On-line version ISSN 1982-0194
Acta paul. enferm. vol.30 no.6 São Paulo Nov./Dec. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201700089
O transplante é considerado uma opção terapêutica para diversas patologias crônicas e incapacitantes que colocam em risco a vida de milhares de pessoas. Além de reabilitação, oportuniza a melhora na qualidade de vida e retorno às atividades pessoais e laborais.(1,2) Para que o transplante aconteça, fazse necessária a obtenção de órgãos saudáveis, geralmente provenientes de doadores falecidos.(3)
Diversos profissionais participam do processo de doação, principalmente os que atuam nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI) e setores de emergência, desempenhando importante papel na identificação dos potenciais doadores de órgãos e tecidos, abertura do protocolo de morte encefálica (ME), manutenção do potencial doador, notificação aos órgãos responsáveis e comunicação do diagnóstico aos familiares.(4)
No Brasil, a legislação vigente determina que a decisão sobre a doação de órgãos após a morte é dos familiares. Dessa forma, concluído o diagnóstico de ME e afastadas as contraindicações para a doação, solicita-se a presença da família para a confirmação do diagnóstico e lhe é oferecida pela Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (CIHDOTT) a possibilidade da doação.(2,5)
A presença de objetividade, clareza e simplicidade na informação transmitida ajuda os familiares do doador na tomada de decisão com autonomia.(6) Nessa perspectiva a família é considerada como elemento principal desse processo e deve ser informada e esclarecida sobre o quadro do seu ente querido, para que, no momento da decisão, possa fazê -la com independência. Todas essas fases denotam a complexidade do processo de doação de órgãos.
Apesar de sobressair no contexto mundial, o Brasil ainda enfrenta dificuldades na obtenção de órgãos. Em 2016, o país não atingiu a meta de doadores efetivos, que era de 15,1 por milhão de população (pmp) e ficou em 14,6 pmp, ainda, a taxa de notificação de potenciais doadores com ME cresce lentamente. Assim, terminou o ano com 34.542 pacientes ativos na lista de espera para transplantes, dos quais 2.534 pertenciam ao Estado do Paraná.(7)
Isto posto, é importante avaliar os resultados obtidos a fim de identificar as fases do processo que são eficientes e as que necessitam de aperfeiçoamento. Poucos estudos se destinam a verificar esses fatores que são primordiais para fornecer subsídios aos gestores e profissionais de saúde no planejamento de ações para melhoria no desempenho da doação de órgãos, com a finalidade de reduzir as filas de pessoas à espera de um transplante. Nesse sentido, a capacidade de transformar um paciente com ME num efetivo doador de órgãos é, atualmente, um indicador de qualidade deste processo.(8-10)
Dessa forma, este estudo objetivou verificar a efetividade do processo de doação de órgãos para transplantes no Estado do Paraná.
Estudo transversal realizado com dados dos relatórios de óbitos provenientes do Sistema Estadual de Transplantes do Estado do Paraná (SET-PR). O SET-PR é constituído por quatro unidades de Organização de Procura de Órgãos (OPO), sendo uma em cada Macrorregional: a Leste, com sede em Curitiba; a Norte, com sede em Londrina; a Oeste, com sede em Cascavel; e a Noroeste, com sede em Maringá.
Foram realizadas 3.872 notificações de potenciais doadores em ME ao SET-PR entre os anos de 2011 a 2016. Como critério de inclusão adotouse as notificações de óbitos de doadores elegíveis, ou seja, sem contraindicação clínica e com protocolo de ME concluído. Assim, a amostra deste estudo foi constituída por 2.600 doadores elegíveis de órgãos em ME.
A efetivação da doação foi considerada como variável dependente do estudo. As variáveis independentes constituíram-se nas relacionadas aos doadores elegíveis, que incluíram idade (<60 anos e >61 anos) e sexo (masculino e feminino); e relativas aos centros notificantes e às notificações: nível de atenção (ambulatorial, média e alta complexidade), tipo de estabelecimento (hospital geral, especializado e atenção ambulatorial), tipo de gestão (municipal, estadual e dupla), trimestre da notificação (1°, 2°, 3° e 4° trimestre), ano da notificação (2011, 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016) e Macrorregional de saúde do Estado (Norte, Noroeste, Leste e Oeste).
Os dados foram analisados no programa Statistical Package for the Social Science (SPSS), versão 20.0. Para descrição das variáveis quantitativas foram utilizadas as frequências absolutas e relativas. Calculou-se odds ratio e a associação foi verificada pelo teste de Qui-Quadrado de Wald, adotando-se p<0,05 como significância estatística.
O desenvolvimento do estudo atendeu às normas nacionais e internacionais de ética em pesquisa envolvendo seres humanos, sob o número do Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE): 51707215.8.0000.5231.
O processo de doação de órgãos para transplante está esquematizado na figura 1. Constatou-se que, dos 2.600 doadores elegíveis, 1.267 se tornaram doadores efetivos (48,7%).
A chance de efetivação da doação foi significativamente maior entre os indivíduos com menos de 60 anos, do sexo masculino, cujos óbitos ocorreram nas Macrorregionais Leste e Oeste. Observou-se um aumento significativo no número de potenciais doadores e de doações efetivas com o avançar dos anos, um crescimento de 320,7% nos números absolutos e de 71,4% na proporção de efetivações, comparandose exclusivamente os anos de 2011 e 2016 (Tabela 1).
Tabela 1 Variáveis relacionadas ao processo de doação de órgãos para transplante
Variáveis | Doador Efetivo | p-value |
Odds Ratio (Intervalo de Confiança 95%) |
||
---|---|---|---|---|---|
Sim n(%) |
Não n(%) |
||||
Idade do doador elegível | |||||
≤60 anos | 1052(42,6) | 1420(57,4) | 1 | ||
≥61 anos | 215(33,2) | 432(66,8) | <0,001 | 0,672(0,560-0,806) | |
Sexo do doador elegível | |||||
Feminino | 478(45,5) | 572(54,5) | 1 | ||
Masculino | 788(50,9) | 761(49,1) | 0,001 | 1,273(1,100-1,473) | |
Nível de atenção notificante | |||||
Atenção ambulatorial | 10(58,8) | 7(41,2) | 1 | ||
Média complexidade | 191(48,8) | 200(51,2) | 0,269 | 0,243(0,572-1,483) | |
Alta complexidade | 1066(48,7) | 1125(51,3) | 0,137 | 0,698(0,813-1,050) | |
Tipo de estabelecimento notificante | |||||
Hospital Geral | 1254(48,7) | 1323(51,3) | 1 | ||
Hospital Especializado | 3(60,0) | 2(40,0) | 0,293 | 1,624(0,658-4,008) | |
Atenção Ambulatorial | 10(58,8) | 7(41,2) | 0,137 | 3,333(0,682-6,295) | |
Tipo de gestão do notificante | |||||
Municipal | 471(50,1) | 470(49,9) | 1 | ||
Estadual | 275(48,8) | 289(51,2) | 0,217 | 0,903(0,768-1,062) | |
Dupla | 521(47,6) | 573(52,4) | 0,751 | 0,970(0,803-1,171) | |
Trimestre da notificação | |||||
1°. Trimestre | 253(44,6) | 314(55,4) | 1 | ||
2°. Trimestre | 319(49,0) | 332(51,0) | 0,220 | 1,140(0,927-1,405) | |
3°. Trimestre | 364(51,6) | 342(48,4) | 0,862 | 1,001(0,805-1,199) | |
4°. Trimestre | 331(49,0) | 345(51,0) | 0,205 | 1,109(0,898-1,370) | |
Ano da notificação | |||||
2011 | 116(38,8) | 183(61,2) | 1 | ||
2012 | 151(40,8) | 219(59,2) | 0,010 | 1,419(1,086-1,855) | |
2013 | 195(41,0) | 281(59,0) | 0,001 | 1,513(1,188-1,927) | |
2014 | 172(41,1) | 246(58,9) | 0,010 | 1,344(1,072-1,684) | |
2015 | 261(54,6) | 217(45,4) | 0,018 | 1,328(1,049-1,681) | |
2016 | 372(66,5) | 187(33,5) | 0,019 | 1,149(1,030-1,418) | |
Macrorregional de saúde da notificação | |||||
Leste | 591(53,4) | 516(46,6) | 1 | ||
Oeste | 256(52,0) | 236(48,0) | <0,001 | 0,531(0,436-0,645) | |
Noroeste | 210(45,0) | 257(55,0) | <0,001 | 0,543(0,434-0,688) | |
Norte | 210(39,3) | 324(60,7) | 0,009 | 0,731(0,577-0,926) |
Entre os doadores efetivos, as causas de óbito foram o traumatismo cranioencefálico (TCE) (n=439;34,6%), seguido do acidente vascular encefálico (AVE) hemorrágico (n=342;27,0%), AVE isquêmico (n=109;8,6%), tumores cerebrais (n=6;0,5%) e as demais causas não foram identificadas (n=371;29,3%). Quanto à tipagem sanguínea do doador, prevaleceu o tipo O (n=573;45,2%), seguido por A (n=459;36,2%), B (n=144;11,4%), AB (n=47;3,7%) e o restante não foi indicado (n=44;3,5%)
As causas de óbito e sistema ABO estavam preenchidas apenas nos relatórios dos doadores efetivos, o que impossibilitou a associação dessas variáveis com a efetivação da doação entre os doadores elegíveis. Ainda como limitações do estudo, citam-se a ausência de especificação dos motivos em parte dos protocolos de ME não concluídos e das doações não realizadas, bem como não foram identificadas as razões referidas pelas famílias para não consentirem a doação.
Todavia este estudo verificou as fortalezas e fragilidades do processo de doação no Estado, bem como realizou uma análise sobre a efetivação da doação de órgãos. Esses achados fornecem subsídios à gestão na formulação de políticas públicas e no planejamento de ações para melhoria do processo de doação de órgãos e, assim, reduzir as listas espera por transplantes.
A parada cardiorrespiratória (PCR) torna inviável o processo de doação de órgãos sólidos e foi indicada, neste estudo, como a principal causa de não conclusão de protocolos de ME (13,1%). Estimase que 10% a 20% dos potenciais doadores evolua para PCR antes da retirada de seus órgãos,(11) corroborando a taxa obtida nesta investigação.
Todavia, a literatura indica que protocolos de ME com duração superior a 30 horas geralmente apresentam percentual maior de ocorrência de parada cardíaca.(12) Torna-se fundamental otimizar esse tempo, bem como instaurar adequadamente ações para a manutenção da estabilidade fisiológica do paciente e, por consequência, aumentando a oferta do número de doadores e a vitalidade dos órgãos potencialmente transplantáveis.(13) Em alguns países o doador elegível tem sido mantido por meio da circulação extracorpórea, que permite a preservação dos órgãos após a PCR e garante taxas de até 100% de doação, no entanto, esta prática não é amplamente difundida tanto pela questão ética controversa, quanto pela ausência de diretrizes e legislações para esses casos.(14,15)
Avaliando as causas da não elegibilidade para a doação de órgãos no Estado, o principal motivo identificado foi a sepse (5,2%). Sabe-se que a avaliação clínica e laboratorial do potencial doador de órgãos é fundamental para evitar a transmissão de patologias e garantir enxertos de qualidade.(16) Entretanto há processos fisiológicos semelhantes na sepse e na ME, o que pode induzir à um diagnóstico equivocado de sepse.(17) Ademais se o indivíduo estiver com estabilidade hemodinâmica e em uso de antimicrobianos, a sepse não inviabiliza a doação. Estudos de coorte com pacientes transplantados de órgãos de doadores com sepse identificaram que a transmissão não ocorreu entre aqueles que receberam antibioticoterapia adequada por pelo menos sete dias.(18-20) Por essa razão, as OPO paranaenses têm analisado criteriosamente os resultados clínicos dos pacientes junto aos profissionais das CIHDOTT a fim de verificar a viabilidade da doação para esses casos.(16)
Em relação aos motivos de não doação de órgãos entre os doadores elegíveis verificou-se que a recusa familiar ocupou o primeiro lugar, com 37,3%. A negativa familiar é o principal motivo para que um órgão não seja doado no Brasil e exterior, com taxas que variam de 5,7 a 41,4% em países europeus, e 27,5 a 48,9% em países latino-americanos,(21) sendo de 43% no Brasil ao final de 2016.(16)
Diversas são as motivações referidas pelas famílias para a recusa da doação, como o receio da mutilação do corpo, falta de compreensão da família em relação ao diagnóstico de ME, ou seja, os familiares têm dificuldades em entender que um corpo com batimentos cardíacos, respiração (com ajuda de aparelhos) e com temperatura dentre dos parâmetros de normalidade esteja morto.(22,23) À vista disso, é importante o acolhimento familiar durante o processo diagnóstico, esclarecendo todas as possíveis dúvidas, para que a família se sinta segura de sua decisão e a faça com conhecimento e autonomia. Também é comum o fato do falecido, quando em vida, ser contrário à doação ou o desconhecimento do seu desejo,(22,23) o que ressalta a importância do diálogo no seio familiar sobre o tema doação de órgãos, pois, quando se conhece o desejo do falecido, a tomada de decisão é mais fácil para o familiar.
Assim todas as fragilidades do processo relativas a manutenção inadequada do potencial doador, o adequado estabelecimento das contraindicações e o consentimento familiar denota a relevância da educação permanente dos profissionais envolvidos, pois quando eles estão capacitados e compreendem o processo e os fatores que influenciam no seu desfecho, conseguem intervir de forma apropriada para favorecer a doação de órgãos para transplantes.
Quanto a efetivação da doação demonstrou-se que foi maior no que sexo masculino e em idade mais jovem, resultados que se assemelham aos de outros estudos brasileiros.(24,25) Tal predominância pode ser justificada pelas prováveis mudanças ocorridas no perfil dos potenciais doadores, em que as causas externas (acidentes e violências) se destacam e ocorrem predominantemente entre homens, com destaque para o TCE como origem da ME.(17,23,25)
No Paraná as chances de efetivação da doação aumentaram significativamente a cada ano analisado, com aumento global de 320,7% nos números absolutos e de 71,4% na proporção de efetivações. Em 2016, o Estado apresentou uma taxa doadores efetivos de 30,9 pmp, enquanto que a brasileira foi de 14,6 pmp, o que coloca o Paraná em destaque no cenário nacional pela taxa semelhante à dos países com melhor desempenho no mundo.(7)
Tal performance pode estar relacionada às políticas do SET-PR que investe e estimula a formação contínua dos profissionais atuantes no processo de doação do Estado, pois considera esse aspecto a chave para alcançar um melhor desempenho.(26) Entende-se que, quanto mais capacitados os profissionais para trabalhar neste processo, maiores as chances de efetivação da doação, visto que a falta de conhecimento e despreparo da equipe na assistência ao potencial doador já foi indicada como um importante obstáculo do processo.(27)
Embora não tenha apresentado diferença significante, observou-se que o terceiro trimestre evidenciou maior percentual de doadores em comparação aos demais. Esse fato pode estar relacionado ao Dia Nacional da Doação de Órgãos e Tecidos, em 27 de setembro, e às campanhas de esclarecimento em relação à doação de órgãos que ocorrem no referido mês. Estudos indicaram que o marketing social é uma estratégia essencial para sensibilizar a sociedade quanto à doação de órgãos, pois propicia a reflexão de sua importância, promove o diálogo familiar a respeito da finitude da vida e favorece o consentimento da doação.(28,29)
Quanto a efetivação da doação entre as Macrorregionais do Estado, observou-se que a Oeste e a Leste apresentaram melhores resultados. Pressupõe-se que esse achado possa estar tanto relacionado ao número de CIHDOTT credenciadas, pois dos 90 estabelecimentos, 43 pertencem à Macrorregional Leste e 18 à Oeste, como pelo fato delas serem as mais populosas e com mais hospitais com melhor infraestrutura, o que constitui-se em um dos fatores essenciais para o processo da doação.(30) Ainda deve-se considerar que apesar de a SET-PR ter incentivado a formação profissional das equipes, as coordenações locais das OPO têm autonomia para definir como sua forma de trabalho, periodicidade de treinamentos e temas escolhidos.(16) Assim, a não homogeneidade das ações pode ter favorecido o desenvolvimento de algumas regiões, em detrimento de outras.
No período analisado, foi possível efetivar a doação de órgãos em parte dos doadores elegíveis em ME. As fragilidades mais relevantes do processo foram a parada cardiorrespiratória antes da conclusão do protocolo de ME, a sepse como principal razão de inelegibilidade e a recusa familiar para a doação entre aqueles sem contraindicação clínica. As chances de efetivação da doação foram significativamente maiores entre os óbitos com idade menor que 60 anos, pertencentes ao sexo masculino, cujas notificações ocorreram nas Macrorregionais Leste e Oeste do Estado. Destaca-se que o Paraná apresentou importante crescimento nos últimos seis anos no número de notificações e de doações de órgãos para transplante.