versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.3 Rio de Janeiro mar. 2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018243.00502017
O presente artigo é uma revisão narrativa cujo objetivo é discutir o movimento histórico-político da busca do reconhecimento formal do distúrbio de voz como doença relacionada ao trabalho (DRT), analisando avanços e limitações deste movimento. Recapitula os caminhos percorridos, apontando desafios a serem superados.
Esta iniciativa localiza o movimento de produção de saberes e práticas na perspectiva do campo da saúde do trabalhador, ancorado no modelo de vigilância em saúde, no qual se assume o compromisso de alterar os processos de adoecimento relacionados ao trabalho, tendo como base ações nos âmbitos político, jurídico, técnico e ético1 . Portanto, busca-se aqui identificar balizadores de determinados modelos de pensamento e de ações que estruturam, sustentam e reproduzem práticas em saúde. Neste caso específico, inclui-se a análise dos movimentos pela legitimação e visibilidade de um problema conectando saúde e trabalho, o uso profissional da voz e o adoecimento vocal. Trata-se de uma tentativa de sistematizar evidências, movimentos, avanços e recuos construídos nesse processo de modo a oferecer um percurso de expansão do campo de saúde do trabalhador para análise e intervenção em um problema de saúde ainda pouco visível e para o qual ainda são tímidas ou inexistentes as ações de prevenção e promoção da saúde no trabalho.
Parte-se de uma constatação básica, da qual diferentes grupos sociais foram tomando consciência ao longo das últimas décadas: trabalhadores que utilizam intensamente a voz para a realização de suas atividades são vítimas de adoecimento que prejudica a produção vocal. Descreve-se a disputa sobre os termos que melhor definem este adoecimento, sua natureza e causas, as maneiras pelas quais se pode alcançar o reconhecimento oficial do fenômeno e os cuidados que devem ser dispensados aos trabalhadores.
São três os eixos de análise: a) técnico-científico, no qual se problematiza o nexo entre distúrbio de voz e trabalho; b) jurídico-institucional, sobre as formas institucionais do seu reconhecimento; ambos contextualizam e dão suporte à análise político-profissional, na qual se discute a articulação dos atores sociais no movimento de defesa do reconhecimento do distúrbio de voz relacionado ao trabalho (DVRT).
As discussões acerca do reconhecimento completam duas décadas em 2017. Iniciadas no final dos anos 1990, essas discussões foram potencializadas pela iniciativa pioneira da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em incluir a temática em evento científico anual, os Seminários de Voz2 , 3 . Vários atores agregaram-se à luta (órgãos e conselhos de classe médica e fonoaudiológica, sindicatos, universidades, CEREST, entidades assistenciais, juristas, dentre outros), em debates mais amplos ou em iniciativas mais isoladas e corporativas. Como resultado desse debate, foram produzidos documentos com a finalidade de padronizar condutas e definir normas técnicas para o manejo do DVRT e da Laringopatia Relacionada ao Trabalho (LRT), a exemplo do 3º Consenso de Voz Profissional4 , do documento elaborado pelo CEREST-SP5 , posteriormente publicado como artigo6 e do Protocolo de Complexidade Diferenciada do Ministério da Saúde, conhecido como Protocolo DVRT7 . Além dessas iniciativas, outras ações contribuíram para dar visibilidade ao DVRT, a exemplo das Campanhas de Voz8 e das iniciativas de leis locais, visando a criação de Programas de Saúde Vocal de Professores9 .
Trata-se de uma revisão narrativa, de natureza qualitativa, entendida como publicação mais ampla, apropriada para discutir o estado da arte sobre determinado assunto. Apresenta-se como análise crítica e pessoal dos autores, sem a pretensão de generalização10 . Como os autores participaram da busca do reconhecimento do DVRT, são sujeitos-objeto dessa história. As fontes prioritariamente utilizadas foram documentos técnicos, artigos de revistas científicas e anais de eventos, os quais formaram a base para a narrativa histórica, costurada pela legislação vigente, acerca do DVRT.
Apesar dos distúrbios de voz ainda não constarem das listas oficiais de DRT, há muitos estudos que sustentam, empiricamente, esta relação. O grupo de profissionais da voz mais estudado são os professores, seja pelo contingente de trabalhadores, pelas condições de trabalho ou pela facilidade de investigação.
Pesquisas epidemiológicas revelam alta prevalência de problemas de voz em professores, associados a fatores do ambiente e organização do trabalho. A crítica que se faz aos estudos é que são de qualidade variável, apresentam definições operacionais distintas, usam métodos irregulares, nem sempre bem delineados, sem grupos-controle e autorreferência como desfecho para o distúrbio de voz, comprometendo a qualidade das evidências11 , 12 .
Registra-se, contudo, nas pesquisas mais recentes, desenhos melhor delineados, métodos mais sofisticados, tendo como resultado evidências mais robustas13 , 14 . No Protocolo DVRT7 há uma compilação de estudos epidemiológicos nos quais se evidenciou a elevada prevalência de alteração vocal, principalmente em professores, sintomas, fatores pessoais predisponentes, riscos ambientais e organizacionais do trabalho. Recente revisão sistemática demonstrou aumento na ocorrência de alterações vocais em professores quando comparados a outras ocupações, mais comumente associadas a ruído nas classes, uso habitual de voz em forte intensidade e ser professor de educação física13 . Em outro estudo de revisão14 foi observada prevalência de alteração vocal de 6 a 15% na população geral, enquanto entre professores a ocorrência variou de 20 e 50%. Como fatores associados identificaram salas de aula inadequadas, ruído excessivo, problemas de saúde e hábitos de vida.
Ressalta-se que, mesmo havendo fatores pessoais que possam desencadear um distúrbio de voz, fatores de ambiente e organização do trabalho são determinantes do adoecimento. Schilling15 classifica as DRT em três categorias: I - trabalho como causa única e necessária; II - como um fator contributivo; III - como fator provocador de distúrbio latente ou agravante de doença estabelecida. O DVRT, por sua natureza multicausal, encontra-se nas categorias II e III16 , havendo uma probabilidade aumentada de ocorrência da doença quando fatores de risco relacionados ao trabalho se apresentam. Desta forma, o nexo entre doença e trabalho é epidemiológico, considerando-se o excesso de frequência em determinados grupos ocupacionais, assim como fatores de risco relacionados ao trabalho17 .
Registre-se uma segunda dificuldade para o reconhecimento oficial do nexo entre distúrbio de voz e trabalho: a multiplicidade de instrumentos (listas) e de competências institucionais para tratar dos agravos/DRT ( Figura 1 ).
1* SINAN: Sistema de Informação de Agravos de Notificação. 2* SUB: Sistema Único de Benefícios – SUB
Figura 1 Atribuições jurídico-institucionais no reconhecimento formal de uma doença ou agravo relacionado ao trabalho e correspondentes bases de dados de casuística.
Conforme determinado pela Convenção nº 155 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)18 e pelo Decreto nº 7.602/1119 , que a implementou, a publicação da relação de DRT cabe ao Ministério da Saúde (MS). Essa lista, posteriormente, é subsídio para a definição das listas da Previdência Social (PS) e de notificação compulsória de doenças/agravos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), também de competência do Ministério da Saúde (MS).
A lista-mãe das doenças relacionadas ao trabalho foi estabelecida nos termos da Portaria GM/MS nº 1.339/9920 . É fundada na Lei n° 8.080/9021 , que delega ao Sistema Único de Saúde (SUS) a “revisão periódica da lista oficial de doenças originadas no processo de trabalho” (art. 6º, § 3º, VII); e na Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) n° 22022 , que “recomenda ao MS a publicação da lista de doenças relacionadas ao trabalho”.
A Portaria GM/MS nº 1.339/9920 , aqui chamada de lista-mãe, associa agentes etiológicos/fatores de risco de natureza ocupacional a doenças, por meio de entrada dupla, tanto pelos agentes causadores, como pela própria doença, sendo composta por cerca de 200 entidades nosológicas definidas na Classificação Internacional das Doenças (CID-10). Ela serve de orientação ao SUS, para que possa haver a “implementação das ações de assistência e de vigilância à saúde do trabalhador”20 .
A lista da Previdência foi prevista no artigo 20 da Lei nº 8.213/9123 e estabelecida no anexo II, B, do Decreto n° 3.048/9924 , com redação alterada por decretos posteriores (o último é o Decreto nº 6.957, de 9 de setembro 2009)25 .
A lista de notificação compulsória, por sua vez, é ainda baseada na Lei n° 8.080/9021 , a qual também contempla a Saúde do Trabalhador (ST) como campo de atuação do SUS, por meio de ações de vigilância epidemiológica e sanitária, promoção e proteção da saúde, bem como recuperação e reabilitação dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho. A sua última edição ocorreu recentemente, por meio da Portaria MS/GM nº 205/1626 , não incluindo o DVRT como doença/agravo de notificação compulsória.
A trajetória inicial
Na busca pelo reconhecimento do distúrbio de voz como DRT, destaca-se o papel pioneiro do curso de Fonoaudiologia da PUC-SP, no fomento das discussões e na tarefa de agregar diferentes atores sociais no debate, permitindo o avanço em temas presentes nas agendas atuais.
Em 1997, a partir de um ofício protocolado no Conselho Federal de Fonoaudiologia (CFFa) com informação de inúmeros casos de professores com alteração vocal no Hospital dos Servidores de Pernambuco, a PUC-SP promoveu uma discussão sobre disfonia enquanto doença ocupacional no VII Seminário de Voz27 , ampliando o debate para um maior número de atores sociais.
O início foi penoso, as bases eram frágeis e ainda incertas para uma área que, historicamente, focava-se apenas na reabilitação do indivíduo. Mas a busca persistente e incansável, durante os oito anos subsequentes de debate nos seminários da PUC-SP, proporcionou diálogos interdisciplinares e intersetoriais efetivos, com a Medicina do Trabalho, o Direito, a perícia e sindicatos de trabalhadores, marcando uma aproximação auspiciosa ao campo da Saúde Coletiva.
A compreensão do adoecimento de voz, não com base na culpabilização do indivíduo que não saberia utilizar a sua voz, traduzido pelo binômio “mau uso/abuso vocal”, e sim como uma imposição necessária para superar as precárias condições de trabalho às quais estava submetido, foi um marco que possibilitou ao fonoaudiólogo redimensionar sua prática a fim de responder à realidade de adoecimento de um elevado número de trabalhadores. Araújo et al.28 alertaram para o fato de que as alterações vocais em professores, assim como os transtornos mentais e a LER/DORT são agravos que, pela sua dimensão em determinadas categorias profissionais, merecem intervenções por meio de políticas públicas.
Em 1998, no VIII Seminário de Voz29 , discutiu-se a elaboração de um instrumento, com a intenção de aplicação multicêntrica, para estudar o processo saúde-doença no trabalho docente. Este instrumento, elaborado para investigação da prevalência de alteração vocal, sinais, sintomas e fatores associados ao ambiente e organização do trabalho, foi uma iniciativa fundamental para a produção de evidências sobre o distúrbio de voz e sua relação com o trabalho.
O questionário foi aplicado preliminarmente em professores da rede municipal de ensino de São Paulo. Os resultados revelaram alta prevalência de alterações vocais, reforçando a relevância dessa iniciativa30 . Sua versão atualizada conhecida como Protocolo Condições de Produção Vocal - Professor (CPV-P)31 foi aplicada em mais de 10.000 professores de diferentes realidades e contextos. Uma parte do questionário foi validada e constitui hoje o Índice de Triagem para Distúrbio de Voz (ITDV)32 .
O caminho para a elaboração do questionário também foi difícil para uma área que, historicamente, não estava habituada a estudos epidemiológicos. Por outro lado, rendeu aproximações valiosas, a exemplo da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, que passou a ser parceira e a contribuir com as pesquisas.
No IX Seminário de Voz33 , realizado em 1999, foram compartilhadas as primeiras evidências de pesquisas nacionais e internacionais desenvolvidas com professores, envolvendo licenças e readaptações, assim como legislação nacional/internacional e práticas de outros profissionais que utilizavam a voz como ferramenta de trabalho: locutores, operadores de telemarketing, atores e cantores.
Cada lei é o resultado de uma vitória política. Os movimentos sociais são bem-sucedidos quando obtêm alteração legislativa que formalize decisões acolhendo suas demandas. A apresentação de um projeto de lei que estabelece um Programa Estadual de Saúde do Professor, por exemplo, seria de grande valia. O problema é que, até poucos anos atrás, um projeto como este seria de competência exclusiva do governador. O Legislativo não podia, por iniciativa própria ou por emenda em projeto do Executivo, aumentar as despesas da Administração, conforme a interpretação então corrente dos artigos 61, § 2º e 63, inciso I, da Constituição da República34 . Para escapar da inconstitucionalidade, o legislador tinha como alternativa apresentar projeto de lei permitindo ao Executivo realizar o aumento de despesa. Tal alternativa, contudo, não gera direito, uma vez que o programa não foi efetivamente criado, apenas foi dada a permissão legal para que o fosse. Entre 1998 e 2006 foram registradas 22 iniciativas, a maioria proposta pelo Poder Legislativo9 . De 1998 a 2010 somaram-se 66 iniciativas, evidenciando expressivo crescimento nos últimos quatro anos. Das 61 proposições mais diretamente relacionadas à voz do professor, 88,5% eram de programas de saúde vocal35 . Hoje, entretanto, o Supremo Tribunal Federal realiza interpretação mais literal dos dispositivos citados acima, permitindo que Programas de Saúde do Professor (estaduais ou municipais) possam ser implementados a partir de leis de iniciativa parlamentar36 .
Ainda em 1999, foi lançada a I Semana Nacional da Voz8 , uma iniciativa da Sociedade Brasileira de Laringologia e Voz (SBLV), com apoio da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia (SBFa) e Sociedade Brasileira de Otorrinolaringologia (SBORL), atual Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial (ABORL-CCF). A campanha jogava luz nos problemas de voz, mediante a divulgação da elevada prevalência de câncer de laringe na população brasileira. A SBLV era uma sociedade interdisciplinar, composta por médicos e fonoaudiólogos fundada para melhor responder às demandas dos profissionais da voz. As campanhas de voz, embora não relacionadas diretamente à luta pelo reconhecimento da DVRT, exerceram papel relevante, dando maior visibilidade aos problemas de voz. A iniciativa foi bem-sucedida, sendo abraçada internacionalmente, criando-se o Dia Mundial da Voz8 , 37 .
Em 2000, no X Seminário de Voz38 , houve um revés na luta pelo reconhecimento da relação trabalho-adoecimento vocal, considerando a concepção do distúrbio de voz como doença multifatorial. A consequência desse entendimento foi aumentar a dificuldade de se estabelecer o nexo causal entre a doença e o trabalho. A discussão privilegiou o campo da Epidemiologia e, com base na falta de evidências fortes para sustentação do nexo causal (Decreto nº 2.172/9739 , que regulamentava os benefícios da PS), prevaleceu a impossibilidade de se delimitar o papel do trabalho nessa etiologia.
Provavelmente a referência ao texto foi equivocada, pois na época já estava em vigor o Decreto nº 3.048/9924 , que substituiu o anteriormente mencionado. Neste Decreto (1997)39 há um interessante raciocínio na comparação entre entidades nosológicas (baseadas no CID-10), agentes patogênicos causadores de doenças profissionais ou do trabalho, agentes/fatores de natureza ocupacional e a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE). Contudo, não inclui a disfonia, nem a laringopatia como entidades nosológicas, as quais poderiam estar associadas a potenciais agentes etiológicos ocupacionais, particularmente em atividades profissionais nas quais a voz é o principal instrumento de trabalho, como a Educação, o Ensino e o Teleatendimento. Por outro lado, apresenta a possibilidade de fornecer auxílio-acidente para a situação de “perturbação da palavra”24 , 39 , desde que comprovada por métodos clínicos objetivos. O desafio aos profissionais era como operacionalizar o nexo, visto que não havia orientação técnica sobre como proceder nos casos de distúrbio da voz, ainda não contemplado no manual técnico das DRT do MS17 .
A partir de então, houve um direcionamento para a construção de documentos que trouxessem evidências sobre o DVRT, definissem os fatores de risco ocupacionais, quadro clínico e diagnóstico, bem como tratamento, prevenção e outras condutas, conforme estabelecido para doenças reconhecidamente relacionadas ao trabalho.
Paralelamente ao movimento fomentado pela Faculdade de Fonoaudiologia da PUC-SP, a classe médica também construiu iniciativas na forma de consensos. Em 2001, a 1ª Reunião Pró-Consenso Nacional sobre Voz Profissional40 foi promovida pela atual ABORL-CCF, com a participação do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ) e da SBLV, sendo definidas as bases preliminares para o estabelecimento de um protocolo, incluindo a multifatoriedade e concausalidade do distúrbio de voz, avaliação multiprofissional, periodicidade de exames ocupacionais e capacitação profissional. Pactuou-se pela consulta aos órgãos de classe envolvidos no documento sobre as atribuições, competências, limitações e restrições das profissões nesse campo, tendo como pontos discutidos avaliação, tratamento, cuidado, treinamento, capacitação e aperfeiçoamento dos indivíduos que utilizam a voz profissionalmente.
Em 2002, no 2ª Consenso41 , as discussões ficaram centralizadas nos aspectos relativos aos “Atos Médicos”, em especial à anamnese médica; limitações e restrições do médico otorrinolaringologista, particularmente quanto à questão da aptidão/inaptidão sobre o exercício do trabalho (atribuição do médico do trabalho) e situações as quais poderiam fragilizar a classe médica, embora permitindo sua realização aos experientes ou com treino, tais como: execução de terapia vocal, técnicas de canto e opinião sobre o futuro da carreira em decorrência da alteração vocal. Foram estabelecidas, por fim, competências, limitações e restrições aos fonoaudiólogos. Neste contexto, evidenciou-se claramente a agenda, com submissão das ações fonoaudiológicas aos médicos, restringindo as atividades como diagnóstico, solicitação de exames complementares e coordenação de equipes. Neste mesmo ano foi proposto no Senado o Projeto de Lei nº 268/02, sobre o Ato Médico, aprovado posteriormente como Lei nº 12.842/1342 .
A partir de então, a polarização entre médicos e fonoaudiólogos ficou estabelecida. A SBLV teve o nome modificado para Associação Brasileira de Laringologia e Voz (ABLV), restringindo a participação dos profissionais não-médicos somente a cargos secundários. A diretoria ficou restrita a médicos, dissolvendo uma entidade que, numa perspectiva interdisciplinar, poderia ter um futuro promissor. As campanhas de voz passaram a ocorrer de modo paralelo, com inciativas isoladas desses dois grupos profissionais8 . Se, por um lado, houve a perda pela fragmentação das atividades, por outro, na tentativa de ampliar espaço na mídia, as campanhas ganharam ênfase e passaram a contar com apadrinhamento de artistas, dando maior visibilidade aos problemas de voz.
Iniciativas macropolíticas também se evidenciaram. Em 2003, na 12ª Conferência Nacional de Saúde43 , foi feita, pela primeira vez, uma indicação para implementação de ações de prevenção e reabilitação da voz para trabalhadores submetidos a riscos químicos ou físicos. Embora ainda incipiente, essa menção ganhou impacto macroespacial a partir do momento em que extrapolou as fronteiras até então circunscritas aos universos específicos da Fonoaudiologia e Otorrinolaringologia, vencendo os muros da atuação profissional específica no campo da voz, reposicionando-as como um problema de Saúde Pública.
Em 2004, num momento de grande efervescência, foram lançados quase que simultaneamente dois importantes documentos, resultado das discussões até então realizadas. O primeiro deles foi a “Carta Aberta do Rio”, apresentada pela classe médica no 3º Consenso de Voz Profissional4 , na qual se definiam procedimentos técnicos e competências para estabelecimento do nexo causal da doença-trabalho, bem como a assistência e vigilância à saúde da LRT. Três meses depois, no XIV Seminário da PUC-SP5 , o CEREST-SP apresentou o documento DRVT com definições análogas. A polarização entre as categorias médica e fonoaudiológica ficou ainda mais evidente, simbolizada pela terminologia empregada para definir a doença. Para os fonoaudiólogos, considerar o distúrbio de voz como entidade nosológica implicava ter uma nomenclatura mais ampla, a qual pudesse também contemplar as alterações vocais sem lesões estruturais na laringe. Para os médicos, o termo laringopatia era o mais adequado, sendo a condição sem lesão estrutural denominada “laringopatia funcional”. Naquele momento, o único consenso foi quanto ao termo “disfonia”, abolido por ambas as categorias, devido à sua classificação do CID-10 enquanto sintoma. Neste mesmo ano, meses antes, foi publicada uma nova lista de agravos de notificação compulsória do MS, a qual não incluiu nem o distúrbio de voz nem a laringopatia nos seus anexos (Portaria MS/GM nº 777/04)44 .
Nos anos seguintes, houve amortecimento do movimento, sendo frustrada a expectativa de ver os agravos de voz contemplados na lista de DRT. Em 2007, outro revés. Foi publicado o Decreto nº 6.042/0745 , que alterou o Regulamento da PS sem contemplar os agravos de voz. Paralelamente, o Senado, promulgou “Voto de Aplauso”46 aos fonoaudiólogos pelo transcurso do Dia Mundial da Voz. Embora bem-recebida, tal iniciativa não resolvia o problema maior, sobre o reconhecimento do DVRT.
Ainda em 2007, na 13ª Conferência Nacional de Saúde47 , houve nova menção no eixo “Inéditas” para que as alterações de voz fossem reconhecidas como uma doença ocupacional e sua avaliação integrasse os protocolos de saúde, estabelecendo uma “Política de Saúde Vocal” para o trabalhador.
Em 2008 foi instituído o “Dia Nacional da Voz”48 cuja ementa da lei visava “conscientizar a população brasileira sobre a importância dos cuidados com a voz”. Em termos políticos, os agravos de voz acabam ganhando maior visibilidade com essas iniciativas, mas ainda sem o reconhecimento formal como doença ocupacional.
Paralelamente, numa iniciativa pioneira, o CEREST-RJ solicitou à Secretaria Estadual da Saúde a inclusão do agravo “Disfonia Ocupacional” na lista de doenças de notificação compulsória como interesse estadual49 . Anos mais tarde, em 2013, foi publicada a resolução50 que redefiniu a relação de doenças e agravos de notificação compulsória no estado do Rio de Janeiro, incluindo a disfonia. Essa iniciativa foi seguida pelo estado de Alagoas51 , com publicação da lei um ano antes (2012) e pelo município de Niterói-RJ52 em 2014, que incluíram o código do agravo “Disfonia R49.0” nas suas listas locais. Alagoas denominou o agravo como “distúrbio de voz relacionado ao trabalho”, embora tenha mantido o mesmo código (R49.0) para a notificação.
Essa foi uma iniciativa perspicaz, que se aproveitou do artigo 10º da Portaria MS/GM nº 104/1153 , no qual é facultada a elaboração de listas estaduais ou municipais, de acordo com o perfil epidemiológico local. Neste caso, a escolha pelo sintoma disfonia não faria diferença, pois a notificação compulsória é prevista em caso de suspeita ou confirmação diagnóstica. Embora o distúrbio de voz não seja um agravo local, sua inclusão em lista de âmbito restrito foi um caminho para, ao demonstrar a elevada ocorrência do agravo, pressionar o MS para sua inclusão na lista nacional de DRTs. Contudo, uma grande dificuldade para o êxito dessa estratégia envolve a subnotificação, que ocorre também para outros agravos. Com a revogação da Portaria MS/GM nº 104/1153 , pela substituta Portaria MS/GM nº 1.271/1454 , deixou de ser prevista a elaboração de listas locais. No entanto, isto não significa que as listas existentes passem a ser inválidas, nem mesmo significa que não possam ser criadas novas listas municipais ou estaduais. A finalidade das portarias citadas é estabelecer quais os agravos serão notificados, para que constem na base de dados administrada pelo MS e, assim, nas suas estatísticas. A criação de listas locais não se funda em mera portaria, mas na autonomia dos estados e municípios, prevista constitucionalmente. Eles podem criar seus próprios sistemas de informação, para a prestação dos serviços de suas competências. O Direito Constitucional chama este poder de “competência implícita”55: se a Carta atribui a uma unidade federativa o dever de prestar um serviço, ficam implícitas todas as atribuições que permitirão a ela se realizar essa tarefa. “Cuidar da saúde” é “competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”, segundo o artigo 23, inciso II da Constituição34 Portanto, devem ser organizados serviços e ações para o alcance dessa finalidade. Assim, as listas locais serão sempre válidas, pois representam esforços municipais ou estaduais de conhecer a demanda específica de suas áreas de abrangência.
Em 2009 ocorreu no II Seminário Nacional de Voz (CEREST-SP) e XIX Seminário de Voz da PUC-SP56 um novo encaminhamento para as ações. A estratégia inicial, de investir junto ao Ministério da Previdência Social, foi modificada e o alvo passou a ser o MS, particularmente a Coordenadoria Geral de Saúde do Trabalhador (COSAT), atual Coordenação Geral de Saúde do Trabalhador (CGSAT), responsável à época pela edição dos protocolos de complexidade diferenciada. A iniciativa CEREST-RJ influenciou o encaminhamento do próprio MS pela inclusão do DVRT na lista de doenças de notificação compulsória. Isso por causa da competência do MS de se criar as listas de DRT. A lista do MS indica as doenças que receberão atenção dos órgãos envolvidos com a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT), articuladas na Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST). Um cidadão atingido por uma doença objetivamente relacionada ao trabalho, mas ainda ausente da lista, receberá tratamento público, mas não pelos órgãos específicos da PNSTT. Há duas outras listas, a da PS, para acesso aos benefícios, e a do MS, para as doenças de notificação compulsória no território nacional. Em nenhuma das três listas figura o DVRT.
Ainda em 2009, durante o Congresso Mundial de Voz, foi criado o Comitê Brasileiro Multidisciplinar de Voz Ocupacional (COMVOZ)57 pela ABORL-CCF, Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT), Academia Brasileira de Laringologia e voz (ABLV) e SBFa, numa tentativa de reaproximação entre médicos e fonoaudiólogos. A iniciativa teve como objetivo definir critérios para embasar a legislação futura com relação ao reconhecimento do distúrbio de voz como DRT. As negociações foram difíceis e tensas, mas permitiram elaborar dois boletins. O primeiro58 tratou da definição da etiologia da disfonia (funcional, organofuncional e orgânica); de sua caracterização enquanto sintoma e não doença; do uso do termo “voz adaptada” como voz socialmente aceitável e, em termos ocupacionais, guardando relação com demanda de voz empregada e qualidade vocal exigida. O segundo boletim59 sugeriu avaliação vocal admissional ou na presença de queixa vocal, composta de, no mínimo: avaliação otorrinolaringológica com exame da laringe, avaliação fonoaudiológica com exame funcional da voz e avaliação audiométrica. Além disso, recomendam o gerenciamento da voz, que seria tema do terceiro boletim, não publicado até o momento.
A partir de 2010 o CEREST- RJ lançou, em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ), uma série de boletins trimestrais (Boletim de Fonoaudiologia na Saúde do Trabalhador). Dois deles colocaram em evidência o DVRT60 , 61 . Com o intuito de orientar os profissionais, os boletins também noticiaram a busca pelo reconhecimento do DVRT e trataram de temas como notificação, vigilância, o Programa de Saúde Vocal do Professor e reflexões mais conceituais como Medicina do Trabalho, Saúde Ocupacional, Saúde do Trabalhador e Ergonomia.
Em 2011 ocorreu mais uma frustração. Uma nova edição da lista de doenças de agravo de notificação compulsória foi publicada por meio da Portaria MS/GM nº 104/1153 , sem contemplar os agravos de voz. Essa negativa contribuiu para a retomada do documento DVRT, divulgado em 20045 . A então COSAT-MS, juntamente com o CEREST-RJ, representantes da SBFa, do CFFa e do COMVOZ revisaram o Protocolo DVRT, posteriormente apresentado no XXI Seminário da PUC-SP62 e levado à consulta pública pelo MS. A discussão mobilizou vários atores sociais e criou grande expectativa sobre os seus encaminhamentos. Contudo, até o momento não houve apresentação dos resultados após a consulta pública e nem a redação final do documento, conforme estabelecido na metodologia de trabalho do MS. A SBFa solicitou informações à COSAT em maio de 2013, mas não houve um posicionamento formal sobre o andamento dos trabalhos63 .
Ainda em 2011, o DVRT ganhou novamente dimensões macropolíticas. Na 14ª Conferência Nacional de Saúde64 foi feita moção destinada ao Ministério da Saúde para a aprovação do Protocolo DVRT, a fim de garantir sua notificação junto ao SINAN e a integralidade da assistência. Não há aqui referência ao reconhecimento do distúrbio de voz como DRT, que seria o primeiro passo para sua formalização.
O engajamento das fonoaudiólogas do CEREST-RJ proporcionou uma reflexão sobre a prática fonoaudiológica em Saúde do Trabalhador e, em 2012, numa parceria com o Conselho Regional de Fonoaudiologia 1ª região, elaborou-se um documento tomado como base para a Portaria nº 26/1165 , a qual dispõe sobre a atuação fonoaudiológica na Saúde do Trabalhador. Posteriormente, a argumentação produzida foi apropriada pelo CFFa por meio da Resolução nº 428/1366 , ampliando a discussão para âmbito nacional. Essas resoluções proporcionaram aos fonoaudiólogos diretrizes mais claras sobre a atuação profissional em Saúde do Trabalhador, em termos de competências e ações. Constituem um importante marco também pela demarcação de posição frente à ameaça do Ato Médico.
Na 4ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador67 , realizada em 2014, mencionou-se a criação de um “Programa Nacional de Saúde Vocal” e a implementação de registro único de notificações de agravos e acidentes de trabalho, incluindo a “disfonia” na lista. A ideia de um registro único vem ao encontro da unificação das listas de modo a desburocratizar o sistema, uma pauta recorrente na Saúde do Trabalhador.
Mesmo com todas as iniciativas realizadas: seminários, consensos, documentos, protocolos, boletins, notificações, campanhas e programas de saúde vocal, o distúrbio de voz ainda não foi reconhecido como DRT ( Figura 2 ). As duas últimas iniciativas do Ministério da Saúde, as quais atualizam a lista de agravos de notificação compulsória (Portaria MS/GM nº 1.984/14)68 e da recém-editada Portaria MS/GM nº 205, de 17 de fevereiro de 201626 , também não contemplaram o DVRT.
O presente artigo apresentou o movimento de atores sociais na busca do reconhecimento do distúrbio de voz como DRT nos últimos 20 anos. Embora as evidências demonstrem elevada prevalência de alteração vocal em trabalhadores que utilizam a voz profissionalmente e fatores de organização e ambiente de trabalho associados, especialmente em professores, não há uma legislação que dê suporte ao DVRT, nem uma política pública de atenção à saúde que o contemple.
Revelou-se um processo não-linear, marcado por acertos e revezes, momentos de grande otimismo, assim como conflitos, frustrações e iniciativas periféricas que, embora dessem visibilidade à questão, não obtiveram o reconhecimento formal do DVRT. O esforço dos atores envolvidos, inicialmente comum, é tensionado por conflitos como a tentativa de imposição do Ato Médico, com um difícil retorno ao diálogo, a exemplo do COMVOZ. Superar as tensões estabelecidas entre os atores sociais, para que se somem forças em prol do reconhecimento do DVRT, contribuiria sobremaneira para tal reconhecimento.
Fica evidente a necessidade do reconhecimento do DVRT pelo MS, com a devida publicação do protocolo de complexidade diferenciada, abordando orientações sobre o seu manejo, vigilância, promoção, proteção à saúde e reabilitação. A inclusão na lista da Previdência traria resultados positivos em termos de benefícios compensatórios. Na sua ausência, o nexo vem sendo provado caso a caso ou na Justiça do Trabalho, de maneira mais custosa e demorada. A inclusão do DVRT na lista de notificação compulsória proporcionaria uma compreensão mais clara sobre a realidade epidemiológica, desde que vencido o desafio da subnotificação.
Registra-se, por fim, que o movimento de busca pelo reconhecimento do DVRT deve ancorar-se, sobretudo, na perspectiva do nexo entre o trabalho e a saúde vocal daqueles que utilizam a voz profissionalmente, com a missão de que as condições e características do próprio trabalho sejam o objeto de intervenções de promoção e proteção da saúde vocal desses trabalhadores. Tal concepção fortalecerá a necessidade de construção de ambientes e condições de trabalho mais saudáveis, que permitam a satisfação e o pleno exercício profissional, sem o comprometimento da saúde e favorecendo uma melhor qualidade de vida.
PS: Entre a data de aprovação do artigo e sua efetiva publicação, o Ministério da Saúde, por meio da Coordenação Geral de Saúde do Trabalhador (CGSAT/DSAT/SVS/MS), anunciou a publicação oficial do Protocolo DVRT, em videoconferência realizada no dia 31 de julho de 2018. O Protocolo atualizado encontra-se disponível para consulta no link: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/disturbio_voz_relacionado_trabalho_dvrt.pdf