versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X
Cad. saúde colet. vol.24 no.4 Rio de Janeiro out./dez. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201600040211
Creative activities have been used as therapeutic resource for people with mental disorders in Brazil and worldwide. There is a need to consolidate the body of evidence on the subject by incorporating qualitative data and the conceptual model of recovery. This paper presents a systematic review on the effects of art making as therapeutic resource in mental health. The databases PubMED, LILACS and SciELO were searched and studies on the subject that had qualitative approach and were published in English or Portuguese between 2000 and 2013 were selected. Benefits were evident in key aspects of the subjects' rehabilitation process, such as the relief of negative feelings, empowerment and social reintegration, which are fundamental principles of recovery. It was found that art has a significant therapeutic potential in the psychosocial rehabilitation of people with mental disorders and may represent a valuable resource in the current scenario of challenges to mental health care.
Keywords: art therapy; mental health; mental disorders; rehabilitation
Os movimentos de Reforma Psiquiátrica propiciaram, na segunda metade do século XX, a ascensão de um novo paradigma na assistência a portadores de transtornos mentais1. O conceito de recovery, proposto a partir da década de 19702, insere-se nesse contexto de reconstrução das práticas assistenciais, ao lançar um modelo inovador de reabilitação para pessoas com transtornos psíquicos.
Criado a partir de narrativas de usuários sobre suas experiências como portadores de doenças mentais3, o recovery se propõe a substituir a reabilitação centrada em conceitos biomédicos, incorporando dimensões subjetivas ao cuidado em saúde mental4. O modelo descreve a reabilitação do sujeito como um processo profundamente pessoal de autodeterminação, fortalecimento e descoberta de um novo senso de identidade e propósito, contemplando a superação do rótulo de louco3-6. O recovery não preconiza, portanto, cura ou remissão de sintomas2, mas, ao invés de disso, centra-se na recuperação da esperança por parte do usuário2,3 e no viver bem, apesar do transtorno psíquico7.
O uso da arte como recurso terapêutico se insere nesse contexto de busca por soluções que atendam às demandas dos novos modelos de reinserção social. Práticas artísticas vêm sendo empregadas em instituições de diversos países8-11 e, hoje, ocupam papel de destaque entre as atividades terapêuticas oferecidas nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)12. Embora alguns estudos quantitativos com amostras significativas não tenham demonstrado benefícios da arteterapia para portadores de transtornos mentais13,14, publicações com metodologia qualitativa têm mostrado resultados diferentes, com repercussões positivas em diversas frentes da reabilitação15. Apesar de a pesquisa qualitativa ser mais condizente com os princípios do recovery, essa abordagem metodológica foi pouco explorada em revisões anteriores sobre o tema15. Assim, os efeitos terapêuticos dessas práticas não estão completamente elucidados13,14, o que tem sido apontado como um entrave ao financiamento e à incorporação dessas práticas aos serviços de saúde mental15-17. O presente estudo localizou apenas uma revisão publicada sobre o tema no Brasil6.
O presente estudo tem por objetivo identificar e discutir efeitos benéficos da arte para os processos de reabilitação psicossocial ou recovery de portadores de transtornos psíquicos, relacionando os efeitos descritos a eventuais explicações propostas pelos estudos. A revisão se justifica pela necessidade de se consolidar o corpo de evidências nesse campo15-17 por meio de metodologia qualitativa e à luz de modelos de reabilitação inovadores18,19.
Foi realizada uma revisão sistemática da literatura sobre os efeitos terapêuticos da produção de arte para portadores de transtornos mentais. Foram incluídos na seleção artigos originais em português e em inglês, publicados entre os anos de 2000 e 2013 e que avaliaram os efeitos do uso da arte como recurso terapêutico para pessoas com transtornos mentais por meio de metodologia qualitativa. Não foram incluídos: (i) estudos que avaliaram os efeitos dessas intervenções para pacientes com dependência de substâncias psicoativas e demência; (ii) estudos com metodologia mista (quantitativa e qualitativa); (iii) artigos que não puderam ser recuperados na íntegra. Para o levantamento bibliográfico, foi realizada uma busca nos bancos de dados Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE/PubMed), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e Scientific Electronic Library Online (SciELO). Os descritores foram divididos em duas categorias: art making, art therapy e creative therapy/creative therapies (categoria 1); mental disorders, mental health e mental illness (categoria 2). Desses termos, art therapy, mental disorders e mental health são termos indexados no Medical Subject Headings (MeSH) e nos Descritores em Ciências da Saúde da Biblioteca Virtual de Saúde (DeCS/BIREME). Para elaborar a sintaxe da busca, cada termo da categoria 1 foi combinado com um termo da categoria 2 até que todas as combinações tivessem sido realizadas. O termo art therapy foi pesquisado entre aspas, pois, nas tentativas de busca sem esse recurso, a maioria dos artigos encontrados abordavam temas que não interessavam a esta revisão.
Na base de dados PubMed, uma das estratégias teve de ser modificada. Nas buscas com o termo “art therapy”, 1.066 artigos foram localizados, em muitos dos quais o tema era a terapia antirretroviral, devido à semelhança de art therapy com a sigla para antiretroviral (art) therapy (terapia antirretroviral, utilizada no tratamento da infecção pelo vírus HIV). Assim, acrescentou-se o termo “NOT HIV” à busca. Ainda, nas buscas no PubMed, foram utilizados os seguintes filtros: idiomas inglês e português, e artigos publicados entre 1º de janeiro de 2000 e 31 de dezembro de 2013.
As buscas foram realizadas entre junho e julho de 2014. Para buscar artigos indisponíveis nas bases de dados listadas anteriormente, foram pesquisadas a Biblioteca Virtual de Saúde (BVS), por meio do portal da Biblioteca Regional de Medicina (BIREME), e, nos casos de teses e dissertações, o banco de teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Os resultados dos artigos selecionados foram categorizados a partir do método da análise de conteúdo20. Para o processo de categorização, os 28 artigos foram lidos novamente, destacando-se trechos que indicavam benefícios da arte para as trajetórias de pessoas com transtornos mentais. Dos trechos escolhidos, foram extraídos significados que sintetizassem a natureza dos efeitos relatados e que foram então agrupados de acordo com o tema ao qual se referiam. Desse modo, foram construídas categorias de análise, que formaram a base da análise realizada pela presente revisão.
Vinte e oito artigos foram revisados. O processo de seleção de artigos pode ser visualizado na Figura 1.
Entre os estudos incluídos na presente revisão (Tabela 1), mais da metade (15) consistiu em trabalhos exploratórios de natureza qualitativa, nove artigos eram relatos de experiência e os demais artigos (quatro) eram relatos ou séries de casos.
Tabela 1 Caracterização dos artigos selecionados quanto ao ano, autor, país de origem, modalidade artística investigada, modo de desenvolvimento da atividade, efeitos descritos e modo de avaliação dos efeitos
Autor e país | Modalidade artística predominante | Atividade desenvolvida individualmente ou em grupo? | Efeitos relatados | Leva em conta a perspectiva dos usuários na avaliação dos efeitos? |
---|---|---|---|---|
Avrahami21/ Israel | Artes plásticas | Individualmente | Expressividade, revisão da identidade, empoderamento, reconquista da esperança e concretização de planos | Sim |
Camargo et al.22/ Brasil | Artes plásticas | Em grupo | Expressividade e revisão da identidade | Sim |
Clark23/ Austrália | Poesia | Não determinado | Expressividade e minimização de aspectos negativos da doença mental | Sim |
Coqueiro et al.24/ Brasil | Artes plásticas | Em grupo | Revisão da identidade e minimização de aspectos negativos da doença mental | Não especificado |
Giles et al.25/ Canadá | Não determinado | Em grupo | Revisão da identidade, empoderamento, sociabilidade, minimização de aspectos negativos da doença mental e sociabilidade | Sim |
Galvanese et al.1/ Brasil | Artes plásticas | Em grupo | Revisão da identidade, ampliação de competências pessoais, empoderamento, reconquista da esperança e sociabilidade | Não |
Glaister26/ Estados Unidos | Artes plásticas | Individualmente | Revisão da identidade e empoderamento | Sim |
Goodsmith27/ Estados Unidos | Fotografia | Em grupo | Revisão da identidade, ampliação de competências pessoais, empoderamento, reconquista da esperança, sociabilidade e minimização de aspectos negativos da doença mental | Sim |
Howells e Zelnik28/ Estados Unidos | Artes plásticas | Em grupo | Revisão da identidade, concretização de planos, sociabilidade e minimização de aspectos negativos da doença mental | Sim |
Karlsson e Malmqvist29/ Suécia | Não determinado | Individualmente | Expressividade, revisão da identidade, ampliação de competências pessoais, empoderamento e minimização de aspectos negativos da doença mental | Sim |
Lamont et al.30/ Austrália | Artes plásticas | Individualmente | Expressividade e minimização de aspectos negativos da doença mental | Sim |
Lloyd et al.4/ Austrália | Artes plásticas | Em grupo | Expressividade, revisão da identidade, ampliação de competências pessoais, empoderamento, reconquista da esperança, concretização de planos, sociabilidade e minimização de aspectos negativos da doença mental | Sim |
Makin e Gask31/ Reino Unido | Artes plásticas | Em grupo | Expressividade, ampliação de competências pessoais, empoderamento, reconquista da esperança, concretização de planos, sociabilidade e minimização de aspectos negativos da doença mental | Sim |
Margrove et al.32/ Reino Unido | Artes plásticas | Em grupo | Expressividade, revisão da identidade, ampliação de competências pessoais, empoderamento e sociabilidade | Não |
Monaghan33/ Austrália | Não determinado | Individualmente | Expressividade, revisão da identidade, empoderamento e concretização de planos | Sim |
O'Donovan34/ Austrália | Teatro | Em grupo | Ampliação de competências pessoais, empoderamento, concretização de planos e sociabilidade | Sim |
Perry et al.35/ Reino Unido | Não determinado | Em grupo | Empoderamento, sociabilidade e minimização de aspectos negativos da doença mental | Sim |
Rafieyan e Ries36/ Estados Unidos | Música | Individualmente | Expressividade e minimização de aspectos negativos da doença mental | Não determinado |
Ribeiro37/ Brasil | Não determinado | Em grupo | Empoderamento, reconquista da esperança, concretização de planos e sociabilidade |
Não determinado |
Spandler et al.38/ Reino Unido | Não determinado | Em grupo | Revisão da identidade, ampliação de competências pessoais, empoderamento, reconquista da esperança, concretização de planos, sociabilidade e minimização de aspectos negativos da doença mental | Sim |
Stacey e Stickley39/ Reino Unido | Não determinado | Não especificado | Expressividade, empoderamento e sociabilidade | Sim |
Stickley e Hui40-42/ Reino Unido | Não determinado | Em grupo | Expressividade, ampliação de competências pessoais, empoderamento, reconquista da esperança, sociabilidade e minimização de aspectos negativos da doença mental | Sim |
Stickley et al.43/ Reino Unido | Não determinado | Em grupo | Expressividade, revisão da identidade, reconquista da esperança, sociabilidade e minimização de aspectos negativos da doença mental | Sim |
Stickley e Hui40-42/ Reino Unido | Não determinado | Em grupo | Revisão da identidade, ampliação de competências pessoais, empoderamento, reconquista da esperança, concretização de planos, sociabilidade e minimização de aspectos negativos da doença mental | Sim |
Stickley e Hui40-42/ Reino Unido | Não determinado | Em grupo | Expressividade, ampliação de competências pessoais, empoderamento, reconquista da esperança, concretização de planos, sociabilidade e minimização de aspectos negativos da doença mental | Não |
Tavares44/ Brasil | Não especificado | Em grupo | Expressividade, revisão da identidade e empoderamento | Não |
Teglbjaerg45/ Dinamarca | Artes plásticas | Em grupo | Expressividade, revisão da identidade, empoderamento, sociabilidade e minimização de aspectos negativos da doença mental | Sim |
Van Lith et al.46/ Austrália | Artes plásticas | Em grupo | Expressividade, ampliação de competências pessoais, empoderamento, reconquista da esperança, concretização de planos, sociabilidade e minimização de aspectos negativos da doença mental | Sim |
Os métodos de amostragem e critérios de elegibilidade para a participação nos estudos não foram descritos em todos os artigos. Houve extensa variabilidade no modo de caracterizar as populações estudadas. Apenas 10 dos artigos revisados especificaram os diagnósticos psiquiátricos dos participantes da pesquisa, que incluíram: depressão maior unipolar, transtorno bipolar, esquizofrenia, transtornos alimentares, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno de estresse pós-traumático e transtornos de personalidade. Outras características apresentadas pelos estudos foram sexo dos participantes (em 19 artigos), idade (em 11 artigos) e etnia (em cinco artigos).
As modalidades artísticas e o número de artigos em que elas foram relatadas como predominantes entre as atividades realizadas podem ser vistos na Tabela 2. Nota-se um predomínio pelas artes plásticas nas investigações. A maioria dos artigos investigou atividades artísticas desenvolvidas na comunidade (21 artigos) e em grupo (22 artigos).
Tabela 2 Modalidades artísticas e suas frequências nos artigos
Modalidade artística | Número de artigos em que foi predominante |
---|---|
Artes plásticas | 12 |
Música | 1 |
Teatro | 1 |
Poesia | 1 |
Fotografia | 1 |
Não determinada | 12 |
Nos estudos revisados, houve uma heterogeneidade de metodologias utilizadas para avaliar os resultados (Tabela 3). A mais frequente nos artigos foi o uso de entrevistas, utilizada em 16 estudos. Os artigos descreveram entrevistas do tipo aberta, semiestruturada e estruturada, com diferentes atores do processo. Foram ouvidos: portadores de transtornos mentais, sujeitos que conduziram as oficinas de produção artística (profissionais de saúde ou artistas profissionais) e profissionais de saúde que encaminharam portadores de transtornos mentais para programas de produção artística. A maioria dos artigos (21) levou em consideração a perspectiva dos usuários na avaliação dos efeitos investigados. Nos estudos que utilizaram entrevistas, predominou-se a avaliação pontual de resultados, com entrevistas realizadas em uma única ocasião.
Tabela 3 Metodologias utilizadas nos artigos revisados
Metodologia | Frequência nos artigos |
---|---|
Entrevistas formais Com usuários Com profissionais que conduziram as práticas Com profissionais que conduziram as práticas e com usuários Com profissionais que recomendaram as práticas |
16 11 2 2 1 |
Análise do processo criativo | 4 |
Narrativas pessoais | 3 |
Etnografia | 1 |
Outros | 1 |
Não determinado | 3 |
Todos os artigos selecionados descreveram efeitos terapêuticos da produção artística para a reabilitação psicossocial de portadores de transtornos mentais. Os efeitos benéficos destacados pelos artigos foram agrupados em oito categorias, construídas a partir de uma análise de conteúdo dos resultados encontrados: expressividade, revisão da identidade, ampliação de competências pessoais, empoderamento, reconquista da esperança, concretização de planos, sociabilidade e minimização de aspectos negativos da doença mental. As categorias e o número de artigos em que elas foram descritas podem ser vistos na Figura 2. Além disso, dois artigos apontaram efeitos negativos das práticas.
Na categoria empoderamento, foram agrupadas as repercussões associadas à promoção da autonomia do usuário e ao protagonismo deste na própria vida e em sua trajetória de recovery, dentre as quais: aumento da autoestima e do valor próprio4,25,31,32,35,40,44, confiança na própria capacidade de resolução de problemas26,31,32,40-42,44,45 e desenvolvimento de estratégias próprias para enfrentamento da doença4,32,38. Ademais, alguns usuários afirmaram que passaram a se sentir no controle da própria vida4,46 e viram a produção artística como algo necessário para lidar com as limitações impostas pela doença4. Entre as explicações propostas para os efeitos observados, estiveram a convivência com pessoas que enfrentavam as mesmas dificuldades35 e a percepção do usuário de que ele foi capaz de realizar algo que não conseguia fazer antes4,38,39.
Na categoria sociabilidade, descreveram-se a interação e a formação de vínculo entre os usuários1,41,45, que permitiram o compartilhamento de ideias e de experiências1, e geraram oportunidades para conhecer pessoas com experiências similares27,31. Destacaram-se o desenvolvimento de habilidades de comunicação, com diminuição da timidez e aumento da confiança4, e o surgimento de um senso de pertencimento social, uma vez que os usuários passaram a se sentir socialmente aceitos, incluídos e parte da comunidade40,42,45. A criação de uma cultura tolerante no grupo de atividades artísticas28 e a vivência em um ambiente seguro e não competitivo31 foram alguns dos mecanismos apontados para a obtenção dos efeitos.
A categoria minimização de aspectos negativos da doença mental contempla a vivência de dificuldades e de angústias de modo menos sofrido pelo portador de transtorno psíquico: a minimização de sentimentos e comportamentos negativos, como agressividade, agitação, ansiedade e pensamento paranoico24,29,30,36,43,45,46; o relaxamento a partir da atividade31,38,40-43; a diminuição do isolamento físico e psicológico27,28,35. Foram descritos ainda a amenização de comportamentos de automutilação38 e a diminuição do número de hospitalizações dos usuários4. Segundo os estudos, contribuíram para esses efeitos a intensa imersão nas atividades31,38,41, que permitiu a distração de dificuldades e de sentimentos negativos29,30, e o fato de que, durante as intervenções, deu-se mais ênfase às forças do que aos defeitos dos sujeitos29.
Na categoria expressividade, os efeitos mais destacados foram a expressão de memórias e de sentimentos negativos ou opressivos21,23,30,32,33 e a menor dificuldade para falar de si, usando as obras produzidas como facilitadoras22,30,32,40-45. Os benefícios conquistados facilitaram a comunicação entre paciente e equipe de saúde30,36,44, com melhora do vínculo entre usuários e profissionais, maior entendimento das necessidades do paciente e construção de um plano terapêutico mais efetivo30.
A autodescoberta4,24,27,32,42,45, o desenvolvimento de identidades renovadas, nas quais os usuários não eram definidos por sua doença mental38, e o processamento e ressignificação de experiências passadas25,29,32,45 foram alguns dos benefícios da categoria revisão da identidade. Alguns usuários passaram a se ver como artistas, o que contribuiu para a mudança do modo como se relacionavam com a comunidade e para a reconstrução de suas vidas28,38. Os efeitos foram atribuídos ao reconhecimento das conquistas dos usuários pelos pares, por profissionais e pela comunidade, com a exibição de obras ao público desempenhando um papel importante no processo28,38.
Na categoria reconquista da esperança, destacaram-se a renovação da esperança no futuro31,38,40,43,46, a vontade de crescer e avançar na recuperação46, e o desenvolvimento de um senso de propósito na vida a partir da arte4,38,42,46.
No entanto, dois artigos descreveram, de forma pontual, efeitos negativos da arte para a reabilitação dos sujeitos: uma percepção negativa da autoimagem35 e as frustrações ligadas ao engajamento com produção artística, gerando raiva e isolamento43.
A presente revisão investigou os efeitos benéficos da produção de arte para a reabilitação psicossocial de pessoas com transtornos mentais, analisando os resultados à luz do conceito de recovery. Foram demonstrados benefícios para diversos aspectos do processo de reabilitação desses sujeitos, embora as categorias tenham variado quanto à frequência com que surgiram nos artigos e os benefícios tenham sido descritos com graus variados de intensidade.
A categoria de empoderamento foi a mais frequente nos estudos revisados e contemplou a aquisição da habilidade de entender e gerir a própria doença, a recuperação da possibilidade de tomar decisões e uma retomada do controle sobre a própria vida, o que se correlaciona com pontos-chave do conceito de recovery, como a promoção da autonomia e a construção de um autocuidado3. A interação com a comunidade foi um dos principais aspectos apontados como o responsável pela obtenção de efeitos nessa categoria, sugerindo que essa convivência é de fundamental importância para o processo de empoderamento do portador de transtorno mental.
Quanto à sociabilidade, observaram-se a reconstrução e a reconfiguração da rede social dos indivíduos, englobando a melhora das habilidades de relacionamento e a produção de vínculo, com consequente ampliação de suas redes sociais. Esses efeitos contribuem para a reinserção social do usuário, uma meta preconizada com ênfase pelo recovery, e são extremamente relevantes, uma vez que vulnerabilidade social é uma condição frequente entre portadores de transtornos mentais graves47. Em minimização de aspectos negativos da doença mental, foram descritos tanto remissão de sintomas como vivência da doença de modo menos sofrido pelo sujeito, o que atende a princípios fundamentais do recovery3.
Entre as explicações para a obtenção dos efeitos, destacou-se a formação de um “ambiente terapêutico” durante as atividades, que envolveu suporte mútuo entre os participantes27,40, atmosfera segura e tolerante28,35, e convivência em um grupo compreensivo46.
A diversidade dos benefícios descritos e a magnitude de alguns dos efeitos encontrados corroboram o valor que práticas de cuidado não médicas podem desempenhar no cuidado em saúde mental. No entanto, a descrição de efeitos negativos a partir das práticas impõe a necessidade de se investigar eventuais riscos dessas atividades. A durabilidade dos efeitos obtidos é outro aspecto importante a ser discutido, mas, devido ao predomínio de entrevistas pontuais nos artigos, não foi possível chegar a conclusões sobre esse tópico.
Quanto às limitações da presente revisão, não foi realizada uma avaliação da qualidade dos estudos antes de selecioná-los para o trabalho. Além disso, nos artigos revisados, a heterogeneidade marcante e a superficialidade na descrição dos participantes dificultaram a comparação entre os diferentes estudos. Isso impediu constatações sobre características do coletivo de sujeitos de pesquisa que poderiam ser relevantes, como o seu diagnóstico psiquiátrico, idade, sexo e uso prévio ou concomitante de outras terapias, mas, especialmente, aspectos relacionados à sua biografia, posição social, nível educacional e cultura, todos fundamentais na contextualização dos resultados.
É relevante a participação de portadores de transtornos mentais na discussão e na construção dos estudos28,29,39,42, o que indica a inclusão da perspectiva do usuário, cuja voz tem sido historicamente negligenciada no processo de produção de conhecimento em Psiquiatria. A vivência singular de cada indivíduo com o engajamento em práticas artísticas, evidente nos artigos revisados, corrobora a importância do conceito de recovery na orientação da assistência em saúde mental e a necessidade de se pensar o cuidado nesse campo de forma singularizada, levando em consideração a experiência dos atores envolvidos no processo.
Foram identificados diversos benefícios para a reabilitação psicossocial de portadores de transtornos mentais a partir da produção de arte. Embora os usuários tenham descrito, pontualmente, dificuldades e aspectos negativos das atividades, estas tiveram amplo respaldo dos atores envolvidos no processo, o que permite reconhecer um enorme potencial a ser explorado a partir da arte como recurso terapêutico na saúde mental.
Alguns aspectos relativos ao uso da arte como recurso terapêutico para portadores de transtornos mentais precisam ser mais estudados, como os mecanismos pelos quais a arte promove seus efeitos, a durabilidade dos benefícios proporcionados e os possíveis riscos oferecidos pelo engajamento dos sujeitos com essas práticas.