versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.4 São Paulo out./dez. 2018 Epub 02-Ago-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0026
A Insuficiência Renal Crônica (IRC) é definida como a deterioração progressiva, lenta e irreversível da função renal para eliminar substâncias tóxicas produzidas pelo organismo que se acumulam no sangue. Sua prevalência tem aumentado na população mundial, sendo estimada entre 8% e 16%,1 além de apresentar altas taxas de mortalidade e de morbidade e significativos custos financeiros associados à forma crônica,2-6 que justificam adoção de medidas preventivas de Saúde Pública para o seu controle.
No Brasil, as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), como hipertensão arterial e diabetes mellitus, constituem-se como os agravos mais importantes para o desenvolvimento da IRC. Essas doenças são mais predominantes em faixas etárias entre 65 a 74 anos e acima de 75 anos, com prevalência de 52,7% e 55% para hipertensão arterial e de 19,9% e 19,6% para diabetes, respectivamente.7 Em estágios mais avançados da IRC, os pacientes podem depender de Terapias Renais Substitutivas (TRS), nas modalidades de hemodiálise ou diálise perintoneal, ou de transplantes.4,7-10 Em 2013, a hemodiálise correspondeu a 90% do tratamento de escolha de pacientes renais crônicos na América Latina, dos quais 43% encontravam-se no Brasil.10
Censos realizados pela Sociedade Brasileira de Nefrologia apontam aumento gradativo do número de pacientes renais crônicos no Brasil ao longo dos anos. Em 2016, o total estimado de pacientes em tratamento dialítico foi de 122.825, dos quais 113.122 foram submetidos à hemodiálise realizada em 747 Serviços de Diálise em atividade no país, dos quais 67% estão localizados na região Sudeste.7 Em 2015, o número de serviços de TRS cadastrados no estado de São Paulo correspondeu a 190 unidades.11 Estudos estimam aumento de 28,4% no número de pacientes submetidos a sessões semanais de hemodiálise, em 2017.5
A hemodiálise é um procedimento amplamente empregado no tratamento de deficiência renal, tanto na forma crônica quanto aguda, para normalizar o balanço eletrolítico e remover substâncias tóxicas do organismo por meio de solução de diálise composta principalmente por água. Em geral, o paciente é submetido a três sessões semanais de hemodiálise, sendo exposto a cerca de 120 litros de água tratada a cada sessão, o que torna essencial o controle da qualidade da água utilizada na produção da solução de diálise para evitar riscos adicionais à sobrevida do paciente.12 Portanto, a água utilizada em Serviços de Diálise deve seguir os requisitos mínimos quanto aos parâmetros químicos e microbiológicos definidos em legislação vigente (atualmente, a Resolução RDC n° 11/2014,13 que dispõe sobre os Requisitos de Boas Práticas de Funcionamento para os Serviços de Diálise).
Considerando o impacto do padrão de qualidade da água tratada nos Serviços de Diálise sobre a segurança dos pacientes em diálise no estado de São Paulo, foi instituído um programa estadual de monitoramento da qualidade da água tratada para diálise, em ação conjunta entre o Centro de Vigilância Sanitária do Estado (CVS), o Instituto Adolfo Lutz (IAL), Grupos de Vigilância Sanitária estadual (GVS) e dos municípios (VISAM), realizado de forma ininterrupta em todos os Serviços de Diálise ativos do estado de São Paulo.14
O presente estudo tem por objetivo apresentar o desenvolvimento do Programa de Monitoramento da Água Tratada para Diálise na avaliação sistemática dos padrões de qualidade da água tratada nos Serviços de Diálise ativos no estado de São Paulo, entre 2010 e 2016, considerando os parâmetros preconizados em legislação vigente à época e na orientação de tomadas de ações sanitárias para preservar a segurança dos pacientes submetidos a tratamentos dialíticos.
As amostras foram colhidas pelos Grupos de Vigilância Sanitária, estaduais e municipais, nos Serviços de Diálise do estado de São Paulo.
Foram utilizados os procedimentos para colheita, preservação, acondicionamento e transporte de amostras definidos no Manual para Orientação - Análise de Água no Instituto Adolfo Lutz,15 baseados nas recomendações da American Public Health Association,16 com a finalidade de harmonizar os procedimentos que cada uma das equipes de coletores adotou e garantir a confiabilidade dos resultados analíticos obtidos. Além do acesso ao Manual15 no sítio eletrônico do IAL, as equipes foram periodicamente capacitadas quanto aos procedimentos a serem utilizados na colheita de amostras no âmbito do Programa de Monitoramento.
O Instituto Adolfo Lutz também disponibilizou os frascos para a colheita, preparados de forma específica para cada ensaio realizado: frascos estéreis para análises microbiológicas; frascos despirogenizados para endotoxinas bacterianas; frascos descontaminados e sem adição de conservantes para análises físico-químicas; e descontaminados quimicamente, com adição de conservantes apropriados, para análises de contaminantes metálicos e mercúrio. Todos esses materiais foram disponibilizados aos Grupos de Vigilância Sanitária de acordo com cronograma previamente definido, em caixas isotérmicas contendo gelo reciclável.
Para fins de monitoramento, os pontos de colheita de amostras foram aqueles definidos nas legislações vigentes à época de cada rodada do Programa. Entre 2010 e fevereiro de 2014, as amostras foram colhidas no ponto do reuso para todos os ensaios, conforme definido na Resolução RDC nº 154/2004.17 A partir da publicação da Resolução RDC nº 11/2014,13 as amostras foram colhidas na saída do sistema de tratamento de água para os ensaios físico-químicos, determinação de metais e mercúrio, e no ponto de reuso para avaliação microbiológica e de endotoxinas bacterianas.
As ações laboratoriais do Programa de Monitoramento foram executadas no Instituto Adolfo Lutz, considerando os parâmetros definidos em legislação:
Análises microbiológicas: contagem de bactérias heterotróficas (semeadura em profundidade em Agar R2A, incubado a 36ºC, por 96 h) e pesquisa de coliformes totais (método de presença-ausência);
Endotoxinas bacterianas: Limulus Amebocyte Lysate (LAL) - método de gelificação;
Análises físico-químicas: nitrato (espectrofotometria na região ultravioleta-visível), sulfato (turbidimetria), fluoreto (potenciometria com eletrodo seletivo), condutividade e pH;
Determinação de metais: alumínio, antimônio, arsênio, bário, berílio, cádmio, cálcio, chumbo, cobre, cromo, magnésio, potássio, prata, selênio, sódio, tálio e zinco (espectrometria de massas com plasma de argônio indutivamente acoplado);
Determinação de mercúrio (espectrometria de absorção atômica com gerador de vapor frio e amalgamador).
Entre 2010 e 2014, o Programa de Monitoramento foi desenhado para uma colheita inicial em todos os Serviços de Diálise ativos no estado de São Paulo e outra colheita somente nos Serviços que apresentaram algum parâmetro insatisfatório na primeira colheita. A partir de 2015, o Programa de Monitoramento foi delineado para realizar até três colheitas além da inicial nas clínicas que apresentaram algum parâmetro insatisfatório na colheita anterior, como forma de avaliar a efetividade de ações corretivas realizadas pelos Serviços de Diálise para adequarem seus sistemas de tratamento de água.
A Tabela 1 apresenta o número de Serviços de Diálise do estado de São Paulo que foram avaliados entre 2010 e 2016, bem como a frequência de novas colheitas de amostras em função de ocorrência de algum parâmetro insatisfatório. No período de estudo, algumas clínicas não foram avaliadas, embora estivessem oficialmente ativas, devido à alteração de endereço ou ao encerramento de atividades não comunicados ao Sistema de Vigilância Sanitária, ou eventualmente por algum problema técnico verificado por equipes dos Grupos de Vigilância.
Tabela 1 Serviços de diálise avaliados no Programa de Monitoramento, entre 2010 e 2016
Ano de execução | Número de Serviços de Diálise | Total de amostras analisadas | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Ativos | Avaliados | |||||
Primeira colheita | Segunda colheita | Terceira colheita | Quarta colheita | |||
2010 | 175 | 169 | 33 | - | - | 202 |
2011 | 179 | 174 | 29 | - | - | 203 |
2012 | 172 | 168 | 28 | - | - | 196 |
2013 | 182 | 151 | 18 | - | - | 169 |
2014 | 189 | 183 | 18 | - | - | 402 |
2015 | 184 | 184 | 33 | 13 | 01 | 448 |
2016 | 193 | 193 | 41 | 17 | 09 | 494 |
A Tabela 2 apresenta a avaliação da qualidade da água tratada nos Serviços de Diálise efetuada no âmbito de programas de monitoramento realizados em outros estados do país.
Tabela 2 Monitoramento da qualidade de água tratada empregada em tratamento de diálise efetuado em diferentes estados do Brasil
Local do estudo | Ano de execução | 1Resultados insatisfatórios (%) | Referência | |
---|---|---|---|---|
São Paulo | 2007 | 49,0 | 14 | |
São Paulo | 2008 | 38,7 | 12 | |
2009 | 28,7 | |||
Rio de Janeiro | 2008 a 2010 | 27,3 | 18 | |
Distrito Federal | 2009 a 2010 | 21,8 | 19 | |
Bahia | 2012 | 31,0 | 20 | |
Rio Grande do Norte | 2012 a 2013 | 100,0 | 21 | |
Local de estudo | Ano de execução | 1Resultados insatisfatórios (%) | Presente estudo | |
Primeira colheita | Ano | |||
São Paulo | 2010 | 20,1 | 5,3 | |
2011 | 16,7 | 5,2 | ||
2012 | 17,3 | 6,6 | ||
2013 | 12,6 | 2,0 | ||
2014 | 20,2 | 14,2 | ||
2015 | 17,9 | 6,6 | ||
2016 | 27,5 | 9,9 |
1Pelo menos um parâmetro em desacordo com a legislação vigente.
A Figura 1 apresenta a distribuição dos Serviços de Diálise do estado de São Paulo que apresentaram sistemas de tratamento e distribuição de água em conformidade aos padrões definidos em legislação vigente.
Figura 1 Frequência de Serviços considerados adequados quanto à qualidade da água tratada para diálise, avaliados no âmbito do Programa Estadual de Monitoramento.
Considerando os resultados obtidos na primeira colheita de amostras de água tratada nos Serviços de Diálise do estado de São Paulo, a Figura 2 apresenta a incidência de parâmetros em desacordo com os limites máximos permitidos na legislação vigente à época, enquanto a Figura 3 apresenta a incidência de resultados insatisfatórios verificados entre a primeira e a última colheita de amostras do Programa.
Figura 2 Frequência de resultados insatisfatórios verificados na colheita inicial de amostras em função do parâmetro analítico avaliado.
O Programa Estadual de Monitoramento da Qualidade da Água Tratada para Diálise tem sido realizado de forma periódica para comprovar e avaliar o risco que a água tratada nos Serviços de Diálise do estado representa à Saúde Pública. O Programa também visa garantir aos pacientes o acesso à água em qualidade compatível com o tratamento dialítico e em conformidade com os padrões estabelecidos em legislações vigentes.
O estudo avaliou os resultados obtidos entre 2010 e 2016, entretanto os parâmetros de qualidade da água foram diferentes nos períodos de 2010 a 2013 e de 2015 a 2016, considerando a publicação da Resolução RDC 11/2014,13 que estabeleceu limites diferentes em relação à legislação anteriormente vigente17 para os parâmetros microbiológicos e de endotoxinas bacterianas. Ainda, considerando que houve um período de seis meses, entre março e setembro de 2014, para transição entre a legislação anterior e a vigente, os dados relacionados a esse ano foram excluídos da análise.
Entre 2010 e 2013, a porcentagem de Serviços de Diálise que apresentaram resultados satisfatórios na primeira colheita de amostras variou de 80%, em 2010, para 87%, em 2013, enquanto que no período seguinte, 2015 e 2016, houve decréscimo no número de clínicas em conformidade com os parâmetros de qualidade da água vigentes, de 77% em média (Figura 1).
A literatura reporta poucas pesquisas recentes12,14,18-21 que tratam da qualidade da água tratada e ofertada aos pacientes renais crônicos em tratamento no país (Tabela 2). Esses estudos apresentaram frequências superiores de resultados insatisfatórios em amostras de água tratada colhidas em seus Serviços de Diálise, quando comparadas ao presente estudo, mesmo quando considerados os resultados da primeira colheita do ano.
Sendo a primeira colheita como uma fotografia inicial do sistema de tratamento e distribuição de água tratada no Serviço de Diálise, cada rodada do Programa apresentou variações na incidência de parâmetros em desacordo com os limites máximos permitidos na legislação vigente à época (Figura 2). Endotoxinas bacterianas, condutividade e parâmetros físico-químicos foram aqueles com maior incidência de resultados insatisfatórios a cada rodada do Programa.
A piora na qualidade da água tratada nos Serviços de Diálise do estado verificada entre 2015 e 2016 em relação ao período anterior, de 2010 a 2013, está relacionada ao estabelecimento de limites mais restritivos na Resolução RDC nº 11/201413 para os parâmetros microbiológicos (de 200 UFC/mL para 100 UFC/mL) e endotoxinas bacterianas (de 2 UE/mL para 0,25 UE/mL) em relação à legislação anterior. Esses limites demandaram que os Serviços de Diálise efetuassem adequações em seus sistemas de tratamento e distribuição da água para atender aos novos padrões de qualidade.
Aliada à restrição da legislação vigente, o aumento na frequência de amostras com resultados insatisfatórios também coincidiu com a crise hídrica verificada no estado de São Paulo em função da estiagem entre 2014 e 2015,22 quando a escassez de água afetou os níveis dos mananciais e acarretou grave problema social, prejudicando a indústria, agricultura e o funcionamento de instituições básicas, como hospitais e escolas.22,23 A redução sustentada das reservas hídricas no estado, por um período de tempo prolongado, afetou milhões de pessoas e alterou a normalidade da rotina dos serviços e das infraestruturas de saúde.24 De acordo com o documento "Desastres Naturais e Saúde no Brasil",25 o baixo índice de chuvas pode afetar a quantidade e qualidade da água consumida pela população por meio da eutrofização e proliferação de algas dos mananciais de captação, por intrusão de água salgada em suprimentos de água doce subterrânea, por contaminação biológica e química acumulada no solo.24-25 Além disso, o remanejamento de água de diferentes regiões para compensar a queda dos reservatórios, a mistura de água de vários sistemas de abastecimento, o consumo do volume morto das represas, a intermitência no fornecimento da água e despressurização na rede de distribuição também podem ter comprometido a qualidade da água ao tornarem os sistemas de distribuição de água, bem como as fontes alternativas de abastecimento, mais vulneráveis à contaminação externa.26
A primeira colheita em cada rodada anual do Programa teve a finalidade de avaliar a adequação do sistema de tratamento e distribuição da água nos Serviços de Diálise, sendo as ações de vigilância realizadas em conformidade com o delineamento conceitual, técnico e operativo elaborado pelos níveis centrais do Instituto Adolfo Lutz e Centro de Vigilância Sanitária. Os resultados analíticos relativos a essa primeira colheita foram utilizados como ferramenta para tomadas de ações corretivas quando verificado ao menos um parâmetro em desacordo com o padrão de qualidade definido pela legislação vigente. A partir desse laudo analítico insatisfatório, o Grupo de Vigilância Sanitária, municipal ou estadual, responsável pela colheita da amostra retornou ao Serviço de Diálise para, em conjunto com a equipe clínica, traçarem estratégias para adequar o sistema de tratamento e distribuição da água e estabelecer condutas eficazes para a oferta de água com padrão de qualidade adequada ao tratamento dialítico.
Os dados obtidos neste estudo indicaram que, apesar do aumento na incidência de resultados insatisfatórios no período 2015-2016 para as primeiras colheitas de amostras do Programa, as ações sanitárias e condutas estabelecidas para adequar o sistema de tratamento e distribuição da água nos Serviços e, consequentemente, garantir a qualidade e segurança do tratamento dialítico, se mostraram eficazes, considerando que foram verificadas reduções na porcentagem de amostras insatisfatórias entre a primeira e a última colheita de amostras realizadas nos períodos entre 2010 e 2013 e entre 2015 e 2016, em todos os parâmetros avaliados (Figura 3). A contagem de bactérias heterotróficas reduziu 74% entre a primeira e a última colheita, no período de 2010 a 2013, e 84%, no período de 2015 a 2016. A detecção de endotoxinas bacterianas reduziu 69% no primeiro período e 77% no segundo período. Condutividade e parâmetros físico-químicos reduziram 88%, no primeiro período, e 100%, no segundo período. Os dados reforçam que o delineamento adotado no programa estadual de monitoramento, com novas colheitas após tomadas de ações conjuntas entre os órgãos do Sistema de Vigilância Sanitária e as equipes dos Serviços de Diálise do Estado, apresenta alta efetividade.
Considerando que a qualidade da água pode ter impacto sobre a morbidade e mortalidade dos pacientes renais crônicos submetidos a tratamentos dialíticos, os resultados deste estudo demonstram que o monitoramento sistemático por parte do Sistema de Vigilância Sanitária nos Serviços de Diálise do estado de São Paulo permite a melhoria contínua dos sistemas de tratamento e distribuição de água tratada por esses Serviços. Os resultados também reforçam a importância em manter o Programa de Monitoramento como uma ferramenta de apoio às tomadas de ações conjuntas entre o Sistema de Vigilância Sanitária e os Serviços de Saúde para aumentar a efetividade dos sistemas de tratamento e distribuição da água tratada nos Serviços e minimizar os riscos associados ao tratamento dialítico.