versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.41 no.2 São Paulo abr./jun. 2019 Epub 30-Maio-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2019-0064
A obesidade é uma doença crônica multicausal, resultante de balanço energético positivo em longo prazo, com desenvolvimento de excesso de adiposidade que evolutivamente promove anormalidades estruturais, distúrbios fisiológicos e deficiências funcionais. A obesidade eleva o risco de desenvolvimento de outras doenças crônicas e está associada à mortalidade prematura.1
A prevalência global de obesidade aumentou nos últimos 40 anos, de menos de 1%, em 1975, para 6-8%, em 2016, entre meninas e meninos; e de 3% para 11% entre homens, e de 6% para 15% entre mulheres, no mesmo período de tempo.2 A elevação da prevalência de obesidade foi acompanhada da elevação das prevalências de hipertensão arterial (HA), diabetes e doença cardiovascular.3,4,5
Os efeitos adversos da HA e da resistência periférica à insulina, associados à inflamação sistêmica e dislipidemia, podem favorecer o desenvolvimento de doença renal crônica (DRC).6 A associação entre obesidade e DRC, no entanto, tem sido motivo de debate na literatura.7-14
Metanálise recente avaliou, em mais de 5 milhões de indivíduos, procedentes de 40 países e 63 coortes da população geral, pacientes de alto risco cardiovascular e pacientes com DRC, no período entre 1970 e 2017, a associação entre varias medidas de adiposidade com a queda da taxa de filtração glomerular estimada (TGFe) e a mortalidade decorrente de todas as causas. Após seguimento em longo prazo, indivíduos com IMC acima de 30 kg/m2 pertencentes às coortes da população geral demonstraram risco significativamente maior para declínio de TFG, e associação entre IMC e morte em forma de "J", com menor risco para IMC de 25 kg/m2. Nas coortes com alto risco cardiovascular e DRC, a associação de risco entre IMC elevado e declínio da TFG foi mais fraca do que na população geral, mantendo-se a associação entre IMC e morte em forma de "J", com menor risco para valores de IMC entre 25 e 30 kg/m2. Os autores concluíram que valores elevados de IMC, circunferência abdominal e relação cintura/altura são fatores de risco independentes para a redução da TFG e de morte em indivíduos que apresentam níveis normais ou reduzidos de TFG estimada.15
Os efeitos deletérios da obesidade sobre a função renal podem ser indiretos, via HA e/ou diabetes mellitus, ou diretos, por meio da produção de adipocinas que promovem desenvolvimento de inflamação, estresse oxidativo, metabolismo lipídico anormal, ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, aumento da produção de insulina e resistência à insulina.16 Essas múltiplas ações resultariam em acúmulo ectópico de lipídeos no tecido renal, cuja presença levaria a alterações funcionais e estruturais em células mesangiais, podócitos e túbulo proximal, que culminariam promovendo hipertensão glomerular, aumento da permeabilidade glomerular, hiperfiltração, glomerulomegalia, albuminúria e, em alguns casos, glomeruloesclerose focal e segmentar(GEFS).17
A apresentação mais comum da glomerulopatia relacionada à obesidade (GRO) é o aumento lento da proteinúria em nível não nefrótico. Em alguns casos, pode ocorrer proteinúria maciça (> 5-10 g/dia). Mesmo no caso de pacientes com proteinúria em nível nefrótico, os achados típicos da síndrome nefrótica são caracteristicamente ausentes. Os efeitos deletérios da obesidade podem se somar a outras doenças renais ou ao número reduzido de néfrons, com aceleração da progressão para doença renal terminal.18
A biópsia renal de pacientes com GRO, quando comparada à de pacientes com síndrome nefrótica, apresenta mais glomerulomegalia, com menor número de lesões de esclerose glomerular. Em longo prazo, pacientes com GRO, em tratamento com inibidores da enzima (ECA) ou bloqueadores A2, mostram duplicação menos frequente da creatinina sérica e menor progressão para DRC terminal que aqueles com síndrome nefrótica em vigência de imunossupressão. A creatinina sérica na apresentação e a magnitude da proteinúria são preditores de má evolução funcional renal na GRO.19
Na faixa etária pediátrica, o IMC se modifica com o crescimento, e seus valores normativos devem ser interpretados em relação à idade e ao sexo. Define-se sobrepeso quando o IMC for maior ou igual ao percentil 85 e menor que o percentil 95, e, obesidade, quando o IMC for maior ou igual ao percentil 95, para idade e sexo.20 Esses pontos de corte identificam com precisão as crianças com risco aumentado para sobrepeso e obesidade,21 bem como desenvolvimento de fatores de risco cardiovascular (hipertensão arterial, dislipidemia e resistência à insulina) na vida adulta.22,23
Diferentemente do que ocorre no adulto, a definição de síndrome metabólica para a população pediátrica não apresenta consenso na literatura. A definição atualmente mais utilizada é a da Federação Internacional de Diabetes, que só pode ser utilizada a partir de 10 anos de idade e leva em conta valores de circunferência abdominal ( ≥ percentil 90 ou ≥ 94 cm para meninos e ≥ 80 cm para meninas), triglicérides ≥ 150 mg/dL, HDL-C < 40 mg/dL para meninos e < 50 mg/dL para meninas, pressão arterial sistólica/diastólica ≥ 130 e/ou 85 mmHg e glicemia ≥ 100mg/dL.24
A associação entre IMC e risco de desenvolvimento de DRC terminal foi avaliada em 1,2 milhão de adolescentes de 17 anos, ao longo de 30 anos. No período, a taxa de incidência global de DRC foi de 2,87 casos por 100.000 pessoas-ano. Em comparação a adolescentes com peso normal, adolescentes com sobrepeso e obesidade apresentaram risco futuro aumentado para DRC terminal, com taxas de incidência de 6,08 e 13,40 casos por 100.000 pessoas-ano, respectivamente. Em um modelo multivariado, o sobrepeso e a obesidade foram associados ao desenvolvimento de DRC terminal de qualquer causa (razão de chance de 3,00 e 6,89, respectivamente).25 Dados pré-cirurgia bariátrica de 242 adolescentes do estudo "Teen-LABS" mostram microalbuminúria em 14%, macroalbuminúria em 3%, TFGe < 60 mL/min/1,73m2 em 3% e TFGe > 150 mL/min/1,73m2 em 7,1% dos participantes. O aumento dos valores de IMC e o valor do Homeostasis Model Assessment for insulin resistance (HOMA-IR) foram significativamente associados com menor TGFe.26 A reavaliação desses pacientes 3 anos após a cirurgia mostrou melhora significativa da TFGe média, estimando-se ganho de 3,9 mL/min/1,73m2 na TFGe para cada 10 unidades de perda de IMC. Verificou-se também melhora importante dos níveis de albuminúria em relação aos valores pré-operatórios.27
Nesta edição do Brazilian Journal of Nephrology, Sawamura e colaboradores28 apresentam um estudo transversal que avaliou 64 crianças e adolescentes entre 5 a 19 anos de idade, com sobrepeso e obesidade, com o objetivo de descrever a frequência de albuminúria e relacioná-la com a gravidade da obesidade, estadiamento puberal, morbidades associadas e TFGe. Os participantes tinham em média 11,6 anos, estavam homogeneamente distribuídos em relação ao sexo, sendo 45,3% pré-púberes. Chama a atenção a elevada frequência de obesidade grave na casuística (71,9%). A frequência e a mediana dos valores observados para albuminúria (> 30 mg/g) foram, respectivamente, 21,9% e 9,4 mg/g. Os autores não encontraram correlação entre o IMC, estadiamento puberal, insulina e HOMA-IR, os valores de albuminúria e a TFGe. O estudo não demonstrou associação com as outras morbidades, exceto para PA diastólica, que mostrou tendência a valores maiores no grupo com microalbuminúria. A frequência de microalbuminúria encontrada no presente estudo é superior à da maioria dos estudos similares anteriormente publicados. Essa disparidade pode ser relacionada à heterogeneidade entre os vários estudos quanto à definição de microalbuminúria e à técnica empregada em sua dosagem. A ausência de grupo controle no presente estudo dificulta a análise dessas variáveis.
Quanto à relação da microalbuminúria com a hipertensão arterial, o estudo de Sawamura e colaboradores utiliza a Task Force 200429 para classificação dos valores avaliados de pressão arterial. Essa classificação foi recentemente substituída,30 com modificação importante dos parâmetros que normatizam a definição de hipertensão arterial da criança e do adolescente. A utilização das novas definições tem o potencial de redimensionar a prevalência de hipertensão arterial na população pediátrica em geral,31 assim como nos pacientes com sobrepeso e obesidade.32
Outro aspecto a ser considerado é a medida da TGFe em pacientes pediátricos com sobrepeso e obesidade. A TGFe calculada utilizando a normalização para 1,73 m2 foi proposta no sentido de obter valores comparáveis para a população pediátrica e adulta.33 Como o IMC está fortemente correlacionado com a superfície corpórea, o ajuste para superfície corpórea remove qualquer efeito do peso corporal na TFG,34 promovendo uma subestimativa da TFG verdadeira em indivíduos com IMC mais elevado, mascarando a instalação da hiperfiltração.34,35,36 Um estudo pediátrico recente demonstra que os desafios da medida da TFG no paciente pediátrico obeso podem ser superados se a superfície corpórea for calculada utilizando o peso ideal, em vez de o peso real.37 Outra possibilidade é a utilização da cistatina C, que tem sido considerada um marcador superior da TGFe. Filler & Lepage, avaliando crianças e jovens de 1 a 18 anos, com várias patologias renais, derivaram a seguinte equação para cálculo da TGFe a partir da concentração da cistatina sérica: log (TFG) = 1,962 + [1,123 * log (1 /Cistatina C)].38
O estudo de Sawamura e colaboradores lança uma alerta quanto à necessidade de acompanhamento da criança e do adolescente com sobrepeso e obesidade por uma equipe multiprofissional guiada por protocolos prospectivos para detecção e manejo das várias complicações potenciais dessa situação clínica que já configura uma epidemia global.