versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.9 Rio de Janeiro set. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015209.02832015
Coordenei o primeiro censo dos estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil, instituições mais bem conhecidas como manicômios judiciários. Em 2011, 3.989 indivíduos viviam em vinte e seis instituições a meio caminho entre o hospício e a prisão1. Alguns indivíduos são habitantes temporários: estão ali para o exame de insanidade mental, pois surtos ou comportamentos estranhos levantaram a suspeita de loucura no presídio. Outros passam estadias longas, porque receberam sentença de medida de segurança, um instituto jurídico que determina o tratamento psiquiátrico compulsório. O tempo de tratamento é de um a três anos renováveis, mas estende-se para um futuro indeterminado. Há casos de indivíduos que só chegaram e, assim, fizeram-se habitantes permanentes, pois nunca receberam alta psiquiátrica ou cessação da medida de segurança. O censo localizou dezoito indivíduos internados há mais tempo que os trinta anos imaginados como justo castigo de restrição de liberdade pela suprema corte brasileira aos indivíduos com crime de loucura2. Como não há prisão perpétua no Brasil, a inquietação é se haveria internação psiquiátrico-prisional permanente para os loucos infratores.
A pesquisa do censo foi revisada por comitê de ética e aprovada quantos aos procedimentos de proteção das informações populacionais. Os diretores de cada unidade manicomial foram considerados os guardiões das informações e autorizaram a pesquisa nos arquivos. Na fase de pesquisa de campo para o censo, um conjunto de outras informações foi coletado e formou diferentes unidades para um fundo de arquivo sobre os loucos infratores no país – um deles foi o do indivíduo internado há mais tempo em cada manicômio judiciário. São vinte e cinco homens e uma mulher, cujos documentos foram despojados das origens para formar um novo catálogo de informações3 – o corpus dos habitantes mais antigos do país, os habitantes abandonados.
Para a formação das unidades específicas do fundo de arquivo, houve nova revisão ética do projeto de pesquisa: aprovou-se a cópia de dossiês específicos, a direção de cada unidade autorizou a digitalização e a equipe de pesquisa iniciou uma reflexão sobre o significado de alguns dispositivos legais e éticos para o acesso e a divulgação de informações produzidas pelo Estado. É sabido que há em curso nos comitês de revisão ética um modelo biomédico hegemônico, pouco sensível às particularidades das pesquisas em humanidades, em especial aquelas com caráter antropológico, histórico ou de direitos humanos4, 5. No entanto, o dever da anonimização das informações é preceito compartilhado entre as fronteiras disciplinares: as diferenças entre os campos repousam sobre o que deve ser dissimulado para garantir a desidentificação dos indivíduos.
Meu objetivo é problematizar a tese do dever de anonimização como um pressuposto comum e absoluto à eticidade da pesquisa social – sustento que há casos em que o dever ético da pesquisadora é nomear os sujeitos. Começo explicitando como se formou o corpus dos habitantes abandonados e, em particular, esclareço a questão do acesso e do tipo de arquivo pesquisado. Em seguida, analiso as implicações do anonimato para esse grupo, tendo como referências normativas a Lei de Arquivos6 e a Lei de Acesso à Informação7, além da Resolução CNS 466/20128. A argumentação terá uma personagem central, Zefinha, a mulher abandonada há mais tempo em um manicômio judiciário no país9.
Para o censo, não entrevistamos os habitantes dos manicômios judiciários. A pesquisa foi realizada por análise documental, a primeira contagem populacional em noventa anos de história dessas instituições no país. O primeiro manicômio judiciário foi fundado no Rio de Janeiro em 1921 e, desde então, a magnitude da população louca infratora nesses estabelecimentos era desconhecida. Visitamos todas as unidades do país, abrimos o dossiê de cada habitante, estivesse ele internado para laudo, para cumprimento de medida de segurança ou já em processo de desinternação. Em cada unidade, recuperamos o dossiê do indivíduo internado há mais tempo. O dossiê de um habitante de manicômio judiciário é a unidade documental de um tipo específico de arquivo: uma peça híbrida que atende a duas ordens de saber e poder, o penal e o psiquiátrico. O dossiê é um conjunto de documentos que descreve e justifica a necessidade da internação.
O corpus dos habitantes mais antigos do país foi catalogado com base em dois critérios: antiguidade do sujeito e apenas um indivíduo por manicômio judiciário. A depender da data de fundação da unidade, o mais antigo poderia ser um noviço quando comparado à permanência dos habitantes abandonados em outras unidades. Como 23% das unidades foram fundadas na década de 2000, há uma disparidade1: o habitante mais antigo do país estava internado havia 47 anos, ao passo que o jovem mais antigo estava há 8 anos internado no momento da coleta dos dados.
Os dossiês foram digitalizados e, assim, formamos o corpus dos habitantes abandonados nos manicômios judiciários brasileiros. Zefinha foi a única mulher em um conjunto de vinte e seis habitantes abandonados – ela vive há 39 anos em restrição de liberdade, sendo dois anos em presídio comum e 37 anos no Centro Psiquiátrico Judiciário Pedro Marinho, em Alagoas9. Seu estatuto é duplamente assustador: está há mais tempo do que é o aceitável como castigo justo, e é a única resistindo à clausura no grupo dos mais antigos. Ainda jovem, cometeu crime em disputa pelos registros do arquivo: ora de lesão corporal, ora de tentativa de homicídio, mas, nos próprios termos, “uma furadinha”. Por tentativa de homicídio, lesão corporal ou furadinha, Zefinha foi descrita como mulher normal pelo laudo psiquiátrico da chegada ao manicômio judiciário. Quase quatro décadas depois, sua anamnese psiquiátrica é um tratado de morbidades, enfermidades e dependências. A conclusão do último laudo psiquiátrico é que Zefinha não poderá mais ser desinternada, pois não sabe como viver em liberdade. O arquivo a descreve como “esquizofrênica paranoide”, mas só na velhice transformou-se em uma mulher dependente do cuidado de outros para uma vida fora da clausura.
Para a história de Zefinha, retornamos ao manicômio judiciário de Alagoas, com nova revisão do projeto por comitê de ética e autorização da direção da unidade. Nessa fase, conversamos pessoalmente com Zefinha, mas seu estado de sofrimento mental impossibilitou o encontro informado ou esclarecido. Zefinha foi consultada sobre o interesse em conversar conosco – aceitou e concordou que gravássemos e fotografássemos o encontro. A direção do hospital assinou o termo de concordância com a entrevista, revisou o instrumento e firmou o TCLE. Para quem sustenta a centralidade do TCLE como índice da eticidade de uma pesquisa, o termo foi conquistado. O dossiê de Zefinha tem 85 páginas e nele estão ajuntados peças policiais, fotografias, relatórios médicos, acusações e sentenças judiciais dos 39 anos em que permanece internada. Não há detalhes de privacidade médica, pois para cada habitante há duas ordens de arquivos: o arquivo dos dossiês e o arquivo dos prontuários. Além do dossiê, recuperamos cópia do processo judicial, após autorização do juiz responsável pelo caso. Dossiê, processo judicial, conversa e fotografias compuseram o corpus sobre a permanência da internação de Zefinha.
Documento e arquivo se uniram por duas legislações separadas na história política brasileira: a Lei de Arquivos6 e a Lei de Acesso à Informação7. A primeira define o que é arquivo público e privado e seus procedimentos de gestão – para compreender as inquietações por trás de sua criação e sucessivas revisões, Georgete Rodrigues10 percorreu a tensa linha da história brasileira que sobrepôs o segredo à memória para o acesso às informações oficiais. Ao regulamentar o tema do acesso à informação produzida pelo Estado ou por organizações financiadas pelo poder público, a Lei de Acesso à Informação revogou um conjunto de preceitos da Lei de Arquivos, em particular aqueles relativos às formas de acesso e divulgação da informação.
As duas leis transitam por um amplo vocabulário que sobrepõe a arquivística à burocracia governamental – informação, documento e arquivo são três conceitos cujas definições vale esquadrinhar. Informação é matéria, não importa qual seja – dados pessoais ou contas públicas; é a comunicação pela qual se move a burocracia do Estado. Documento é a unidade de registro discursivo, podem ser palavras em papel ou números em mensagem eletrônica. Por fim, arquivo é o coletivo de documentos: todo conjunto de informações sobre uma temática comum produzida por determinada instituição descreve-se como arquivo. É assim que se formam os sintagmas “arquivo judiciário”, “arquivo policial”, “arquivo médico”, “arquivo escolar” etc., ou seja, tantos quantos forem as unidades de governo da vida pelas quais se move a burocracia do Estado. Se, por um lado, a Lei de Arquivos mirava o passado, a Lei de Acesso à Informação não discrimina o tempo da história – passado e presente estão cobertos pelo direito regulado de acesso à informação.
Na pesquisa acadêmica, o acesso à informação é ainda administrado pela Resolução CNS 466/20128, que regra procedimentos e práticas a serem seguidos pelas pesquisadoras. As informações dos documentos, nos termos da Lei de Acesso à Informação, se convertem em “achados de pesquisa” na linguagem da Resolução. “Achados de pesquisa” é um conceito amplo que cobre uma diversidade criativa de métodos e campos disciplinares: dos laboratórios às entrevistas, das fotografias aos testes de medicamentos. Para estabelecer um diálogo entre a Lei de Arquivos e a Lei de Acesso à Informação, de um lado, e a Resolução CNS 4668, de outro, uma possível tradução seria entender informação como o registro cru produzido pela burocracia do Estado, e os achados de pesquisa, o que as pesquisadoras fazem ao cozinhar a informação. Nos termos da história de Zefinha, informação são páginas ou imagens; achados de pesquisa, o que vier a ser criado como análise acadêmica.
A Lei de Acesso à Informação explicitou quem deve se submeter ao seu regime de regras sobre divulgação e tratamento da informação: “Art. 1. Esta lei dispõe sobre os procedimentos a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com o fim de garantir o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5°, no inciso II do § 3° do art. 37 e no § 2° do art. 216 da Constituição Federal”7 (sem grifos no original). Segundo os termos da Lei, pesquisadoras acadêmicas seriam “requerentes da informação”, e não diretamente vinculadas às previsões de controle, exceto em uma hermenêutica ampliada do pronome demonstrativo “aquele”, na Seção V, cujo tema é a regulamentação do tratamento de informações pessoais: “Art. 31 […] § 2º Aquele que obtiver acesso às informações de que trata este artigo será responsabilizado por seu uso indevido” (sem grifos no original)7.
Nos termos da Lei de Arquivos, os dossiês poderiam ser considerados documentos pessoais correntes, porém não sigilosos nos termos da Lei de Acesso à Informação6,7. Há informações pessoais identificáveis e, segundo a classificação de sensibilidade dos documentos pela Lei de Acesso à Informação, um excesso de cautela poderia levar a entendê-los como documentos de acesso restrito, em particular pelo estatuto de vulnerabilidade do indivíduo documentado. No entanto, por ser a medida de segurança um instituto de privação de liberdade, eu arriscaria dizer que a transparência sobre os atos punitivos do Estado deve ser soberana às medidas de segredo para o acesso à informação pessoal.
As informações médicas sobre Zefinha no dossiê são aquelas oferecidas à justiça penal para justificar sua permanência em regime de restrição de liberdade para tratamento psiquiátrico compulsório. Ou seja, são laudos médicos com estatuto de perícia para o sistema de justiça: cópias dos laudos estão também nos processos judiciais, portanto, não são documentos que descrevem o estado de saúde de Zefinha para suas rotinas de cuidado. Os laudos psiquiátricos descrevem sinais e sintomas da loucura, cujo foco investigativo é o perigo. É assim que os laudos psiquiátricos são relatórios periciais ou, nos termos de Michel Foucault11, escritos ubuescos – textos de um dobramento patético de poder, o de punir e o de classificar a loucura para justificar a internação compulsória.
Uma pesquisadora não é agente do Estado para a produção de informação burocrática para o governo das leis, políticas ou normas. Nos termos da Resolução CNS 4668, as pesquisadoras são escavadoras de achados – as informações contidas nos documentos de arquivos são transformadas em artefatos para a argumentação acadêmica. A informação crua oferecida pelos guardiões dos arquivos não se constitui em “achado de pesquisa”, pois um princípio epistemológico básico da inquietação científica é o da desnaturalização do discurso corrente. A informação é um rudimento, e somente a reflexão intelectual o transformará em argumento. Segundo a Resolução CNS 4668, “relatório final” é o nome da metamorfose da informação em argumento.
Mas em que a Lei de Arquivos, a Lei de Acesso à Informação e a Resolução CNS 4668 se aproximam da história de Zefinha? Não houve recurso formal à Lei de Acesso à Informação para a pesquisa do censo ou para formar o corpus sobre Zefinha – os guardiões do dossiê e do processo judicial autorizaram a pesquisa. Mas se a hipótese de uma hermenêutica ampliada do “aquele” da Seção V, § 2°, da Lei de Acesso à Informação7 for razoável, haverá responsabilidades na disseminação de informações pessoais identificáveis: é preciso que o texto produzido pela informação pessoal não seja indevido. Neste momento, ao escrever sobre informações pessoais, provoco o sentido da responsabilidade pela nomeação da mulher abandonada há mais tempo em um manicômio judiciário no Brasil.
A responsabilidade mencionada pela Lei de Acesso à Informação tem um caráter punitivo, tanto que aparece na voz passiva, com expectativa de um sujeito ao verbo no futuro do presente, “será responsabilizado”. O vocabulário da responsabilidade está, por sua vez, ligado a um raciocínio de hegemonia do segredo que coloniza não só a política de arquivos e acesso à informação, mas também a Resolução CNS 4668. A pesquisadora será convocada à responsabilidade se houver riscos ao indivíduo pela divulgação de informações. O qualificador “indevido” é ambíguo na Lei, até mesmo por sua ausência de especificidade, e tentativas de descrever o conteúdo moral ou jurídico do dever de responsabilidade no conjunto da lei estão direcionados aos agentes do Estado responsáveis pelo tratamento da informação, e somente residualmente às usuárias da informação.
A Resolução CNS 4668 é mais clara e ousada sobre o tema da responsabilidade. O item III, “Dos aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos”, afirma que
[…] as pesquisas, em qualquer área do conhecimento envolvendo seres humanos, deverão observar as seguintes exigências: […] i) prever procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade, a proteção da imagem e a não estigmatização dos participantes de pesquisa, garantindo a não utilização das informações em prejuízo das pessoas e/ou das comunidades, inclusive nos termos de autoestima, de prestígio e/ou de aspectos econômico-financeiros8.
A confidencialidade passa a ser uma exigência da Resolução para qualificar a eticidade de uma pesquisa. Assumo ser a confidencialidade uma das dimensões centrais da responsabilidade pelo uso de informações pessoais e passo a defender o argumento de que há paradoxos na presunção da confidencialidade como proteção ética absoluta. Vale ainda lembrar que o Código de Ética da Antropóloga determina que “constituem direitos das antropólogas enquanto pesquisadoras: […] 3. Direito de preservar informações confidenciais”12. Não há o dever da confidencialidade, tal como determinam os códigos profissionais da área biomédica, em que se regulam práticas profissionais e não de pesquisa.
Minha proposta não é implodir os sentidos da confidencialidade ou da privacidade para a pesquisa biomédica ou para outras formas de pesquisa social. Há grupos ou metodologias para quem a confidencialidade das informações é essencial para garantir direitos fundamentais, como é o caso das pesquisas que realizei sobre aborto entrevistando mulheres13. No entanto, mesmo considerando-os como qualificadores ambíguos, assumo que há usos devidos e indevidos da informação pessoal – um uso indevido pode ser resultado do dever de confidencialidade sem prévia problematização de seus sentidos políticos e éticos para o grupo pesquisado.
Conceitos como confidencialidade, privacidade, intimidade, sigilo, segredo, honra ou imagem se sobrepõem na literatura normativa, ética e metodológica sobre como devem ser apresentadas informações pessoais ou institucionais de forma a evitar danos às participantes de uma pesquisa14–20. Por um lado, há valores liberais que reconhecem a centralidade do indivíduo, seus interesses e direitos; por outro, há princípios utilitaristas de ponderação entre benefícios e riscos no uso da informação pessoal. A confusão entre os conceitos não é irrelevante para refletir a “convenção da confidencialidade”14 ou, como prefere Jan Nespor19, os sentidos ocultos da “caixa preta”.
A confidencialidade pode ser descrita como um arranjo metodológico de encobrimento de informações para impedir a identificação do indivíduo, e a anonimização é um de seus principais dispositivos. A confidencialidade pressupõe um engano para uma forma de pensamento que persegue o discurso da verdade: não fazemos ficção, mas escrita com estatuto de ciência15. Como pesquisadoras, desconfiamos da verdade absoluta, mas dependemos da acurácia e da veracidade dos “achados de pesquisa” para que um texto seja confiável21. Ao anonimizar, descrevemos pessoas e locais como expressões da realidade, mas os apresentamos sob um esconderijo textual: Zefinha teria que ser outra para não ser identificada. Não bastaria mudar seu nome, mas a duração e o local de internação, seu crime e diagnóstico. O encobrimento exigido para a narrativa de um caso singular acaba por amplificar os mantos de segredo que transformaram a jovem Zefinha em uma senhora idosa, louca e perigosa para o convívio social. Meu argumento pelo uso indevido da confidencialidade neste caso não se dá apenas pela impossibilidade da desidentificação de Zefinha, mas por razões políticas e éticas.
A anonimização é uma barreira para a identificação de um indivíduo. A pergunta é: por que permitir a identificação de Zefinha seria um uso indevido de suas informações pessoais? A barreira do nome como um instrumento de proteção ética pressupõe um indivíduo que possui segredos, bem como interesse em preservar seus segredos de intimidade ou privacidade. Por um paradoxo do arquivo, diz Jacques Derrida22, “o segredo são as cinzas do arquivo”, ou seja, os verdadeiros segredos sobre Zefinha não estão nos documentos que recuperamos para contar sua história de abandono. Há vestígios da precarização de sua vida, tais como atrasos de laudos, uso de eletrochoques, ou frágil assistência à saúde. Os poderes possuem representantes institucionais e, para o dobramento penal-psiquiátrico, há médicos e juízes que assinam as decisões sobre a internação – e esses dois grupos de personagens foram anonimizados para o resgate da história de abandono de Zefinha. A anonimização dos autores dos documentos não se deu por uma estratégia de proteção aos valores liberais inscritos nas normas e leis, mas por centrar esforços em quem precisa ser nominada para ser reconhecida como a personagem do testemunho.
Há pesquisas em que, para interpretar os poderes, é preciso nomear suas vítimas. Zefinha é uma vítima do dobramento ubuesco penal-psiquiátrico da loucura criminosa. Ao identificá-la, abdico do poder soberano da interpretação – outras pesquisadoras poderão revisar nosso corpus de pesquisa e contestar as afirmações sobre o abandono. Arrisco, portanto, anunciar dois falsos pressupostos no dever da confidencialidade pela anonimização de Zefinha: o de que nomeá-la lhe causaria dano e o de que identificá-la violaria sua intimidade. O anonimato sobre a mulher abandonada há mais tempo em um manicômio judiciário no Brasil não protegeria aquela que vive esquecida, mas os poderes que permitiram sua existência.
Minha tese é que nomear Zefinha e os outros habitantes abandonados nos manicômios judiciários é um ato de responsabilidade da pesquisa. E por que é importante nomeá-la? Porque ela não pode ser outra, só ela mesma. Não só pela verdade do arquivo, mas pela verdade da história. O corpus dos habitantes mais antigos exige testemunho, e não é um testemunho qualquer: é o da verdade do abandono. Nossos escritos sobre Zefinha são como o anúncio de um segredo: há 39 anos, ela vive em restrição de liberdade. É preciso nome, localização e detalhes da história da mulher abandonada há mais tempo para demonstrar a gravidade da injustiça, mas também para permitir que aqueles a quem o Estado deve responsabilizar pelas consequências do testemunho apresentem suas razões. Anonimizar Zefinha seria novamente escondê-la, sob um falso manto de “proteção à intimidade, vida privada, honra ou imagem”, a moral liberal em que a Lei de Acesso à Informação se ampara a fim de segredar informações pessoais7.
Zefinha viveu uma vida sem intimidade, dorme em uma cela, come o que lhe oferecem, veste roupa imposta pela administração. Sua resistência solitária é gostar de azul, em um lugar cuja cor oficial é o vermelho. Não há vida privada em uma instituição totalitária, ainda mais quando sua habitante é uma senhora, idosa e louca. Honra ou imagem são valores liberais que pressupõem a existência do indivíduo independente e com direito a estar no mundo14. Acredito que o sentido de “imagem” para a Lei de Acesso à Informação não é a de rosto, tal como proposto por Judith Butler23 para o reconhecimento mútuo, mas um uso figurado para a moral liberal da soberania da narrativa sobre si mesma – a divulgação de informações pessoais identificáveis poderiam ameaçar a “imagem” que cada indivíduo possui. Qual é a autoimagem de Zefinha? E, se ela for conhecida, em que a divulgação de seu nome poderia perturbar sua intimidade?
Minha tese é exatamente oposta à pressuposta pela Resolução CNS 4668: nomear Zefinha é forçar a reconhecer o seu rosto, a identificá-la como a mulher abandonada há mais tempo em um manicômio judiciário no Brasil. A imagem de Zefinha é o que lhe resta – sua existência como velha dependente, abandonada em um hospital-presídio. Pobre, velha, analfabeta, nordestina, Zefinha não possui mais vínculos ou biografias fora do manicômio. Viveu como uma mulher anônima no regime de apartação – divulgar sua história é, portanto, uma forma de reconhecer sua existência como alguém cujos direitos foram amplamente violados. A responsabilidade que desejo assumir pela nomeação de Zefinha é esta: a de que testemunho a história de uma mulher abandonada em razão da loucura.
Deixar Zefinha anônima seria devolvê-la à multidão dos loucos infratores que habitam os manicômios judiciários. Ela seria uma das 291 mulheres, e não, tristemente, a mais antiga delas. Dada a singularidade do drama, a anonimização como uma prática de segredo e um regime de confidencialidade exigiria não apenas a troca do nome de Zefinha – e ser Josefa da Silva denuncia regimes prévios de precarização que favoreceram sua longa internação. No manicômio judiciário de Alagoas, só há duas mulheres com diagnóstico de esquizofrenia, e uma delas é acusada de homicídio. Só restou Zefinha. Segundo o censo, 82 mulheres tinham o mesmo diagnóstico de Zefinha, sete das quais estavam em medida de segurança por crime de lesão corporal: ou seja, desidentificada, Zefinha poderia ser uma entre sete. No entanto, um equívoco grave decorreria do dever de confidencialidade – nenhuma das outras seis mulheres estava internada havia mais de uma década. A mais antiga desapareceria mesmo no pequeno grupo de sete com passado similar de sofrimento e crime. Zefinha não seria mais ela mesma no que mais importa para a história: sua longa permanência.
A multidão de habitantes dos manicômios judiciários é de 3.989 homens e mulheres, 2.956 em medida de segurança e 1.033 em internação provisória1. Ao contá-los, mostramos que o Estado desconhece as razões da internação de metade da população em medida de segurança: há indivíduos com laudos atrasados, outros internados sem decisão judicial própria ou ainda com laudos de cessação de periculosidade atestando a possibilidade da vida fora da clausura. Mesmo assim, o regime de tratamento compulsório se mantém. Os números mostraram que não há relação de causalidade entre diagnóstico psiquiátrico e gravidade da infração penal cometida – indivíduos com diferentes classificações psiquiátricas cometem as mesmas infrações. Pelos números, falamos de multidão, usamos recursos retóricos e estatísticos para demonstrar a crueldade do sistema: 1 em cada 4 habitantes já deveria estar fora dos muros do manicômio, e 952 deles estão internados há mais tempo do que estariam se cumprissem pena em presídios.
Outra forma de apresentar o que os números denunciam é narrar histórias com nome e rosto. A multidão grita socorro, mas a singularidade respeita as biografias esquecidas. Fiz isso no documentário “A Casa dos Mortos”, em que Bubu, Jaime, Antônio e Almerindo provocam as injustiças do regime de clausura pelo crime e pela loucura24. Se há inquietações nas imagens de homens vulneráveis, o poder da vidência é o de perturbar pela exibição: os regimes de precarização da vida estão ali desnudados – são homens negros, pobres, pouco educados e abandonados pela prisão da loucura. Vê-los é uma forma de apresentar o real que se esconde pelos números da multidão anônima descrita como louca infratora. Mas se para o filme o apelo à arte me protege da inquisição de por que nomear os habitantes do manicômio, a mesma tranquilidade estética e ética não me acompanha ao escrever a história de Zefinha pelo nome da mulher abandonada.