versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.32 no.9 Rio de Janeiro 2016 Epub 19-Set-2016
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00101315
The aim of this study was to assess the effectiveness of the National Strategy for Healthy Complementary Feeding (ENPACS) in improving complementary feeding in the first year of life in a Brazilian municipality (county). This was an impact evaluation study that enrolled 340 infants from 6 to 12 months of age, followed at primary healthcare units. The target outcomes were prevalence rates for the consumption of vegetables, legumes, fruits, and unhealthy foods, and the prevalence of foods with adequate consistency for age. Poisson regression showed that the strategy was associated with reductions of 32% in the consumption of sodas and/or industrialized juices, 35% of industrialized foods, and 5% of unhealthy foods. There was no increase in the consumption of fruits, legumes, vegetables, or foods with adequate consistency for age. In conclusion, the strategy's positive effect was partial, but it has the potential to help improve infant nutrition, based on its effectiveness in reducing the consumption of unhealthy foods.
Keywords: Program Evaluation; Supplementary Feeding; Infant Nutrition
El objetivo del presente estudio fue evaluar la efectividad de la Estrategia Nacional para la Alimentación Complementaria Saludable (ENPACS) en la mejoría de la alimentación complementaria, durante el primer año de vida en un municipio brasileño. Se trata de un estudio evaluativo de impacto, involucrando a 340 niños con edades entre 6 y 12 meses, con seguimiento en las Unidades Básicas de Salud. Los resultados evaluados fueron la prevalencia del consumo de verduras, legumbres, frutas y alimentos no saludables, y la prevalencia de alimentos con consistencia adecuada para la edad. La regresión de Poisson reveló que la ENPACS se asoció a una reducción de un 32% en el consumo de refrescos y/o zumo industrializado, 35% en el consumo de comidas industrializadas y 5% en el consumo de alimentos no saludables. No hubo aumento en el consumo de frutas, legumbres, verduras y alimentos con consistencia adecuada para la edad. Se concluye que el efecto positivo de la estrategia fue parcial, pero que tiene potencial de contribuir para la mejoría de la alimentación infantil, por su efectividad en la reducción del consumo de alimentos no saludables.
Palabras-clave: Evaluación de Programas y Proyectos de Salud; Alimentación Suplementaria; Nutrición del Lactante
Ter uma alimentação saudável nos primeiros anos de vida é fundamental, pois práticas alimentares inadequadas nesse período podem prejudicar a saúde da criança e deixar sequelas, como atraso no crescimento linear, dificuldades de ordem intelectual e maior chance de aparecimento de doenças crônicas não transmissíveis no futuro 1), (2), (3), (4), (5), (6. Além disso, é no início da vida que são formados os hábitos alimentares, os quais repercutem no estado nutricional e de saúde dos indivíduos por toda a sua existência 7), (8), (9), (10.
Assim como em muitas partes do mundo, sobretudo em países de rendas baixa e média 11), (12), (13), (14), (15, a alimentação da criança brasileira apresenta algumas características preocupantes. Dados oriundos da II Pesquisa de Prevalência de Aleitamento Materno nas Capitais Brasileiras e Distrito Federal16 mostraram que a introdução de água, chás e leite não-humano é muito precoce (13,8%; 15,3% e 17,8% das crianças menores de um mês recebiam esses líquidos, respectivamente), assim como a dos alimentos complementares (22% e 26% das crianças menores de 6 meses já consumiam comida salgada e frutas, respectivamente). Por outro lado, o consumo de alimentos saudáveis na faixa etária entre 6 e 9 meses foi baixo: 30,2% e 29,1% das crianças não haviam consumido frutas e verduras/legumes, respectivamente, no dia anterior ao inquérito. O consumo de alimentos considerados não saudáveis é alto segundo a última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 17: 60,8% das crianças menores de 2 anos de idade consomem biscoito, bolacha ou bolo, e 32,3% ingerem refrigerante ou suco artificial.
Outro aspecto preocupante é a inadequação da consistência da alimentação, sobretudo na Região Nordeste, onde quase a metade das crianças entre 6 e 8 meses recebe alimentos peneirados ou liquidificados 18. Uma consistência adequada dos alimentos desde o início da introdução alimentar é importante para o desenvolvimento da musculatura da face e para a mastigação. Além disso, refeições mais espessas e consistentes geralmente têm maior densidade energética, garantindo assim o aporte calórico para a criança 19.
Diante desse cenário, pode-se concluir que as práticas de alimentação complementar precisam ser melhoradas, havendo a necessidade de intervenções no sentido de promover hábitos alimentares saudáveis na infância 16. As estratégias de intervenção nutricional foram listadas entre as ações de prevenção mais efetivas para a redução da mortalidade em crianças menores de 5 anos. A promoção da alimentação complementar, a terceira entre as ações mais efetivas, tem o potencial de prevenir 587 mil mortes por ano, ou 6% de todos os óbitos nessa faixa etária 20.
Respaldado por pesquisas de âmbito nacional que apontam para a necessidade de se promover nutrição adequada às crianças nos primeiros anos de vida, o Ministério da Saúde lançou em 2010 a Estratégia Nacional para Alimentação Complementar Saudável (ENPACS), com o objetivo de incentivar a orientação da alimentação complementar como atividade de rotina nos serviços de saúde, contemplando a formação de hábitos alimentares saudáveis desde a infância, com a introdução da alimentação complementar em tempo oportuno e de qualidade, respeitando a identidade cultural e alimentar das diversas regiões brasileiras 21. Visando ao aprimoramento dessa iniciativa, em 2012 foi lançada a Estratégia Amamenta e Alimenta Brasil, resultado da integração entre a ENPACS e a Rede Amamenta Brasil 22, duas estratégias complementares.
Já existem alguns estudos de avaliação da Rede Amamenta Brasil, cujos resultados estão sendo úteis na implementação da Estratégia Amamenta e Alimenta Brasil 23), (24), (25. No entanto, até o momento, não há relatos de avaliação da ENPACS, tanto do seu processo de implementação quanto do seu impacto na qualidade da alimentação complementar das crianças atendidas nas unidades básicas de saúde (UBS) que aderiram a essa estratégia. Assim, o objetivo deste trabalho foi avaliar a efetividade da ENPACS na melhoria da qualidade da alimentação complementar no primeiro ano de vida em um município brasileiro de grande porte no Sul do Brasil.
Este estudo é parte de um projeto maior encomendado pelo Ministério da Saúde, com o objetivo de avaliar o impacto da Rede Amamenta Brasil nos indicadores de aleitamento materno no primeiro ano de vida em três municípios brasileiros: Dourados (Mato Grosso do Sul), Ribeirão Preto (São Paulo) e Porto Alegre (Rio Grande do Sul) 24.
O presente trabalho foi realizado somente no Município de Porto Alegre. Trata-se de um estudo avaliativo de impacto, com desenho quasi-experimental, controlado, conduzido com amostra representativa de crianças de 6-12 meses acompanhadas nas UBS da rede municipal de saúde. Os seguintes indicadores de qualidade da alimentação complementar foram selecionados como desfechos: prevalência do consumo de verduras, legumes, frutas e alimentos não saudáveis (refrigerante ou suco industrializado, alimentos adoçados com açúcar e/ou achocolatado, comida industrializada, bolacha/biscoito ou salgadinho) e prevalência do consumo de alimentos com consistência adequada para a idade. Para avaliar a adequação da consistência/preparo da alimentação, levou-se em consideração as características das refeições salgadas (almoço e jantar) oferecidas à criança no dia anterior à entrevista. A consistência foi considerada inadequada quando os alimentos eram liquidificados, passados em peneira ou sob a forma de caldos, em qualquer idade, ou quando crianças acima de 8 meses não recebiam alimentos em pedaços.
Tendo em vista os objetivos do estudo maior, foram selecionadas todas as seis UBS do Município de Porto Alegre certificadas na Rede Amamenta Brasil, mais seis unidades que realizaram oficinas da Rede, mas que no momento da pesquisa ainda não estavam certificadas, e ainda seis unidades que não aderiram à estratégia. Para a seleção das UBS foram considerados alguns critérios, como localização, número de crianças atendidas/mês e modelo de atenção (Estratégia Saúde da Família - ESF ou UBS tradicional), a fim de incluir no estudo UBS com características semelhantes.
Das 18 UBS selecionadas, 16 não haviam aderido à ENPACS, portanto, foram amostradas crianças destas UBS para fazer parte do grupo controle. As outras duas UBS, únicas da rede municipal de Porto Alegre que realizaram a oficina da ENPACS (UBS Paulo Viaro e a UBS Panorama) compuseram a amostra de crianças do grupo intervenção.
A exposição à ENPACS foi definida como a realização de uma oficina de trabalho com toda a equipe das unidades, realizada no ano de 2010, com duração de 6 horas, conduzida por dois tutores da estratégia. Por meio de atividades interativas e utilizando metodologia de educação crítico-reflexiva, essas oficinas abordavam os seguintes temas: a ENPACS e seus objetivos; habilidades de comunicação; os 10 passos para uma alimentação complementar saudável; e ações que podem ser implementadas na UBS em prol da alimentação saudável na infância.
As UBS frequentadas pelas mães/crianças dos dois grupos diferiram em algumas características. Cem por cento das equipes das UBS expostas à ENPACS (intervenção) contavam com agentes comunitários de saúde e 50% com pediatras, enquanto 81% e 19% das equipes das UBS controle, respectivamente, tinham esses profissionais. Além disso, as duas UBS do grupo intervenção eram certificadas pela Rede Amamenta Brasil, e apenas 25% das UBS controle tinham essa certificação.
A coleta de dados foi realizada entre 1º de novembro de 2012 e 21 de setembro de 2013. Entrevistadores treinados, todos profissionais da área da saúde, compareciam às UBS nos horários de atendimento às crianças. As mães ou cuidadores eram abordados na sala de espera das UBS, de acordo com a sua ordem de chegada para o atendimento (agendado ou por demanda espontânea), até que se completasse o número de crianças definido para cada faixa etária em cada unidade.
Após a verificação dos critérios de inclusão (crianças não adotadas, com idades entre 6 e 12 meses, que não tivessem doenças que impedissem ou dificultassem a amamentação, cujas mães não apresentassem infecção pelo HIV ou HTLV e/ou outras condições que contraindicassem a amamentação, e que faziam acompanhamento de saúde nas UBS incluídas no estudo), as mães ou responsáveis eram convidados a participar do estudo. Após a concordância e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, procedia-se à entrevista com a utilização de questionário estruturado, contendo perguntas relativas às características individuais da criança e da mãe, acompanhamento da mãe/bebê na UBS e alimentação da criança. Segundo a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para inquéritos populacionais 26, a pesquisa sobre o consumo de alimentos focalizou as últimas 24 horas (current status). Para efeito de padronização, pesquisou-se o consumo dos diferentes alimentos no dia anterior à entrevista. As mães ou responsáveis com dificuldades para compreender as perguntas da entrevista foram excluídas do estudo.
Em algumas UBS menores, em que os atendimentos a crianças na faixa etária estudada eram reduzidos, foi realizada busca ativa nos domicílios para a realização das entrevistas com as mães/cuidadores. Para isso, os entrevistadores realizavam levantamento das crianças atendidas pela UBS na faixa etária pretendida, utilizando os registros das unidades. A seleção dessas crianças foi feita de forma aleatória.
O cálculo do tamanho amostral do estudo maior previa uma amostra de 400 crianças menores de 1 ano para o Município de Porto Alegre, tomando-se por base um nível de 95% de confiança, poder do teste de 80%, relação entre expostos e não expostos à intervenção de 1:1 e aumento de 25% na prevalência de aleitamento materno exclusivo em menores de 6 meses, tendo como base a prevalência apontada pela II Pesquisa de Prevalência de Aleitamento Materno nas Capitais Brasileiras e Distrito Federal, de 2008 (40%) 16. Foi preestabelecido que essas crianças deveriam ser distribuídas igualmente em quatro faixas etárias: 0-2 meses; 3-5; 6-8; e 9-11 meses. Neste trabalho, o tamanho da amostra foi recalculado levando-se em conta as diferenças esperadas para os novos desfechos, isto é, um acréscimo de 15 pontos porcentuais na prevalência do consumo de verduras, legumes e frutas (de aproximadamente 70 16) para 85%). Assim, estimou-se uma amostra mínima de 133 crianças acompanhadas em UBS que aderiram à ENPACS (grupo intervenção) e 133 acompanhadas em UBS que não aderiram à ENPACS. Para que houvesse equilíbrio entre os grupos intervenção e controle com relação à idade das crianças, foi preestabelecido que a proporção de crianças em cada faixa etária, em meses, deveria ser semelhante entre os dois grupos, partindo da distribuição de idade do grupo controle, que foi o primeiro a ser finalizado.
Para o cálculo amostral e elaboração do banco de dados foi utilizado o programa Epi Info versão 3.5.1 (Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta, Estados Unidos), com dupla digitação e realização de posterior validação. O programa IBM SPSS versão 21.0 (IBM Corp., Armonk, Estados Unidos) foi usado para a análise dos dados. As variáveis contínuas foram expressas por meio de média e desvio padrão, e as categóricas por frequências absoluta e relativa. Foram aplicados os testes t de Student para a comparação de médias entre os grupos e o qui-quadrado de Pearson ou exato de Fisher para a comparação de proporções.
Para testar associações entre exposição (ENPACS) e desfechos, recorreu-se à regressão de Poisson com equações estimadas generalizadas (generalized estimating equations, GEE). Optou-se pelo modelo de regressão de Poisson por se tratar de um desfecho não raro. A GEE foi utilizada para controlar a influência das UBS, pois leva em consideração a dependência que existe entre os participantes que são atendidos em uma mesma unidade. Foram adicionadas no modelo algumas variáveis cujas prevalências diferiram entre os grupos (p < 0,2) e que poderiam influenciar os desfechos, tais como idade, cor da pele e escolaridade da mãe. Algumas diferenças nas características das UBS entre os dois grupos também foram consideradas no modelo, tais como presença de agente comunitário de saúde e de pediatra nas equipes das UBS, e certificação na Rede Amamenta Brasil.
A medida de efeito utilizada foi a razão de prevalência e seus respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%). O nível de significância adotado foi de 5% (p ≤ 0,05).
O estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre e do Instituto de Saúde de São Paulo.
O trabalho envolveu 340 crianças, sendo 153 do grupo intervenção, selecionadas nas duas UBS que aderiram à ENPACS, e 187 do grupo controle (cerca de 11 crianças por unidade), selecionadas nas 16 UBS restantes. Não houve recusas por parte das mães ou cuidadores em participar do estudo e não foram necessárias exclusões.
A Tabela 1 apresenta os dados sociodemográficos da amostra. Observa-se que os grupos foram semelhantes na maioria das variáveis, exceto escolaridade e cor da pele da mãe: o grupo controle apresentou proporção significativamente menor de mães com Ensino Fundamental completo e de cor branca.
Tabela 1: Caracterização sociodemográfica das crianças de 6 a 12 meses de idade e suas mães segundo grupo de alocação (intervenção, controle) no estudo. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, 2012-2013.
A Tabela 2 mostra as prevalências dos desfechos nos grupos intervenção e controle. Houve tendência ao menor consumo de alimentos considerados não saudáveis entre as crianças pertencentes ao grupo intervenção (p = 0.052).
Tabela 2: Comparação da prevalência do consumo de frutas, verduras, legumes, alimentos com consistência adequada e alimentos não saudáveis entre os grupos intervenção e controle. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, 2012-2013.
A intervenção esteve associada com menor consumo de refrigerante e/ou suco industrializado (RP ajustada = 0,68; IC95%: 0,59-0,80), comida industrializada (RP ajustada = 0,65; IC95%: 0,49-0,87) e alimentos não saudáveis em geral (RP ajustada = 0,95; IC95%: 0,91-0,99). No entanto, a intervenção não aumentou o consumo de frutas, legumes e verduras (Tabela 3).
Na população estudada, a estratégia resultou em menor consumo de alimentos considerados não saudáveis, sobretudo refrigerante/suco industrializado e comida industrializada. No entanto, não houve maior consumo de frutas, legumes, verduras e alimentos com consistência adequada para a idade, o que nos fez concluir que o efeito positivo da estratégia foi parcial.
A ENPACS, ao promover a motivação e qualificação dos profissionais de saúde em alimentação infantil, parte do pressuposto de que esses profissionais podem influenciar os pais/cuidadores no sentido de oferecer às crianças uma alimentação mais saudável. Os resultados do presente estudo corroboram esse pressuposto, pelo menos em parte. Outros trabalhos têm demonstrado a influência dos profissionais de saúde na melhoria da alimentação infantil 27), (28), (29), (30), (31), (32), (33), (34. Destacamos a metanálise realizada por Sunguya et al. 35, que comprovou que a capacitação em nutrição dos profissionais de saúde melhorou a ingestão de energia, a frequência alimentar e a diversidade da dieta de crianças de 6 a 24 meses. Os autores concluíram que profissionais de saúde capacitados em nutrição infantil oferecem às famílias uma fonte de informação acessível e confiável, sendo um importante ponto de partida para uma estratégia sustentável com o objetivo de melhorar o estado nutricional de crianças mais jovens. Além disso, já foi documentado que profissionais de saúde capacitados na estratégia Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância (AIDPI) são mais propensos a aconselhar os pais/cuidadores quanto à alimentação das crianças sadias e doentes, com melhoria das práticas alimentares 36), (37.
Sabe-se que o consumo elevado de alimentos não saudáveis na infância pode acarretar várias doenças, como deficiência de micronutrientes 38), (39, obesidade 40), (41, dislipidemias 42 e hipertensão arterial 43), (44), (45. Portanto, a redução do consumo desses alimentos traz benefícios para a saúde das crianças no curto e longo prazos. É possível que os profissionais de saúde, ao participarem da oficina da ENPACS, passaram a valorizar mais a alimentação infantil saudável e, consequentemente, a monitorar mais as práticas alimentares dos pacientes e repassar mais orientações aos pais/cuidadores nesse sentido. Vitolo et al. 46 já haviam demonstrado ser possível reduzir o consumo de guloseimas (chocolate, bala, refrigerante e salgadinho) por crianças do sul do Brasil (RR = 0,61; IC95%: 0,45-0,81; p = 0,001), por meio de intervenção educativa baseada nos Dez Passos para uma Alimentação Saudável, preconizados pelo Ministério da Saúde.
Além de evitar o consumo de alimentos não saudáveis, uma alimentação adequada implica consumir alimentos saudáveis. O incentivo ao consumo diário de frutas, verduras e legumes destaca-se dentre as recomendações de promoção da alimentação complementar saudável 19, pois o baixo consumo desses alimentos foi considerado um dos principais fatores determinantes de doenças crônicas não transmissíveis 47. Nesse último aspecto, a ENPACS não foi efetiva, pois as crianças dos grupos intervenção e controle apresentaram prevalências semelhantes no consumo dos alimentos saudáveis. O consumo de verduras e legumes foi baixo em ambos os grupos - um fenômeno que já havia sido constatado em pesquisas realizadas anteriormente 16), (48. Por outro lado, a prevalência do consumo de frutas foi maior quando comparada à apontada pela II Pesquisa de Prevalência de Aleitamento Materno nas Capitais Brasileiras e Distrito Federal16. É preciso levar em consideração que seria mais difícil obter impacto no consumo de frutas, que foi relativamente alto nos dois grupos, do que no consumo dos alimentos não saudáveis.
A maioria dos estudos testou a efetividade de intervenções nutricionais realizadas por profissionais da saúde em crianças tendo como desfechos principais a ingestão de energia, medidas antropométricas e frequência alimentar. Alguns poucos trabalhos investigaram o efeito de intervenções no consumo dos alimentos saudáveis (verduras, legumes e frutas), com resultados discrepantes 28), (32. Um deles, um ensaio clínico randomizado conduzido em oito comunidades na Índia 28, testou a eficácia de uma intervenção educacional realizada por profissionais de saúde após capacitação para promover práticas adequadas de alimentação complementar. A prevalência do consumo de legumes, verduras e frutas nas crianças do grupo intervenção e do grupo controle foram semelhantes aos 9 e aos 18 meses. O outro estudo foi realizado na China 32, com alguns resultados positivos: a intervenção aumentou o consumo de vegetais folhosos escuros aos 6, 9 e 12 meses, e o de frutas somente aos 6 meses. Diferentemente do presente estudo, os trabalhos citados previam, além da capacitação dos profissionais de saúde, sessões sistemáticas de aconselhamento nutricional.
Outro aspecto da alimentação infantil que deve ser considerado é sua consistência/preparação, que tem de ser adequada à idade. Neste estudo, exposição à ENPACS não alterou a prevalência, em torno de 20%, de inadequação no preparo/consistência dos alimentos. Desde o início da alimentação complementar recomenda-se que os alimentos sejam preparados sob a forma de purê ou amassados com o garfo, e nunca liquidificados ou peneirados e, na medida em que a criança vai crescendo, devem ser oferecidos alimentos sólidos, em pedaços, para que sejam mastigados 19. Isso estimula o desenvolvimento adequado da musculatura facial e da função mastigatória 49), (50. Além disso, a consistência da alimentação é importante para garantir a oferta de preparações com adequada densidade energética 19. Cabe ressaltar que não foram encontrados outros estudos cujo desfecho tenha sido o preparo/consistência dos alimentos na dieta de crianças.
Algumas hipóteses devem ser aventadas para explicar por que a efetividade da ENPACS ficou aquém das expectativas dos formuladores da estratégia. Em primeiro lugar, a ENPACS consistia em uma única oficina de 6 horas com os profissionais de saúde das UBS, não havendo sessões de reforço ou orientações quanto ao acompanhamento e apoio à efetivação das ações propostas nas oficinas. É possível que a intervenção em um único momento não tenha sido suficiente para mudar a postura dos profissionais quanto à orientação das mães em relação à alimentação de seus filhos. Além disso, a alta rotatividade dos profissionais de saúde nas UBS, com eventuais trocas dos que sofreram a intervenção por outros não expostos à ENPACS, pode ter contribuído para os resultados obtidos. Outros fatores inerentes ao Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil podem também ter influenciado os resultados, tais como carência de recursos materiais e humanos, excesso de tarefas dos profissionais e falta de um plano de carreira mais atraente que motive e fixe os profissionais em seus locais de trabalho. Finalmente, não se pode desconsiderar que o consumo de frutas foi alto nos dois grupos, o que torna mais difícil obter impacto de qualquer intervenção no seu consumo. Melhorar o que já é bom exige muito mais investimento do que melhorar uma situação ruim.
É preciso cautela na generalização dos resultados. Poucas UBS da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre foram expostas à ENPACS, o que aumenta a chance de influência de características das UBS e suas áreas de abrangência nos resultados. Para minimizar esse possível viés foi utilizada a análise multivariada com GEE, para controlar a influência das UBS, e foram adicionadas ao modelo algumas variáveis que poderiam influenciar os desfechos, tais como certas características maternas e das UBS com distribuição desigual entre os grupos.
Outra possível limitação pode ter sido o instrumento usado para a coleta das informações sobre a alimentação da criança, que não permitiu detalhar a frequência, variedade, qualidade e quantidade dos alimentos habitualmente consumidos. No entanto, por se tratar de um estudo comparativo, acreditamos que o método utilizado, recomendado pela OMS 26 para inquéritos populacionais, foi adequado aos objetivos do trabalho.
Não foram levadas em consideração eventuais capacitações dos profissionais de saúde em alimentação complementar saudável antes do estudo, tanto no nível individual quanto no coletivo. Isso pode ter ocorrido independentemente do tipo de UBS: se intervenção ou controle. Além disso, como não dispúnhamos de dados sobre o consumo alimentar das crianças antes da intervenção, não podemos descartar definitivamente a possiblidade de que as diferenças encontradas já estavam presentes antes da intervenção.
Por fim, é importante mencionar que a grande maioria das crianças incluídas no estudo foi captada nas UBS nos dias em que havia agenda de puericultura e, portanto, era saudável. No entanto, é possível que algumas crianças tivessem comparecido à UBS por estarem doentes e isso poderia ser fonte de viés, caso houvesse mais inclusões de crianças doentes em um dos grupos, haja vista as crianças não amamentadas ou amamentadas por menos tempo adoecerem mais. Não temos o registro dessas situações, porém, como se trata de um estudo controlado, provavelmente a proporção de crianças doentes que eventualmente foram incluídas no trabalho era semelhante nos dois grupos.
Concluindo, este estudo trouxe novos conhecimentos que podem auxiliar no fortalecimento de ações de promoção, proteção e apoio à alimentação infantil saudável. Tem o mérito de ser a primeira pesquisa a avaliar o efeito da ENPACS na melhoria da qualidade da alimentação complementar, apesar dessa estratégia ter sido implementada em grande escala, em nível nacional, em 2010. Além disso, mostrou que a estratégia, apesar das limitações apontadas, parece ter reduzido o consumo de alimentos considerados não saudáveis, sobretudo refrigerante/suco industrializado e comida industrializada, o que consideramos ser um importante passo em direção à adoção de práticas alimentares saudáveis. Mostrou também a necessidade de a estratégia ser aperfeiçoada, para que o seu impacto seja percebido também no maior consumo de frutas, legumes, verduras e de alimentos com consistência adequada para a idade. E, finalmente, reforça a importância de estudos de avaliação de impacto, sobretudo de novas estratégias, para que ajustes sejam feitos e, assim, otimizar seus efeitos.