguda sobreposta a FTE levou a quedas significativas na TFGe e na sobrevida dos enxertos censurada para óbito. Como mostrado na Figura 4, o grupo de pacientes sem FTE ou rejeição aguda apresentou TFGe mais elevada durante o período de observação, enquanto o grupo com ambas as condições teve TFGe mais baixa. Rejeição aguda e FTE apresentaram impactos semelhantes sobre a TFGe até três anos após o transplante. Após esse período, os pacientes com rejeição aguda prévia apresentaram decréscimo mais significativo da TFGe.
Figure 4 Taxa de filtração glomerular estimada pela equação do MDRD até 72 meses após o transplante de acordo com a ocorrência de função tardia do enxerto e rejeição aguda avaliada durante o período de seguimentoRA = rejeição aguda; FTE = função tardia do enxerto* P < 0,01 vs. FTE+/RA- e FTE+/RA+ ; ** P =0,011vs. FTE+/AR+; *** P = 0,009 vs. FTE+/RA+; # P <0,05 vs. Todos os outros grupos; ## P = 0,002 vs. FTE+/RA+; • P <0,01 vs. FTE+/RA+; •• P=0,003 vs. FTE+/RA+; + P < 0,05 vs. FTE-/RA+ e FTE+/RA+; § P < 0,01 vs. FTE+/RA+; §§ P = 0,003 vs. FTE+/RA+; & P <0,01 vs. FTE+/RA+; && P = 0,019 vs. FTE+/RA+; @ P = 0,006 vs. FTE+/RA+
Aos seis anos após o transplante, foram observadas as seguintes sobrevidas de enxerto censuradas para óbito: 95,5% no grupo de receptores sem FTE ou rejeição aguda, 93,1% no grupo sem FTE e com rejeição, 89,4% no grupo com FTE e sem rejeição e 73,9% no grupo com FTE e rejeição aguda. O grupo sem FTE ou rejeição apresentou sobrevida significativamente maior que o grupo de pacientes com ambas as condições (P <0,001). Além disso, a sobrevida do grupo sem FTE e com rejeição aguda foi mais elevada que a do grupo com ambas as condições (P <0,001).
A função tardia do enxerto é uma complicação frequente após transplante renal com doador falecido. Ela se manifesta como insuficiência renal aguda do enxerto e resulta, em muitas ocasiões, em oligúria pós-transplante, necessidade de diálise, aumento da imunogenicidade do aloenxerto com maior risco de rejeição aguda e redução da sobrevida do enxerto.7 As consequências sobre a sobrevida dos pacientes são menos claras. Relatos anteriores citam diminuição significativa ou impacto nenhum.5,8
Fatores relacionados ao doador podem influenciar a ocorrência de FTE, notadamente a qualidade do cuidado intensivo prestado ao doador durante a captação do órgão.9 Os fatores de risco relacionados ao receptor podem ser classificados em imunológicos e não-imunológicos. Os fatores de risco imunológicos incluem incompatibilidade HLA, ARP pré-transplante e transfusões de sangue.10 Os fatores de risco não imunológicos relatados são idade do doador, tempo de isquemia fria, incompatibilidade de gênero, sexo, peso, etnia e estado clínico.11
A incidência de FTE após transplante renal com doador falecido apresenta grande variação. A incidência média atual relatada nos EUA varia entre 30% e 22% para enxertos renais de doadores de critério expandido e de critérios padrão, respectivamente.3 Aparentemente, essa grande variabilidade resulta principalmente das diferenças nas taxas relatadas pelos registros de transplantes, alguns incluindo doadores com batimentos cardíacos e outros sem, além da ambiguidade na definição de FTE.2 Fatores locais também parecem afetar a incidência. Um estudo retrospectivo multicêntrico realizado no Brasil relatou incidência de 55,6%.12 Mais recentemente, estudos unicêntricos relataram incidências ainda mais elevadas.3,7,13
Em um recente estudo do registro norte-americano, a avaliação dos desfechos de 29.598 transplantes renais pareados de mesmo doador identificou apenas um caso de transplante em que houve FTE. Os autores constataram que o risco de perda do enxerto associado a FTE no primeiro ano após o transplante foi 5,35 vezes maior e permaneceu entre 16% e 30% mais elevado após o primeiro ano.14
No presente trabalho, a incidência de FTE foi significativamente mais elevada que a média observada nos EUA e semelhante aos valores relatados em estudos anteriormente realizados no Brasil.3, 13,15 A natureza retrospectiva do presente estudo não permite identificar as causas de tal achado. Entretanto, podemos especular que esse desfecho está principalmente relacionado ao cuidado prestado aos doadores, à captação e coleta dos órgãos e às características dos doadores.16 Transplantes de doadores sem batimento cardíaco não são atualmente permitidos no Brasil. Contudo, transplantes de doadores com critério expandido compõem um grande percentual dos procedimentos realizados na maioria dos centros de transplante brasileiros. Além disso, tempos prolongados de isquemia fria e órgãos de fora do estado podem contribuir para a elevada incidência de FTE identificada no país. Segundo a regulamentação brasileira de transplantes, os órgãos captados que não forem aceitos para transplante no estado de coleta devem ser oferecidos nacionalmente. Dependendo dos Estados que aceitarem o envio de órgãos, as doações são alocadas para pacientes com maior necessidade ou para os que dispuserem de melhor logística. Pelas razões expostas, muitos destes órgãos vêm de doadores com critérios expandidos e não de doadores mantidos de forma ideal. Com efeito, a coorte os rins de fora do estado incluída no presente estudo foi submetida a mais biópsias pré-implante e transplantada após tempos de isquemia fria mais prolongados.
Enxertos renais de doadores com critério expandido também foram associados a maior incidência de FTE em comparação a enxertos de doadores com critério padrão.3 No presente trabalho, idade do doador, creatinina sérica final e histórico de hipertensão apresentaram uma forte associação com FTE na análise univariada. O tempo prolongado de isquemia fria também foi descrito como fator de risco independente para FTE. Dados do US Renal Data System Registry indicam aumento de 23% no risco para cada seis horas de aumento no tempo de isquemia fria. Em nosso relato, os principais fatores de risco relacionados ao enxerto e associados a FTE foram tempo de isquemia fria, rins de fora do estado e necessidade de biópsia pré-implante. No grupo com FTE, 23% dos enxertos vieram de outros estados, comparados a 10% dos enxertos do grupo sem FTE. Órgãos disponibilizados por outro estado são geralmente de DCE, o que aumenta a incidência de biópsia pré-implante e o tempo de isquemia fria.
O presente trabalho examinou, em um cenário de alta incidência de FTE, os fatores de risco e a significância do prognóstico na verificação de se desfechos piores relacionados a FTE se sustentariam. Foi identificada uma incidência elevada de FTE, como relatado anteriormente em estudos brasileiros.4,12,13, 15 No modelo de análise multivariada, as variáveis que permaneceram estatisticamente significativas foram creatinina final do doador, idade do doador, tempo de isquemia fria e uso de terapia de indução com anticorpos. Como esperado, os pacientes que receberam rins com insuficiência renal aguda apresentaram maior propensão de desenvolver FTE, como também observado em outros estudos. 4,17 Em função de seu delineamento retrospectivo, as razões pelas quais a terapia de indução com anticorpos emergiu como fator de risco independente não foram elencadas neste estudo. Acreditamos que a indução com anticorpos tenha sido preferencialmente indicada para transplantes com perfis menos favoráveis de doadores e/ou receptores, levando em consideração questões como tempo prolongado de isquemia fria, doadores com insuficiência renal aguda e receptores amplamente sensibilizados.
O recente estudo multicêntrico brasileiro publicado por Tedesco-Silva et al. demonstrou que a utilização da máquina de perfusão para enxertos renais diminuiu significativamente a incidência de FTE de 61% para 45% em comparação com a preservação estática.18 Também nesse estudo, os órgãos preservados na máquina de perfusão apresentaram melhor função 1 e 12 meses após o transplante. Outro estudo observacional prospectivo brasileiro realizado por Matos et al. indicou que a preservação estática elevou o risco de FTE em 54% em comparação à máquina de perfusão. Além disso, a duração da FTE foi significativamente reduzida em mais de 50% no braço do estudo em que foi utilizada a máquina de perfusão.19
Curiosamente, o impacto da duração da FTE sobre os desfechos do enxerto não são relatados com frequência.5,17, 20 No presente estudo, descobrimos que a duração da FTE não afeta a sobrevida do paciente. Contudo, casos de FTE que duram por mais de 14 dias produzem efeitos danosos evidentes sobre a sobrevida do enxerto. Sandes-Freitas et al. corroboraram esse achado ao relatar menor sobrevida de curto prazo do enxerto em receptores de transplante renal com FTE prolongada (> 15 dias).13 Em estudos de longo prazo, Yokoyama et al. relataram maior frequência de falência do enxerto cinco anos após o transplante em pacientes com FTE maior que oito dias.21 Fernández-Juarez et al. também relataram menor sobrevida do enxerto até seis anos após o transplante em pacientes com FTE maior que duas semanas.22 Entretanto, quando os enxertos com disfunção primária foram excluídos nesse último relato, as diferenças na sobrevida do enxerto desapareceram. No presente estudo, os pacientes que não satisfizeram os critérios diagnósticos para FTE, bem como aqueles com disfunção primária, foram excluídos da análise.
A recuperação funcional do enxerto é outra importante preocupação relacionada à FTE. Lee et al. avaliaram o impacto da FTE sobre a recuperação funcional do enxerto e descobriram que os rins com recuperação plena têm sobrevida semelhante aos que não apresentam FTE. Em contrapartida, aqueles com recuperação incompleta apresentam menor sobrevida e menor TFG aos cinco anos após o transplante. 23
A meta-análise de Yarlagadda et al. mostrou que pacientes com FTE apresentam menor função do enxerto em comparação a indivíduos sem FTE três anos e meio após o transplante.7 Jayaram et al. também relataram que pacientes com FTE que necessitaram de mais de um tratamento dialítico exibiram função renal significativamente menor após a recuperação do enxerto.24 Uma significativa consequência prejudicial da duração da FTE sobre a função de curto prazo do enxerto também foi demonstrada por Sandes-Freitas et al., que relataram acentuada piora da função do enxerto em pacientes com FTE por mais de 15 dias.13 Anteriormente, Renkens et al. relataram que FTE superior a 30 dias em receptores de rins de doadores sem batimento cardíaco apresentaram função inferior aos três meses após o transplante.20 No presente trabalho, também encontramos reduções na TFGe no grupo de pacientes com FTE. Curiosamente, as reduções na TFGe ocorreram de forma gradual com a duração da FTE, se mantiveram durante o período de seis anos e foram significativamente mais baixas em comparação com indivíduos sem FTE e com FTE de menor duração. É concebível que os rins dos pacientes com FTE que necessitaram de diálise por apenas um ciclo ou por um curto período de tempo sofram lesões por isquemia e reperfusão menos graves do que os enxertos de pacientes que necessitaram de tratamento dialítico mais extenso. A gravidade das lesões por isquemia e reperfusão pode determinar a duração da necessidade de diálise e possivelmente levar a um reparo mal-adaptativo das células parenquimatosas, produzindo fibrose e desfechos clínicos inferiores a longo prazo, como demonstrado no presente estudo.25
FTE tem sido relacionada a incidência mais elevada de rejeição aguda em receptores de transplante renal.7,24,26 Vários mecanismos foram propostos para explicar esse achado. As hipóteses giram em torno de imunidade aumentada induzida por lesão por isquemia e reperfusão levando a um estado inflamatório, com maior liberação de citocinas inflamatórias e expressão de moléculas de MHC classe I e II na superfície das células do enxerto, aumentando assim o reconhecimento direto e indireto pelo sistema imunológico do hospedeiro.27 Em nosso estudo, a incidência de rejeição aguda confirmada por biópsia foi mais elevada entre os pacientes com FTE. Miglinas et al. também relataram maior incidência de episódios de rejeição aguda comprovados por biópsia em pacientes com FTE.10 Contudo, esses achados devem ser vistos com cautela. Pacientes com FTE são mais frequentemente submetidos a biópsias de vigilância e, portanto, mais propensos a desenvolver reações inflamatórias no enxerto exposto. Além disso, enxertos com função imediata podem apresentar elevada incidência de rejeição aguda subclínica, revelada apenas por biópsia precoce não realizada rotineiramente. Além disso, isquemia fria mais prolongada parece não estar relacionada a maior incidência de rejeição.28 No presente estudo, FTE sem rejeição aguda foi associada a menor sobrevida do enxerto e a ocorrência de rejeição aguda levou a pior sobrevida do enxerto. Troppman et al. sugeriram que FTE sem rejeição não afeta a sobrevida a longo prazo do enxerto.29 Outros estudos indicaram que a sobrevida do enxerto em pacientes com ou sem FTE é semelhante, a menos que ocorra rejeição aguda, caso em que se observa deterioração significativa da sobrevida do enxerto.30,31 Contudo, também há relatos em que FTE e rejeição aguda foram considerados como fatores de risco independentes para falha do aloenxerto.32,33
Em nosso estudo, a sobrevida do paciente não foi influenciada pela ocorrência ou duração da FTE até seis anos após o transplante. A relação entre FTE e mortalidade foi avaliada em muitos estudos. Yarlagadda et al. realizaram uma revisão sistemática e meta-análise que incluiu doze estudos para avaliar o impacto da FTE na mortalidade de receptores de transplante renal e não encontraram associação entre FTE e sobrevida de pacientes até cinco anos após o transplante.7
As limitações do presente trabalho incluem o fato de ser um estudo unicêntrico de delineamento retrospectivo, o que impediu uma melhor avaliação de uma série de aspectos, em particular a qualidade dos cuidados prestados aos doadores. No entanto, acreditamos que os dados extraídos levaram a achados significativos em relação ao impacto da duração da FTE sobre a sobrevida e função do enxerto.
Em conclusão, em um cenário de alta incidência de FTE, a FTE prolongada foi associada a menor sobrevida e função do enxerto. Rejeição aguda foi mais frequente em pacientes com FTE e sua ocorrência levou a pior sobrevida e função. As razões para a alta incidência de FTE não puderam ser identificadas no presente estudo. Especulamos que fatores relacionados à manutenção dos doadores possam estar imbricados e que melhores protocolos de manejo, cuidado e captação de órgãos possam ajudar a melhorar esse desfecho.