versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.83 no.5 São Paulo set./out. 2017
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2016.06.013
A rinossinusite crônica (RSC) é definida como um processo inflamatório crônico da mucosa do nariz e dos seios paranasais, com duração maior do que 12 semanas, sem resolução completa dos sintomas. 1,2 Essa inflamação crônica da mucosa pode ser causada por mecanismos fisiopatológicos distintos, o que faz com que o termo RSC seja um grande "guarda-chuva" que abriga diversas doenças diferentes que se apresentam com obstrução nasal, rinorreia, alterações do olfato e/ou dor facial.3
A irrigação nasal, apesar do crescente interesse nos últimos anos, 4,5 é um tratamento muito antigo, é praticada há séculos na Índia durante a ioga e desde o século 19 na medicina ocidental6 com diversas soluções, dentre elas a de cloreto de sódio, e diversos instrumentos, como seringas e frascos, usados na época para as lavagens nasais.7 Embora a maioria desses agentes não seja mais usada atualmente, a prática da irrigação nasal com solução salina permaneceu e ganhou popularidade ao longo do século 20, é considerada eficaz no controle da doença nasossinusal, além de ser uma pedra fundamental no cuidado pós-operatório.8
Várias técnicas e dispositivos de irrigação nasal têm sido desenvolvidos ao longo dos anos, com variações na pressão e no volume aplicado de solução. Os dispositivos de baixo volume aplicam em torno de 100 µL nos sprays até alguns mililitros para conta-gotas, atomizadores e nebulizadores. Já os sistemas de alto volume disponibilizam ao menos 50 mL, podem chegar até 240 mL, como nos squeeze bottles e neti pots. Principalmente após a cirurgia endoscópica nasossinusal (CENS), os sistemas de irrigação de alto volume permitem adequada distribuição da solução na cavidade nasal e placa olfatória e, principalmente, apresentam melhor penetração sinusal. Quanto maior o volume da irrigação, maior a distribuição para as cavidades sinusais. 9-11
Portanto, a função primordial da CENS na RSC, atualmente, passa a ser preparar os seios paranasais para receberem medicação tópica, principalmente na forma de irrigação.12 Fatores técnicos podem prejudicar a adequada distribuição da irrigação, como sinéquias, principalmente entre a concha média (CM) e a parede lateral do nariz,13 pois normalmente a concha média é mobilizada e, não raramente, instabilizada durante o ato cirúrgico, o que pode levar à sua lateralização e/ou adesão. 13-15
A controvérsia entre preservar ou remover a CM é tão antiga quanto a história da CENS. Aqueles que condenam a ressecção da CM levam em consideração a alteração da função nasal, o risco de RSC frontal, a perda de um importante marco anatômico para cirurgias revisionais, o risco de anosmia ou ainda a formação excessiva de tecido cicatricial. Já os que advogam a ressecção parcial ou total da CM acreditam em benefícios nos cuidados pós-operatórios, diminuição de sinéquias e maior acessibilidade aos seios. 16-18 Uma abordagem intermediária a essas duas vertentes inclui o uso de dispositivos espaçadores de meato médio ou ainda a sutura das conchas médias ao septo nasal. 14,15
No Brasil, não há dispositivos à venda que apliquem altos volumes de solução com pressão, portanto a realidade local é de uso de seringas para a aplicação das soluções com corticosteroide.19 Porém, não há evidência de que essa modalidade de aplicação seja similar às técnicas já descritas, nem há evidência sobre a influência da concha média nessa modalidade de terapia tópica. Portanto, o objetivo deste estudo foi averiguar a eficácia da terapia tópica nasossinusal com seringa e a influência da concha nasal média nesse processo.
Trata-se de um estudo de intervenção em modelo de dissecção nasossinusal, no qual foram testadas três intervenções distintas de terapia tópica em dois grupos específicos de posição da concha média.
Foram usadas três unidades do modelo de treinamento de cirurgia endoscópica nasossinusal (S.I.M.O.N.T.) produzido pela empresa Pro Delphos® (Recife, PE, Brasil) e um mesmo cirurgião otorrinolaringologista (L.L.B.F.) fez dissecção cirúrgica padronizada (fronto-esfeno-maxilo-etmoidectomia) em ambas as fossas nasais (seis dissecadas). Todos os três modelos receberam, além da dissecção cirúrgica padronizada, dois tratamentos sequenciais da concha média, que corresponderam à divisão em dois grupos: inicialmente, a concha média foi mantida em sua posição habitual após a dissecção e correspondeu ao grupo concha média normal (fig. 1A). Num segundo momento, as conchas médias foram suturadas entre si com um ponto único que transfixava o septo nasal, com o uso de fio de nylon 3-0 (fig. 1B) e foi chamado de grupo concha média suturada.
Figura 1 Modelo após dissecção padronizada. A, Concha média mantida sem tratamento após dissecção. B, Concha média suturada ao septo após dissecção.
Em cada modelo foram feitas as três intervenções de terapia tópica. A solução de lavagem foi preparada com a diluição de 10 gotas de corante alimentar azul em 500 mL de água. Um único examinador fez todas as intervenções de terapia tópica, com o modelo S.I.M.O.N.T. em posição ortostática, para simular flexão anterior do pescoço de cerca de 30° (fig. 2). A primeira intervenção consistiu em quatro atomizações com spray nasal em cada narina, que correspondeu a 0,2 mL de solução por narina, e foi chamada de intervenção spray. Na segunda, foi usada seringa de 60 mL com bico cateter (Injex, Ourinhos, SP, Brasil), todo esse volume foi injetado em uma só aplicação sob pressão em cada narina, foi chamada de intervenção seringa. E a última intervenção foi feita com um frasco (squeeze bottle) de terapia tópica de alto volume e alta pressão de 240 mL (Sinus Rinse, Neilmed Pharmaceuticals, Inc., Santa Rosa, Califórnia, EUA), com metade desse volume injetado em uma só aplicação sob pressão em cada narina, intervenção chamada de squeeze.
Figura 2 Terapia tópica de irrigação com seringa feita em posição ortostática, simula leve flexão anterior da cabeça (30°).
Após cada intervenção, um endoscópio rígido de 30°, conectado a um sistema de gravação com câmera e fonte de luz, foi introduzido nas fossas nasais, foram capturadas imagens endoscópicas dos seios maxilares, etmoidais, frontais e esfenoidais, sempre com o cuidado de não permitir a identificação do tratamento feito na concha média. Após o registro, o modelo foi lavado com água corrente e aspirado para assegurar a remoção de todo o corante usado. Portanto, inicialmente, foram feitas as três intervenções nos três modelos com a concha média normal; depois, as conchas médias dos três modelos foram suturadas e novamente foram feitas as três intervenções nos três modelos.
Foi capturada uma imagem de cada seio, para cada intervenção, em cada grupo de CM, total de 144 imagens (1 imagem × 3 intervenções × 2 grupos de CM × 4 seios × 6 lados), colocadas em uma apresentação de PowerPoint® e numeradas de 1 a 144, sem qualquer indicação do grupo de concha média ou da intervenção de terapia tópica feita.
As imagens foram classificadas de acordo com a quantidade de volume residual em uma escala semiquantitativa. As notas que poderiam ser atribuídas a cada seio foram: 0 (nenhum líquido na cavidade), 1 (pouca quantidade de líquido na cavidade), 2 (moderada quantidade de líquido na cavidade) e 3 (grande quantidade de líquido na cavidade). Todas as imagens foram analisadas por dez avaliadores, que eram médicos otorrinolaringologistas treinados e que não estavam envolvidos nas terapias tópicas ou ainda na digitalização das imagens, total de 1.440 análises. Para padronizar a avaliação, os autores apresentaram previamente aos avaliadores exemplos do que consideravam grande quantidade de líquido em cada um dos seios (fig. 3 A a D). Os escores 0 e 1 foram considerados penetração ruim aos seios, enquanto que os escores 2 e 3 foram considerados penetração boa.
Figura 3 Exemplos de grande quantidade de líquido nos seios. A, Seio maxilar esquerdo; B, Seio etmoidal direito; C, Seio frontal direito; D, Seio esfenoidal esquerdo.
A análise estatística consistiu no teste de qui-quadrado (ou exato de Fisher, quando necessário), considerando variáveis categóricas (penetração ruim ou boa) nos grupos estudados (spray vs. seringa vs. squeeze; ou concha média normal vs. concha média suturada). A análise da concordância interobservadores foi avaliada pelo teste Kappa. Para todos os testes estatísticos, foram considerados significantes valores de p menores do que 5%.
A concordância interobservador foi considerada grande (Kappa = 0,628; p < 0,001; 0,604-0,653).
As três intervenções mostraram-se distintas quanto à penetração sinusal (p < 0,0001). A intervenção seringa mostrou-se mais eficaz do que a spray (68% de avaliações boas para a penetração sinusal vs. 8%), porém inferior à squeeze (68 vs. 78%), conforme demonstrado na tabela 1.
Tabela 1 Penetração da terapia tópica em cada intervenção
Intervenção | Penetração da terapia tópica | Total | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Ruim | Boa | |||||
n | % | n | % | n | ||
Spray | 441 | 91,9% | 39 | 8,1% | 480 | |
Seringa | 152 | 31,7% | 328 | 68,3% | 480 | |
Squeeze | 104 | 21,7% | 376 | 78,3% | 480 | |
Total | 697 | 48,4% | 743 | 51,6% | 1440 |
n, número; %, porcentagem.Teste qui-quadrado: p < 0,0001.
Ao considerar o status da concha média, notou-se que quando a concha média estava suturada, as terapias tópicas apresentaram maior penetração do que quando a concha média estava em posição normal no pós-operatório, conforme demonstrado na tabela 2.
Tabela 2 Penetração da terapia tópica de acordo com a concha média
Concha média | Penetração da terapia tópica | Total | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Ruim | Boa | |||||
n | % | n | % | n | ||
Normal | 373 | 51,8% | 347 | 48,2% | 720 | |
Suturada | 324 | 45,0% | 396 | 55,0% | 720 | |
Total | 697 | 48,4% | 743 | 51,6% | 1440 |
n, número; %, porcentagem.Teste qui-quadrado: p = 0,01.
Considerando a penetração das terapias tópicas de acordo com o status da concha média, notou-se que na situação concha média normal foi mantido o padrão inicial de penetração squeeze > seringa > spray (tabela 3). Porém, ao considerar apenas a situação concha média suturada, a intervenção seringa mostrou-se similar à intervenção squeeze (76 vs. 80%, p = 0,27) (tabela 4).
Tabela 3 Penetração da terapia tópica com a concha média normal
Intervenção | Penetração da terapia tópica | Total | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Ruim | Boa | |||||
n | % | n | % | n | ||
Spray | 221 | 92,1% | 19 | 7,9% | 240 | |
Seringa | 95 | 39,6% | 145 | 60,4% | 240 | |
Squeeze | 57 | 23,8% | 183 | 76,3% | 240 | |
Total | 373 | 51,8% | 347 | 48,2% | 720 |
n, número; %, porcentagem.Teste qui-quadrado: spray vs. seringa vs. squeeze p < 0,0001; spray vs. seringa p < 0,0001; spray vs. squeeze p < 0,0001; seringa vs. squeeze p < 0,0001.
Tabela 4 Penetração da terapia tópica com a concha média suturada
Intervenção | Penetração da terapia tópica | Total | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Ruim | Boa | |||||
n | % | n | % | n | ||
Spray | 220 | 91,7% | 20 | 8,3% | 240 | |
Seringa | 57 | 23,8% | 183 | 76,3% | 240 | |
Squeeze | 47 | 19,6% | 193 | 80,4% | 240 | |
Total | 324 | 45,0% | 396 | 55,0% | 720 |
n, número; %, porcentagem.Teste qui-quadrado, spray vs. seringa vs. squeeze p < 0,0001; spray vs. seringa p < 0,0001; spray vs. squeeze p < 0,0001; seringa vs. squeeze p = 0,27.
O presente estudo demonstrou que a terapia tópica com seringa de 60 mL foi mais eficaz do que aquela com spray nasal, independentemente da situação da concha média, e tão eficaz quanto o squeeze bottle, quando administrada após a sutura das conchas médias. Para a realidade brasileira, este estudo mostrou-se fundamental, pois não há squeeze bottles disponíveis comercialmente nesse mercado, as terapias tópicas de irrigação são feitas rotineiramente com seringas. O único estudo brasileiro publicado até o momento com irrigação de corticosteroides foi administrado com seringas de 20 mL, mostrou que essa é realmente a realidade nacional.19
Não há muitos estudos de terapia tópica de irrigação com seringas. Snidvongs et al. (2008)20 compararam a penetração sinusal pós-terapia tópica com seringas de 50 mL (40 mL de solução) e com spray nasal (10 mL). Porém, diferentemente do presente estudo, em que foi avaliada a penetração sinusal pós-CENS, o estudo de Snidvongs et al. avaliou pacientes com RSC sem cirurgia prévia, comprovou que a penetração sinusal em seios não operados é desprezível, independentemente da técnica usada. Mesmo assim, o volume retido na cavidade nasal foi significantemente maior com a seringa de 50 mL.20
Abadie et al. (2012)10 fizeram estudo em cadáveres, todos após CENS, no qual compararam diversas técnicas de irrigação, divididas em irrigações de alto volume e sprays, em que observaram melhores resultados de penetração sinusal com as irrigações de alto volume, assim como o presente estudo. Das diversas técnicas de irrigação de alto volume, o squeeze bottle mostrou-se mais eficaz, foi o mesmo modelo usado em nosso estudo. A confirmação do presente estudo, de que a terapia tópica com a seringa é mais eficaz do que o spray, já é suficiente para justificar o seu uso rotineiro na realidade nacional, em casos de falha ao spray.19 Mais ainda, a constatação de que a seringa tem eficácia similar à do squeeze bottle (considerado a melhor técnica de terapia tópica pelo estudo de Abadie et al.)10 quando a concha média está suturada, é fundamental para confirmarmos que o uso da seringa pode ser considerado a melhor opção terapêutica aos pacientes com RSC em pós-operatório em nossa realidade.
É importante ressaltar o papel da cirurgia na terapia tópica nasossinusal. Harvey et al. (2009)21 demonstraram que o status dos óstios sinusais influencia na capacidade de penetração sinusal da terapia tópica. Com técnicas de alto volume, os autores demonstraram que seios operados apresentaram maior penetração do que controles sem doença, que por sua vez apresentaram maior penetração do que pacientes com RSC sem cirurgia prévia. Atualmente, um dos pilares da CENS é exatamente o de criar cavidades abertas, acessíveis à terapia tópica.22 O conceito é puramente mecânico, com necessidade de acesso físico da irrigação aos seios. Portanto, a concha média, pela sua posição central na cavidade nasal, poderia exercer papel na eficácia da terapia tópica. O presente estudo confirmou que a posição da concha média pode influenciar na penetração sinusal, a sutura transseptal das conchas médias facilita a penetração sinusal das terapias tópicas de uma maneira geral e ainda iguala a eficácia da seringa de 60 mL à do squeeze bottle. Portanto, faz-se necessário o tratamento da concha média, com o intuito de melhorar a eficácia da terapia tópica de irrigação com seringa.
Em modelos de dissecção nasossinusal operados, a terapia tópica de irrigação com seringa de 60 mL foi mais eficaz do que com spray nasal. O status da concha média mostrou-se fundamental e influenciou na terapia tópica. A irrigação com seringa foi tão eficaz quanto com squeeze bottle quando a concha média foi suturada ao septo nasal.