versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.27 no.6 São Paulo nov./dez. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20152015028
A comunicação adquire um papel cada vez mais importante no mercado profissional para os indivíduos que dependem dela como instrumento principal de trabalho. A voz é uma das formas essenciais no processo de comunicação, sendo que seu uso pode ser diferente de acordo com a profissão, na quantidade de uso e em sua emissão1 2. Além do fator orgânico, a voz também apresenta um conteúdo individual, com expressão de características emocionais, revelando a personalidade do indivíduo e identificando-o, na medida em que espelha a sua autoimagem e sua autoestima pessoal3. Dentre os profissionais da voz podemos citar: professores, recepcionistas, cantores, secretárias, operadores de telemarketing , advogados, pastores, profissionais de saúde, entre outros. Para todos estes, as alterações vocais podem representar uma limitação profissional, podendo acarretar faltas no trabalho, diminuição de rendimento, produtividade e até mesmo necessidade de mudança de profissão2.
Professores comumente lecionam em condições inadequadas, por muitas horas no dia, para um grande número de alunos e em uma condição ambiental desfavorável. Tais fatores, somados à falta de preparo vocal para lecionar, colaboram para que esses profissionais apresentem alta prevalência de sinais e sintomas vocais e alterações de voz4 5.
Pesquisas demostram que mais de 50% dos professores experimentam problemas em suas vozes no decorrer da sua vida profissional ativa6 7. Um estudo brasileiro evidenciou que professores, quando comparados com a população em geral, têm maior número de sintomas vocais, percebem alterações de voz relacionadas ao trabalho, com limitações profissionais5. Para o docente, a voz é componente constitutivo da sua identidade como trabalhador, do impacto do docente sobre o discente e do componente do processo ensino aprendizagem8 9.
A disfonia pode ocorrer como resultado de uma interação entre fatores hereditários, individuais, comportamentais, estilo de vida e ocupacionais, tais como ruído de fundo, ambiente com acústica restrita, falta de limpeza do local e estresse10 11. Devido ao fato de a comunicação oral ser também um instrumento utilizado para os relacionamentos sociais e afetivos e para as opções de lazer, a disfonia pode causar ainda dificuldades psicológicas e consideráveis restrições emocionais, sociais e funcionais, afetando inclusive a qualidade de vida do indivíduo12 13 14.
Instrumentos de autoavaliação têm sido utilizados para diferenciar pacientes ou agrupá-los, prognosticar resultados individuais, avaliar a efetividade da terapia, além de ajudar o profissional a priorizar problemas no processo de intervenção15 16 17. A autoavaliação das alterações vocais e a análise do resultado de um tratamento são meios utilizados para verificar a efetividade de uma intervenção e desenvolver procedimentos diretivos para a prática clínica na área da saúde18. Protocolos de qualidade de vida são importantes ferramentas para avaliar o impacto de uma determinada doença, instrumentos que de preferência devem ter validade, confiabilidade e sensibilidade comprovadas17.
Estudos têm mostrado que o protocolo Perfil de Participação e Atividades Vocais - PPAV19 é um interessante instrumento para avaliar o quanto o problema de voz restringe e limita as atividades vocais sociais e profissionais, bem como os resultados de um tratamento de voz20 21 22. Além disso, o PPAV apresenta informações adicionais que não são contempladas em outros protocolos17. Porém, na validação do PPAV para o português brasileiro19 não foi definida uma nota de corte que separa indivíduos disfônicos dos vocalmente saudáveis. Além disso, até o momento também não se sabe se os valores de corte desse protocolo são os mesmos para determinados grupos profissionais, como por exemplo, professores, considerando-se as particularidades da disfonia dessa categoria ocupacional.
Estudos referem que o professor apresenta maior carga vocal, não sendo exigido apenas o uso prolongado da voz, como também envolvimento de fatores que representam cargas adicionais, tais como ruído de fundo, falar por muito tempo sem o uso adequado de amplificadores de voz e fatores psicossociais11. Professores, quando comparados com não professores, relatam maior frequência de queixas vocais e desconforto físico10. Da mesma forma, professores referem perceber que um problema de voz afetaria negativamente o futuro da carreira, sendo que mais de 20% dos professores relataram afastamento do trabalho por alterações vocais, com efeitos negativos laborais e econômicos, enquanto nenhum dos demais profissionais afirmou ter se afastado do trabalho por problemas de voz10.
Dessa forma, não se sabe se os valores dos escores do PPAV seriam os mesmos dos encontrados na população em geral. Verificar esse aspecto é importante para que esse protocolo possa ser usado também na triagem vocal de professores, além da já usual forma de aplicação clínica e triagem de indivíduos disfônicos em geral, tornando-se instrumento útil para análise de populações específicas.
Sendo assim, o objetivo da presente pesquisa é identificar características de eficiência e valores de corte das dimensões do protocolo Perfil de Participação e Atividades Vocais - PPAV que discriminam disfônicos de indivíduos vocalmente saudáveis, verificando-se ainda se a nota de corte permanece a mesma para uma amostra de professores.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo - CEP - UNIFESP sob o número 0789/10 e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE.
Foram analisados por meio da curva ROC características de eficiência e valores de corte dos dados do protocolo Perfil de Participação e Atividades Vocais - PPAV19 de 171 indivíduos divididos em não professores e professores: 48 indivíduos não professores disfônicos e 33 não professores vocalmente saudáveis (média de idade semelhantes, p=0,934, por meio do teste estatístico paramétrico ANOVA); 60 professores disfônicos e 30 professores vocalmente saudáveis (média de idade semelhantes, p=0,418, por meio do teste estatístico paramétrico ANOVA). Todos os professores possuíam mais de 10 anos de tempo de magistério (média de 13,8 anos para os professores disfônicos e 14,8 anos para os professores saudáveis). Os professores disfônicos ministram aulas em turmas de 7 a 40 alunos, sendo que 19 atuam em educação infantil, 33 em ensino fundamental e oito em ensino médio; dos 60 professores disfônicos, 11 trabalham um período por dia e 49 atuam em dois ou três períodos ao dia com atividade de docência. Os professores vocalmente saudáveis ministram aulas em turmas de oito a 35 alunos, sendo que 12 atuam em educação infantil, 14 em ensino fundamental e quatro em ensino médio; dos 30 professores vocalmente saudáveis, 15 trabalham um período por dia e 15 atuam em dois ou três períodos diários com atividade de ensino. Os indivíduos com disfonia poderiam apresentar queixas e alterações de voz de qualquer grau, independente da natureza etiológica, sendo excluídos indivíduos com disfonias agudas por processos inflamatórios/infecciosos e/ou problemas de vias aéreas superiores. Os indivíduos não professores com disfonia e os vocalmente saudáveis foram recrutados por meio de contato telefônico ou pessoalmente a partir da população geral. Os principais locais de atuação destes indivíduos são hospitais, clínicas e em empresas públicas e/ou privadas de segmentos diversos.
O PPAV19é um instrumento de autoavaliação, composto por 28 questões divididas em 5 dimensões: autoavaliação vocal, efeitos no trabalho, efeitos na comunicação diária, efeitos na comunicação social, efeitos na emoção. Os valores de cada questão são marcados por meio de uma escala analógico-visual, com valores que vão de 0 a 100 mm. O escore total máximo do protocolo é 280 pontos: para a dimensão efeitos no trabalho é de 40 pontos, para a dimensão efeitos na comunicação diária é de 120 pontos, para a dimensão efeitos na comunicação social é de 40 pontos e para efeitos na emoção é de 70 pontos. Além disso, o PPAV possui dois escores adicionais: Pontuação de Limitação das Atividades (PLA) e Pontuação de Restrição de Participação (PRP). Para o cálculo da PLA, são somadas as respostas das questões 2, 4, 6, 8, 10, 12, 14, 16, 18 e 20 e para o cálculo da PRP são somadas as respostas das questões 3, 5, 7, 9, 11, 13, 15, 17, 19 e 21. Ambos os escores adicionais PLA e PRP vão de zero a 100 pontos cada.
A Curva ROC (Receiver Operating Characteristic curve ) indica os diferentes pontos de corte de um teste ou escala, segundo seus níveis de sensibilidade e especificidade23. As áreas sob a curva representam o poder do instrumento para classificar corretamente os indivíduos sadios e os doentes. Um teste totalmente incapaz de discriminar sujeitos doentes de não doentes teria uma área sob a curva de 0,5; quanto melhor esta capacidade de discriminação de um teste para esses dois grupos, mais a área sob a curva ROC se aproximará de 1,023. A sensibilidade mostra a precisão do teste em identificar os positivos e a especificidade evidencia a precisão em classificar corretamente os pacientes negativos23. Essa técnica é adequada para estabelecer o ponto de corte, otimizando a sensibilidade e especificidade de um teste diagnóstico23.
Os valores de área sob a curva ROC - AUC e os valores de corte do escore total do PAVV foram diferentes para não professores e professores. Indivíduos não professores apresentaram para o escore total do PPAV valor de AUC=0,986 (p<0,001) e 4,5 pontos de nota de corte (sensibilidade=95,8% e especificidade=90,9%); já para os dois escores adicionais, valor de AUC=0,949 (p<0,001) e nota de corte de 2,05 (sensibilidade=91,7% e especificidade=93,9%) para PLA e AUC=0,864 (p<0,001) e nota de corte de 1,90 (sensibilidade=75,0% e especificidade=97,0%) para PRP (Tabelas 1 e 2; Figura 1).
Tabela 1: Áreas da Curva ROC para o escore total e adicionais do protocolo Perfil de Participação e Atividades Vocais PPAV em não professores
*Valores significantes (p ≤0,05) - Curva ROC: valores de área sob a curva
Tabela 2: Sensibilidade e especificidade da curva ROC para os valores de corte do escore total e adicionais do protocolo Perfil de Participação e Atividades Vocais em não professores
*Valores de corte - Análise da curva ROC
Figura 1: Áreas sob a curva ROC do escore total e adicionais do protocolo Perfil de Participação e Atividades Vocais em não professores
Os professores apresentaram para o escore total do PPAV valor de AUC=0,872 (p<0,001) e nota de corte de 14,6 pontos (sensibilidade=91,7% e especificidade=75,9%); já para os dois escores adicionais, valor de AUC=0,864 (p<0,001) e nota de corte de 1,65 (sensibilidade=96,7% e especificidade=73,3%) para PLA e AUC=0,722 (p=0,001) e nota de corte de 1,35 (sensibilidade=61,7% e especificidade=83,3%) para PRP (Tabela 3 e4; Figura 2).
Tabela 3: Áreas da Curva ROC para o escore total e adicionais do protocolo Perfil de Participação e Atividades Vocais em professores
*Valores significantes (p ≤0,05) - Curva ROC: valores de área sob a curva.
Tabela 4: Sensibilidade e especificidade da curva ROC para os valores de corte do escore total e adicionais do protocolo Perfil de Participação e Atividades Vocais em professores
*Valores de corte - Análise da curva ROC.
A identificação da eficiência, dos valores de corte do instrumento como um todo e dos valores de corte para sensibilidade e especificidade máximas são importantes para que esses protocolos possam ser utilizados como ferramentas de triagem de grandes populações, dados de pesquisa em diferentes centros, serviços públicos e como critério para gerenciamento de listas de espera e avaliação de situações de urgência para atendimento24. A qualidade da discriminação de um instrumento depende do valor de sua eficiência.
No presente estudo, foi realizada uma avaliação da eficiência do protocolo PPAV e a identificação dos valores de corte do escore total e escores adicionais PLA e PRP, como instrumento de triagem capaz de separar indivíduos disfônicos dos vocalmente saudáveis e professores com e sem problemas vocais, visto que esses profissionais apresentam alta prevalência de alteração vocal relacionada ao uso profissional e podem apresentar escores diferentes da população em geral pela própria característica ocupacional4 5.
O estudo indica que indivíduos não professores apresentaram para o escore total do PPAV valor de AUC=0,986 (p<0,001) e 4,5 pontos de nota de corte (sensibilidade=95,8% e especificidade=90,9) e os professores, o escore total do PPAV valor de AUC=0,872 (p<0,001) e nota de corte de 14,6 pontos (sensibilidade=91,7% e especificidade=75,9%). Percebe-se que o escore que separa professores com e sem alteração vocal é três vezes maior do que o que separa não professores disfônicos dos vocalmente saudáveis. Provavelmente, devido ao uso vocal excessivo no trabalho, os professores, mesmo sem alteração vocal, percebem maior impacto na participação nas atividades vocais do que os não professores vocalmente saudáveis25 26. Outro dado interessante é que a eficiência do protocolo foi maior para não professores, o que pode indicar que o PPAV19 é um protocolo que foi desenvolvido para disfônicos de uma forma geral, e quando utilizado para uma população específica, como os professores, é interessante que seja associado a outros instrumentos, pois cada questionário oferece informações por ópticas diferentes, embora complementares17.
Em relação aos escores adicionais do protocolo PLA e PRP, os valores de corte foram próximos para os não professores e os professores, o que mostra que os disfônicos de uma forma geral referem limitação e restrição nas atividades vocais, independente de suas profissões19 22.
O PPAV mostrou ser um bom instrumento para realização de triagem vocal em grandes populações, principalmente nos indivíduos não professores, cujas AUC foram acima de 0,85. Porém, o fato de a eficiência do PPAV nos professores ser boa e não excelente, mostra que ele ajuda a mapear a percepção desse profissional, mas não com segurança máxima. Contudo, pelas suas características únicas17, sugere-se que, pelo menos no caso de professores, ele seja usado para auxiliar no mapeamento do impacto vocal, mas que sua análise seja feita em conjunto com outro protocolo que tenha maior eficiência, como por exemplo o IDV ou ESV, que são classificadores perfeitos, comprovadamente excelentes na discriminação de indivíduos com e sem alteração vocal27.
Existem publicações de valor de corte de outros protocolos de autoavaliação do impacto da disfonia, como para o Voice Handicap Index - VHI23 28, o Screening Index for Voice Disorder - SIVD29 (protocolo específico para autoavaliação de professores) e Escala de Sintomas Vocais - ESV30, demonstrando a importância de um valor normativo em um instrumento de autoavaliação vocal para se identificar indivíduos com problemas vocais ou indivíduos em grupo de risco para disfonia que necessitam de acompanhamento ou intervenção. O presente estudo contribui para a compreensão do impacto de um problema de voz na vida de indivíduos disfônicos em geral e, especificamente, de professores. Os dados podem ajudar em grandes triagens populacionais.
A nota de corte do PPAV é diferente para não professores e professores, sendo maior para este último grupo, porém, com maior sensibilidade e especificidade para os indivíduos não professores, podendo ser utilizado para triagens de grandes populações de risco para alteração de voz, aumentando sua acurácia se utilizado em conjunto com instrumentos complementares de avaliação, como outros protocolos, análise perceptivo-auditiva e/ou acústica da voz.