versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.8 no.3 São Paulo jul./set. 2010
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082010rw1624
O consumo de bebidas alcoólicas pela gestante pode levar a abortamento, natimortalidade e à prematuridade(1). O álcool consumido durante a gestação também pode resultar em danos ao embrião/feto, agrupados no termo espectro de desordens fetais alcoólicas (FASD – fetal alcohol spectrum disorders). Esses danos incluem alterações físicas, mentais, comportamentais e/ou de aprendizado, que podem ser irreversíveis e levar à dependência de álcool e de outras drogas, problemas mentais, dificuldades escolares e no trabalho, comportamento sexual inapropriado e problemas com a justiça(1–3).
A síndrome alcoólica fetal (SAF), os defeitos congênitos relacionados ao álcool (ARBD – alcohol-related birth defects) e as desordens de neurodesenvolvimento relacionadas ao álcool (ARND – alcohol-related neurodevelopmental disorders) são abrangidos pelo FASD, sendo o mais grave representado pela primeira(1–3).
Os FASD representam o maior problema de Saúde Pública de todos os países do mundo(4).
Segundo a Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), Brasil e a Organização Mundial de Saúde (OMS), nas últimas décadas houve um aumento do consumo de álcool na maioria dos países, sendo a droga mais consumida no mundo(5–6). Aproximadamente 2 bilhões de pessoas consomem bebidas alcoólicas pelos dados de 2004 dessa organização(5).
Em 2002, a OMS diagnosticou que, na América Latina – inclusive no Brasil – o alcoolismo é o principal problema de saúde, sendo o fator que mais reduz a expectativa de vida saudável do brasileiro(7).
Elaborar revisão de artigos relevantes sobre as repercussões do consumo de álcool pela gestante com repercussões em seu filho.
Foi realizado levantamento bibliográfico da literatura médica por meio de busca nas bases de dados Medline, LILACS, na plataforma SciELO e em livros de texto. As palavras-chave utilizadas foram: “feto”, “recém-nascido”, “gestante”, “álcool”, “alcoolismo”, “síndrome alcoólica fetal” e “transtornos relacionados ao uso de álcool”, compreendendo o período de 2000 a 2009, nos idiomas português e inglês.
Os seguintes itens foram selecionados: efeitos do álcool etílico; características clínicas e critérios diagnósticos do FASD; diagnóstico, seguimento e tratamento; e prevenção.
Durante o período de 2000-2009, foram selecionados 40 artigos, classificados em categorias (Quadro 1), a maioria correspondendo à categoria revisão/atualização. Os Quadros 2 a 7 referem-se aos critérios diagnósticos e às características dos ARBD e ARND.
Quadro 1 Tipos de estudos selecionados
Estudo | Tipo |
---|---|
Hoyme HE, et al.(1) | Estudo de coorte |
Bertrand J, et al.(2) | Recomendações |
NCBDDD, et al.(3) | Recomendações |
Riley EP, et al.(4) | Revisão |
Felix JA(5) | Capítulo de livro |
WHO(6) | Declaração |
WHO(7) | Relatório |
Moraes CL, et al.(8) | Estudo transversal |
Mesquita MA, et al.(9) | Estudo transversal |
May PA, et al.(10) | Estudo caso controle |
May PA, et al.(11) | Revisão |
Ethen MK, et al.(12) | Estudo de coorte |
Warren KR, et al.(13) | Declaração |
Jones MW, et al.(14) | Revisão |
Lemoine P, et al. (15) | Estudo de coorte |
Jones KL, et al.(16) | Estudo de coorte |
Lemoine P, et al.(17) | Estudo transversal |
Thackray H, et al.(18) | Declaração |
Hannigan JH, et al. (19) | Revisão |
Astley SJ, et al.(20) | Estudo transversal |
Chudley AE, et al.(21) | Recomendações |
U.S. Surgeon General Advisory(22) | Declaração |
Grinfeld H(23) | Capítulo de livro |
Nóbrega MPSS, et al.(24) | Estudo qualitativo |
Grinfeld H, et al.(25) | Revisão |
Mattson SN, et al.(26) | Revisão |
Am. Acad. Pediatrics, et al.(27) | Declaração |
Maier SE, et al.(28) | Atualização |
Goodlett CR, et al.(29) | Revisão |
NEAD(30) | Revisão |
NOFAS(31) | Atualização |
Roebuck-Spencer TM, et al.(32) | Estudo de coorte |
Mennella JA.(33) | Revisão |
Menella JA, et al.(34) | Estudo de coorte |
Floyd RL, et al.(35) | Atualização |
Peadon E, et al.(36) | Atualização |
Gahagan S, et al.(37) | Estudo de coorte |
Cook JD, et al.(38) | Revisão |
Peadon E, et al.(39) | Revisão |
Pinheiro SN, et al.(40) | Estudo transversal |
World Health Organization (WHO); National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism (NIAAA).
Quadro 2 Características encontradas nas crianças expostas ao álcool no útero
Anomalias faciais |
– fissura palpebral pequena |
– ptose palpebral |
– hemiface achatada |
– nariz antevertido |
– filtro liso |
– lábio superior fino |
Restrição de crescimento |
– baixo peso ao nascer |
– restrição de crescimento apesar da nutrição adequada |
– baixo peso relativo à altura |
Alterações de neurodesenvolvimento do SNC |
– microcefalia |
– anormalidades estruturais do cérebro incluindo agenesia do corpo caloso e hipoplasia cerebelar |
– outros sinais neurológicos como dificuldades motoras finas, perda da audição sensoneural, incoordenação da deambulação e dificuldade da coordenação olho-mão |
Anormalidades comportamentais inexplicáveis |
– incapacidade de leitura |
– fraco desempenho escolar |
– dificuldade de controle dos impulsos |
– problemas com a percepção social |
– dificuldade de linguagem |
– raciocínio abstrato pobre |
– habilidades prejudicadas |
– dificuldades de memória e de julgamento |
Defeitos congênitos |
Incluídos mas não limitados a: |
– defeitos cardíacos |
– deformidades do esqueleto e dos membros |
– anomalias anatômicas renais |
– alterações oftalmológicas |
– ausência da orelha |
– fenda labial ou do palato |
Fonte: Thackray H, Tifft C. Fetal alcohol syndrome. Pediatr Rev. 2001;22(2):47-55.
Quadro 3 Defeitos de nascimento relacionados ao álcool (ARBD)
Exposição materna confirmada ao álcool, no mínimo duas características faciais e um ou mais dos seguintes defeitos estruturais |
Cardíacos |
– alteração no septo atrial |
– alteração no septo ventricular |
– anomalia dos grandes vasos |
– defeito no tronco cone |
Esqueléticos |
– tórax escavado ou carinato |
– escoliose |
– sinostose rádio-ulnar |
– defeitos vertebrais |
– contração das grandes articulações |
Renais |
– aplasia, hipoplasia e/ou displasia renais |
– rins em ferradura |
– duplicação uretral |
Oculares |
– estrabismo |
– ptose palpebral |
– erros de refração |
– anomalias dos vasos da retina |
– hipoplasia do nervo óptico |
Orelhas |
– agenesia do conduto auditivo |
– perda auditiva neurosensorial |
– perda auditiva condutiva |
– orelha em abano |
Anomalias menores |
– hipoplasia nasal |
– dedos pequenos |
– clinodactilia |
– camptodactilia |
– prega palmar na forma de bastão de hóquei |
– dobra epicantal |
– ponte nasal plana |
– hipoplasia facial |
Fonte: Hoyme HE, May PA, Kalberg WO, Kodituwkku P, Gossage JP, Trujillo PM, et al. A practical clinical approach to diagnosis of fetal alcohol spectrum disorders: clarification of the 1996 institute of medicine criteria. Pediatrics. 2005;115(1):39-47.
Quadro 4 Desordens de neurodesenvolvimento relacionados ao álcool (ARND)
Exposição materna confirmada ao álcool e pelo menos uma das seguintes alterações |
Estrutural |
Um ou mais dos seguintes: |
– perímetro cefálico ≤ 10º percentil |
– imagens estruturais do SNC anormais |
Anormalidades comportamentais ou cognitivas - inconsistentes com o nível de desenvolvimento que não podem ser explicadas por predisposição genética, antecedentes familiares ou ambientais: |
– diminuição da execução de tarefas |
– problemas complexos |
– planejamento |
– julgamento |
– abstração |
– aritmética |
– déficits de recepção e expressão da linguagem |
– desordens comportamentais |
– personalidade difícil |
– labilidade emocional |
– disfunção motora |
– pobre desempenho escolar |
– má interação social |
Fonte: Hoyme HE, May PA, Kalberg WO, Kodituwkku P, Gossage JP, Trujillo PM, et al. A practical clinical approach to diagnosis of fetal alcohol spectrum disorders: clarification of the 1996 institute of medicine criteria. Pediatrics. 2005;115(1):39-47.
Quadro 5 Critérios diagnósticos do Institute of Medicine of the National Academy of Sciences para a síndrome alcoólica fetal (SAF) e efeitos relacionados ao álcool
Categoria 1 | Os pacientes desta categoria apresentam a clássica tríade de retardo de crescimento, dismorfias faciais características e anormalidades no neurodesenvolvimento. São definidos como tendo a SAF completa. |
SAF com exposição materna ao álcool confirmada | |
Categoria 2 | Se a tríade descrita na categoria 1 está presente, o diagnóstico de SAF é possível mesmo sem a confirmação de exposição materna ao álcool. |
SAF sem a confirmação de exposição materna ao álcool | |
Categoria 3 | Os pacientes podem apresentar apenas algumas das características faciais associadas à restrição do crescimento, anormalidades do neurodesenvolvimento e/ou do comportamento cognitivo. |
SAF parcial com exposição materna ao álcool confirmada | |
Categoria 4 | Os pacientes desta categoria têm algumas anomalias congênitas resultantes da toxicidade do álcool. |
SAF com exposição materna ao álcool confirmada e defeitos de nascimento relacionados ao álcool | |
Categoria 5 | Os pacientes desta categoria têm evidências de anormalidades de neurodesenvolvimento do SNC e/ou um complexo padrão anormal do comportamento cognitivo, mas não têm, necessariamente, qualquer alteração física. |
SAF com exposição materna ao álcool confirmada e desordens de neurodesenvolvimento relacionadas ao álcool |
Fonte: Hoyme HE, May PA, Kalberg WO, Kodituwkku P, Gossage JP, Trujillo PM, et al. A practical clinical approach to diagnosis of fetal alcohol spectrum disorders: clarification of the 1996 institute of medicine criteria. Pediatrics. 2005;115(1):39-47.
Quadro 6 Código 4-Dígitos Diagnóstico para FASD
Escala | Restrição de crescimento | Fenótipo facial da SAF | Lesão ou disfunção do SNC | Exposição gestacional ao álcool |
---|---|---|---|---|
1 | Nenhum | Ausente | Pouco provável | Nenhum risco |
Comprimento e peso maior ou igual ao 10º percentil | Nenhuma das três características | Nenhuma evidên-cia ou diminuição estrutural, neuro- lógica ou funcional | Confirmada ausência da exposição da concepção ao nascimento | |
2 | Brando | Brando | Possível | Desconhecido |
Comprimento e peso abaixo do 10º percentil | Geralmente uma das três características | Evidência de dis- função, mas me- nos que a escala 3 | Exposição não confirma- da ou ausente | |
3 | Moderado | Moderado | Provável | Algum risco |
Comprimento e peso abaixo do 10º percentil | Geralmente duas das três características | Significante disfunção em três ou mais domínios | Exposição confirmada. Nível ou exposição desconhecida ou menor que a escala 4 | |
4 | Significante | Grave | Definido | Alto risco |
Comprimento e peso abaixo do 3º percentil | Todas as características: | Evidência estrutural ou neurológica | Exposição confirmada em altos níveis | |
– Fissura palpebral abaixo de 2 ou mais desvios padrão | ||||
– Lábio fino: escore 4 ou 5 | ||||
– Filtro liso: escore 4 ou 5 |
Fonte: Chudley AE, Conry J, Cook JL, Loock C, Rosales T, LeBlanc N; Public Health Agency of Canada's National Advisory Committee on Fetal Alcohol Spectrum Disorder. Fetal alcohol spectrum disorder: Canadian guidelines for diagnosis. CMAJ. 2005;172(5 Suppl):S1-S21.
Quadro 7 Critérios de diagnóstico da síndrome alcoólica fetal pelo Centers for Disease Control and Prevention
Dismorfias faciais |
Baseada nas diferenças raciais, os pacientes exibem as três das seguintes características faciais: |
– filtro liso; (University of Washington Lip-Philtrum Guide rank 4 or 5) |
– borda vermelha reduzida; (University of Washington Lip-Philtrum Guide rank 4 or 5) |
– fissura palpebral pequena (≤ 10º percentil) |
Problemas de crescimento |
Comprimento e/ou peso, pré ou pós-natal ≤ 10º percentil, ajustado para a idade, sexo, idade gestacional, raça ou etnicidade |
Anormalidades do SNC |
Estrutural: |
– perímetro cefálico ≤ 10º percentil, ajustado para a idade e sexo |
– anormalidades da imagem cerebral |
– Neurológico: |
– problemas neurológicos que não sejam devidos a insulto pós-natal, a febre ou a outros sinais neurológicos suaves que saiam dentro da normalidade |
Funcional: |
– desempenho substancialmente abaixo do esperado para a idade, escolaridade e circunstâncias, como as evidenciadas por: |
– déficit cognitivo ou intelectual, em vários domínios, ou importante retardo do desenvolvimento em crianças pequenas com desempenho abaixo do 3º percentil (dois desvios padrão abaixo da média para os testes padronizados) |
ou |
– déficit funcional abaixo do 16º percentil (um desvio padrão abaixo da média para os testes padronizados) em pelo menos três dos seguintes domínios: |
– cognitivo ou significante discrepância no desenvolvimento |
– déficit em executar funções |
– retardo nas funções motoras |
– problemas com atenção ou hiperatividade |
– problemas na destreza social |
– outros, como problemas sensoriais, de linguagem pragmática ou déficit de memória, dificuldade em responder adequadamente à rotina familiar |
Fonte: Fetal alcohol syndrome: guidelines for referral and diagnosis. NCBDDD, CDC, DHHS, NTFFAS and FAE [Internet]. 2004 [cited 2009 Mar 9]. Available from: http://www.cdc.gov/ncbddd/fasd/documents/FAS_guidelines_accessible.pdf.
O I Levantamento Nacional sobre os Padrões de Consumo de Álcool na População Brasileira, publicado em 2007, diagnosticou que 65% dos homens e 41% das mulheres, com 18 anos ou mais, bebem pelo menos uma vez ao ano. Pelo mesmo estudo, dos adolescentes de 14 a 17 anos, 64% dos homens e 68% das mulheres foram considerados abstêmios(5).
O alcoolismo é subdiagnosticado na gravidez pelo despreparo dos profissionais de Saúde em investigá-lo adequadamente e pelo maior preconceito social na gestação, levando a grávida a encobri-lo(8).
No Rio de Janeiro (RJ), um estudo de 2000, de Moraes e Reichenheim, constatou que 40,6% das parturientes consumiram bebida alcoólica em algum período da gestação e 10,1% fizeram-no até o final da gravidez(8). Em São Paulo (SP), em trabalho publicado em 2009, verificou-se que 33,29% das puérperas consumiram álcool em algum momento da gestação, sendo que destas, 21,41% consumiram-no nos três trimestres gestacionais(9).
Fatores como a baixa idade(9), menor escolaridade(8–10), baixa renda mensal(10,11) não coabitação com o companheiro(3,8–11), coabitação com consumidores de álcool(9–11), tabagismo(3,8–12), uso de drogas ilícitas(8,9,11), gravidez não-planejada(9,12) início tardio do pré-natal(9) e menor número de consultas no pré-natal(9) associamse ao consumo de álcool pelas gestantes.
Baixa paridade, alcance à educação, religiosidade, companheiro não-usuário de álcool e nutrição adequada são mecanismos protetores ao uso de álcool pelas grávidas, com consequência na prevenção da SAF(10).
O consumo de álcool é influenciado por variações farmacocinéticas, principalmente dos genes envolvidos no seu metabolismo. A enzima álcool desidrogenase, que contém as subunidades beta2 e beta3, em relação à que possui a beta1, leva a um acúmulo maior de acetaldeído(4). Essas formas, codificadas pelos alelos ADH2*2 e ADH2*3, respectivamente, representam um fator protetor contra o alcoolismo por reduzirem a frequência de consumo do álcool(4,13). A baixa atividade da enzima acetaldeído desidrogenase leva a acúmulo de acetaldeído e baixa conversão para ácido acético. É codificada pelo alelo ALDH2*2, cuja baixa frequência é um fator de proteção contra o alcoolismo(4).
Atenção especial deve ser dada à mulher alcoólatra, visando sua recuperação, os cuidados com os filhos e o impedimento da geração de novas crianças afetadas(4,14).
Lemoine et al., em 1968, na França(15), e Jones e Smith, em 1973, nos Estados Unidos(16), descreveram as anomalias que podem ser encontradas nos filhos de gestantes consumidoras de álcool, posteriormente confirmadas(17).
Em 1996, o US Institute of Medicine of the National Academy of Sciences (IOM), em Washington, Estados Unidos, introduziu os termos ARBD e ARND para descreverem alterações presentes nos filhos de gestantes alcoólatras não encontrados na SAF(18,19).
Astley e Clarren, em 2000, publicaram os critérios diagnósticos para a SAF e efeito alcoólico fetal (EAF) referidos como critérios de Washington(20) ou 4-Dígito Código Diagnóstico (4-Digit Diagnostic Code)(21). Definiram objetivamente o fenótipo facial da SAF e criaram um guia ilustrado do lábio superior e do filtro nasal (University of Washington Lip-Philtrum Guide)(1,20).
Em 2004, cientistas reunidos pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC) publicaram o guia diagnóstico da SAF, sua prevenção e seguimento e fizeram recomendações para a identificação e intervenção nas gestantes com risco de consumirem álcool(2,3).
Nos Estados Unidos, em 2004, a National Organization on Fetal Alcohol Syndrome (NOFAS) definiu o termo FASD como um termo que abrange todas as consequências que podem ocorrer nas pessoas cujas mães beberam álcool durante a gestação(1–3,21).
O registro mundial da prevalência da SAF é variável(2). Estima-se uma média de 0,5-2 casos/1.000 nascidos vivos(11). Com base nessa prevalência, o CDC espera que, entre as 4 milhões de crianças nascidas anualmente, 1.000-6.000 tenham SAF(2,3).
Nos Estados Unidos, a prevalência da SAF é de 0,5-2 casos/1.000 nascimentos. Estima-se que, para cada criança com SAF, existam três que não apresentam todas as características da síndrome, mas que possuem déficits neurocomportamentais resultantes da exposição pré-natal ao álcool que afetam o aprendizado e o comportamento(22).
Trabalho realizado em maternidade pública da cidade de São Paulo, em 2008, encontrou o diagnóstico de SAF em 1,52/1.000 nascidos vivos. No mesmo estudo, o diagnóstico de ARBD seria possível em 3,05/1.000 nascidos vivos e 34,11/1.000 nascidos vivos teriam chance de ter ARND(9).
As mulheres têm uma biodisponibilidade ao álcool maior que os homens, pela maior absorção dessa droga, menor quantidade de água e maior proporção de gordura corpórea, atingindo alcoolemia maior(23). São menos tolerantes ao álcool do que os homens, com maior vulnerabilidade para o desenvolvimento de complicações clínicas e risco de mortalidade(24).
O consumo de volume excessivo de álcool num curto espaço de tempo é conhecido como “binge drinking” ou “beber em binge”, situação que leva a danos para a saúde. Considera-se o padrão de consumo como sendo pesado ou em “binge” quando, por ocasião, o homem consome cinco ou mais unidades e a mulher, quatro ou mais(5).
O CDC e a National Task Force on Fetal Alcohol Syndrome/Fetal Alcohol Effect (NTFFAS/FAE) recomendam que mulheres na idade fértil, e que não estejam grávidas, não bebam mais que sete drinques/semana ou mais que três/ocasião(2,3). Esse padrão de consumo nas mulheres só é seguro se elas não estiverem grávidas, quando se recomenda a abstinência total(23).
O etanol atravessa bidirecionalmente a placenta por gradiente de concentração sem sofrer qualquer alteração, resultando em um nível fetal equivalente ao materno(14,16). Porém, a imaturidade e baixos níveis das enzimas fetais torna o metabolismo e eliminação do álcool mais lentos, levando à exposição maior do feto. O líquido amniótico é considerado reservatório do etanol e do acetaldeído expondo, ainda mais, o feto aos seus efeitos(16).
Quando a gestante ingere bebidas alcoólicas, seu filho também o faz(22). Durante a gestação, qualquer dose de álcool consumido poderá levar a alterações do desenvolvimento(25). A probabilidade de acometimento do recém-nascido (RN) e a gravidade da síndrome dependerão da dose de álcool consumida pela gestante, seu padrão de consumo, metabolismo e da alcoolemia materna e fetal, saúde materna, período gestacional de exposição fetal e suscetibilidade genética fetal(16,19,25–28).
O álcool age direta ou indiretamente sobre o feto, interferindo em seu crescimento. Prejudica o transporte placentário de nutrientes essenciais ao desenvolvimento fetal e propicia a má nutrição materna(29). Por vasoconstrição da placenta e dos vasos umbilicais, leva à hipoxia(25).
Não existem marcadores capazes de determinar a ação específica do álcool sobre o feto, nem a influência da dose sobre o mecanismo de desenvolvimento da síndrome(30). Provavelmente um único mecanismo não explique todos os seus efeitos nocivos sobre o feto(31).
O álcool atravessa facilmente a barreira entre o sangue e o cérebro, levando a efeitos complexos no desenvolvimento cerebral(14,29). Em certos grupos de células cerebrais, pode levar à morte e, em outros, interfere em suas funções(29).
Em qualquer período gestacional, o álcool pode causar efeitos no sistema nervoso central (SNC) fetal, sendo esses mais graves nas primeiras cinco semanas(15,18,28). Ocorre microcefalia e/ou microencefalia consequentes à diminuição do crescimento cerebral(14). Alterações funcionais relacionadas ao corpo caloso, cerebelo e gânglios basais são consistentemente observadas(3). A agenesia do corpo caloso é uma das anomalias mais frequentes(32). Podem existir alterações estruturais do SNC, compatíveis com a SAF, sem déficits funcionais detectáveis(2,3).
Nem todas as crianças de mães que consomem álcool durante a gravidez desenvolvem os seus efeitos deletérios, desconhecendo-se o nível seguro de consumo de álcool durante a gestação(16,31).
A SAF apresenta um padrão típico de alterações faciais (Figura 1), restrição de crescimento pré e/ou pós-natal e evidências de alterações estruturais e/ou funcionais do SNC coligados à exposição intrauterina ao álcool(15,26,29–31). Esses achados foram adaptados dos critérios diagnóstico do IOM, de 1996(15,18,19). As características dos ARBD (Quadro 2) e dos ARND (Quadro 3), descritas por esse instituto, foram elucidadas por Hoyme et al., tornando-as mais específicas e aplicáveis clinicamente(1).
Figura 1 Recém-nascido com peso de nascimento, perímetro cefálico, comprimento, fissura palpebral e borda vermelha do lábio superior menores que o 10º percentil para a idade gestacional, nariz antevertido, filtro nasal liso, implantação baixa dos pavilhões auriculares e síndrome de abstinência
Na abrangência dos FASD, a dismorfia facial muitas vezes está ausente, tendo pouca importância quando comparada com o impacto que a exposição pré-natal ao álcool pode provocar na função cerebral. No entanto, o fenótipo facial – alteração da linha média – é o marcador mais sensível e específico para o dano cerebral relacionado ao álcool(21).
A retirada abrupta do RN de um ambiente uterino alterado pelo álcool poderá levar à síndrome de abstinência alcoólica manifestada por irritabilidade, hiperexcitabilidade, hipersensibilidade, hipotonia, tremores, tensão muscular com opistótomo, alterações do padrão do sono, estado de alerta frequente, sudorese, apneia, taquipneia, recusa alimentar e dificuldade de vínculo(14,18). Sendo o metabolismo do álcool lento no neonato, o aparecimento da síndrome de abstinência pode ser tardio, surgindo, em média, no segundo dia de vida(14).
O consumo materno de álcool leva à diminuição média de 20% da ingestão de leite pela criança, 3-4 horas após o seu consumo(33). Isso se deve à diminuição da produção de ocitocina materna, com consequente diminuição da ejeção de leite(34).
Cerca de 2% do álcool consumido pela mulher é transferido para o leite, nele aparecendo 30-60 minutos após a sua ingestão. Este levará à diminuição no período do sono de movimentação dos olhos e alteração do desenvolvimento dos movimentos grosseiros(33).
Apesar dos efeitos do álcool no concepto serem conhecidos, as crianças que os sofrem muitas vezes não são diagnosticadas, pela ausência de uniformidade de critérios para esse fim(2,3). Duas publicações definem os critérios diagnósticos das crianças expostas ao álcool intra-útero: os critérios do IOM, de 1996, e os critérios de Washington, de 2000(1). Cientistas reunidos pelo CDC, de 2002-2004, determinaram os critérios de diagnóstico da SAF(3).
Em 1996, o IOM delineou cinco categorias para a SAF/EAF (Quadro 4). Estas são vagas e confusas, pois não definem o fenótipo facial, o grau de restrição de crescimento nem as alterações neurocomportamentais e cognitivas dessas doenças(1).
Os critérios de Washington (Quadro 5) refletem a magnitude da expressão das quatro características chave da SAF: restrição do crescimento, fenótipo facial da SAF, alteração ou disfunção do SNC e exposição intra-útero ao álcool. O grau de expressão de cada característica é independentemente classificado em escala de 1 a 4, em que 1 representa a normalidade e 4, a sua extrema expressividade(20).
Pelos critérios de Washington foi definido, objetivamente, o fenótipo facial da SAF e criado um guia ilustrado do lábio superior e do filtro nasal que facilita as suas avaliações (University of Washington Lip-Philtrum Guide). São descritas cinco categorias do lábio superior e do filtro nasal, avaliados separadamente pela comparação de faces de crianças, que variam da normalidade até as características da SAF clássica. O escore 1 é considerado completamente normal e o 5 é o mais indicativo de SAF(1,20,21). Pelos critérios de Washington, a fissura palpebral tem que ser menor ou igual a dois desvios padrão, e o filtro nasal e o lábio superior corresponderem às categorias 4 ou 5 do guia ilustrado elaborado(21).
Pelo CDC (2002-2004), o diagnóstico da SAF requer a existência de três achados: as três dismorfias faciais específicas, a restrição de crescimento pré e/ou pós-natal do peso e/ou do comprimento e anormalidades do SNC a nível estrutural, neurológico ou funcional (Quadro 6). A falta de confirmação da exposição ao álcool durante a gravidez não impedirá o diagnóstico de SAF se todos os outros critérios estiverem presentes. A certeza de que a gestante não consumiu álcool durante a gestação torna o diagnóstico de SAF inapropriado. Somente a exposição pré-natal ao álcool não é suficiente para o diagnóstico da SAF(2).
A antropometria do crescimento e da face é específica para cada população e raça. Algumas características faciais da SAF, como o lábio superior e o filtro, podem se tornar menos reconhecíveis com a idade, dificultando a acurácia do diagnóstico nos pacientes mais velhos(21).
Para as crianças, o diagnóstico e a intervenção precoces diminuem o risco de incapacidades futuras(2,35). Para as famílias, permite esclarecimentos sobre os problemas do paciente, levando à elucidação e expectativas mais apropriadas sobre a criança, aumento do acesso a serviços sociais e de educação e ao possível subsídio do governo. No nível da Saúde Pública, o diagnóstico pode aumentar o registro da incidência e da prevalência, permitindo estudos e o planejamento de serviços de Saúde, sociais e educacionais(21,36).
A padronização de roteiros de diagnóstico é necessária(21). A não ser para a SAF, não existem evidências científicas suficientes que definam os critérios diagnósticos para qualquer condição relacionada ao álcool durante o pré-natal(2). Pela complexidade e variação de expressão das alterações, uma equipe multidisciplinar qualificada, treinada e experiente é essencial para a realização do diagnóstico e recomendações do tratamento(21).
O diagnóstico da SAF é mais fácil dos 2 aos 11 anos, quando as dismorfias faciais são mais evidentes e as disfunções típicas do SNC surgem clinicamente(4,14,15,18).
O diagnóstico de FASD é difícil no RN, e muitos casos são perdidos pelo desconhecimento do consumo de álcool pelas gestantes, pela pouca experiência médica sobre essa doença e pela dificuldade em se avaliar o neurodesenvolvimento e as funções cognitivas e comportamentais nessa faixa etária(17,35,37).
O diagnóstico neonatal depende das características faciais, da restrição de crescimento intrauterino em relação ao peso, perímetro cefálico e comprimento associados à exposição intrauterina ao álcool. A associação de malformações congênitas e restrição de crescimento obrigam a investigação da exposição intrauterina ao álcool(14,18).
Certas síndromes apresentam características semelhantes à SAF e dela devem ser diferenciadas. Com exceção da embriopatia pelo tolueno, nenhuma outra síndrome conhecida apresenta fissura palpebral pequena, borda vermelha labial fina e filtro liso, concomitantemente(2,3).
As crianças e seus familiares devem ser encaminhados para serviços especializados se a gestante consumiu sete ou mais drinques por semana e/ou três ou mais drinques por vez, em várias ocasiões. A ausência dos critérios da síndrome obriga o acompanhamento da criança durante o seu crescimento e desenvolvimento pelo nível primário da saúde(2,3).
Quando a exposição pré-natal ao álcool é desconhecida, a criança ou o indivíduo precisam ser encaminhados se existe registro ou preocupação dos cuidadores quanto à possibilidade de a criança ter SAF e se existem as três características faciais típicas da síndrome, uma ou mais características faciais típicas com déficit do peso e/ou do comprimento, uma ou mais características faciais típicas com uma ou mais alterações do SNC e uma ou mais características faciais típicas com déficit de crescimento e uma ou mais alterações do SNC(2,3).
A possibilidade de exposição pré-natal ao álcool precisa ser considerada na morte materna prematura, por trauma ou doença relacionada ao álcool, co-habitação com um familiar alcoólatra, história atual ou anterior de abuso ou negligência, envolvimento, atual ou anterior, com serviços de proteção da criança e na adoção ou cuidados da criança por familiares(2).
Indivíduos com dificuldades de aprendizado e/ou comportamentais, sem alterações físicas ou dismórficas, e com a exposição pré-natal ao álcool desconhecida, também precisam ser avaliados para que seus problemas sejam identificados e tratados(21).
Não existe nenhuma terapia específica para a SAF/EAF, obrigando a criança afetada e toda a família a suportarem, por toda a vida, as consequências dos danos causados pela exposição intra-útero ao álcool(38). Os problemas apresentados pela criança devem ser tratados e/ou seguidos por serviços especializados com suporte e recursos preventivos para o paciente e sua família(3,30).
Apesar dos esforços desenvolvidos para intensificar e diversificar as intervenções na SAF, recente trabalho de revisão sistemática(39) concluiu que há na literatura escassa evidência sobre a qualidade de ações específicas na conduta em relação à SAF, embora, atualmente, sete artigos randomizados estejam sendo conduzidos para melhor enfrentar o problema.
Os FASD implicam anomalias permanentes e irreversíveis e, assim, a prevenção é a melhor estratégia(3,30,38). Suas anomalias serão totalmente prevenidas se houver abstinência ao uso de álcool pelas mulheres, imediatamente antes da concepção e ao longo de toda a gravidez(35,38).
O CDC, a NTFFAS/FAE e a U.S. Surgeon General's Advisory recomendam que mulheres grávidas, que planejam engravidar ou que têm risco de engravidar, não consumam bebidas alcoólicas(2–4,22,27,28,35). A mesma recomendação é feita pela Academia Americana de Pediatria e pelo Colégio Americano de Obstetras e de Ginecologistas(38).
A prevenção da exposição pré-natal ao álcool requer a identificação de mulheres que bebem. As mulheres grávidas ou amamentando, as que planejam engravidar, as sexualmente ativas e que não usam contraceptivos devem ser investigadas quanto ao uso de álcool(3).
Durante o pré-natal, ocasião em que a mulher é acompanhada regularmente por uma equipe de saúde, criam-se várias oportunidades para a detecção do seu consumo de álcool(40).
A baixa sensibilidade dos biomarcadores laboratoriais, a possibilidade de que alterações só ocorram na presença de grandes doses de álcool e o alto custo desses exames fazem com que sejam impraticáveis na busca dessas gestantes(3).
A chave da prevenção dos FASD é a promoção de programas que aumentem a consciência dos perigos da exposição pré-natal ao álcool pelo consumo de bebidas alcoólicas pela grávida(3).
A causa e as consequências individuais e coletivas dos FASD são bem conhecidas e totalmente evitáveis.
Os profissionais da Saúde têm a obrigação de prevenir as lesões que o álcool pode causar ao concepto – identificando as mulheres consumidoras de bebidas alcoólicas – e de reconhecer, já no período neonatal, as crianças por ele afetadas.
O governo e a população devem se unir no planejamento e execução de medidas que previnam e minimizem todas as consequências fetais do consumo de álcool pelas gestantes.