versão impressa ISSN 1677-5449versão On-line ISSN 1677-7301
J. vasc. bras. vol.14 no.2 Porto Alegre abr./jun. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.0081
As complicações locais de uma lesão arterial penetrante incluem hematoma, pseudoaneurisma (PSA) e formação de fístula arteriovenosa (FAV)1. O fato de não existirem grandes estudos epidemiológicos sobre a prevalência de fístulas arteriovenosas (FAVs) pós-traumáticas e de pseudoaneurismas (PSAs) deve-se, provavelmente, à não percepção da formação da lesão e ao pequeno número de casos relatados; contudo, a incidência dessa lesão tende a crescer devido ao aumento da violência urbana nos últimos anos1,2.
Relatamos um caso de paciente portador de PSA do ramo descendente da artéria femoral profunda, acompanhado de FAV, secundário a trauma penetrante (arma branca), tendo sido tratado através de técnica endovascular.
Paciente do sexo masculino, com 20 anos de idade, vítima de agressão por arma branca, apresentando ferimento em face posterior, terço médio, da coxa esquerda. Ao exame inicial, não apresentava isquemia distal ou outros indícios locais de lesão arterial troncular, tendo sido realizada sutura da lesão e posterior alta hospitalar.
Após dez dias decorrentes do trauma, paciente retornou ao pronto-socorro com quadro de tumoração dolorosa não pulsátil em face medial da coxa esquerda, sem sinais infecciosos, com pulsos distais amplos e simétricos. Permaneceu internado para realização de arteriografia, que evidenciou a presença de PSA associado à FAV na porção distal do ramo descendente da artéria femoral profunda esquerda (Figura 1). Em decorrência do difícil acesso cirúrgico da lesão, optou-se pelo tratamento endovascular através do cateterismo superseletivo e da embolização percutânea do ramo arterial nutridor da cavidade pseudoaneurismática, com micromolas metálicas de destaque controlado, selando, assim, completamente, a lesão arterial nutridora da neocavidade (Figura 2). Controle angiográfico imediato evidenciou ausência de opacificação do PSA, bem como da comunicação arteriovenosa (Figura 3). O paciente teve um pós-operatório sem intercorrências, recebendo alta no segundo dia pós-operatório para acompanhamento ambulatorial. O US-Doppler colorido arterial de controle (30 dias) confirmou ausência de fluxo no pseudoaneurisma e, clinicamente, houve regressão importante do abaulamento da face medial da coxa esquerda.
Figura 1. Arteriografia demonstrando opacificação do pseudoaneurisma e da comunicação arteriovenosa.
A artéria femoral profunda emite ramos proximais para o quadril (artérias circunflexas femorais medial e lateral) antes de descender profundamente na coxa, adjacente à borda medial do fêmur (ramo descendente)3. Sua localização, no interior do compartimento muscular, torna-a protegida, sendo infrequente sede de lesões arteriais traumáticas1. A maioria das lesões relatadas é decorrente do tratamento cirúrgico de lesões ósseas do fêmur proximal ou, menos frequentemente, por espículas ósseas decorrentes das próprias fraturas nessa região4,5. PSAs, ou falsos aneurismas, são o resultado de uma ruptura contida da parede arterial; de acordo com sua etiologia, podem ser classificados em: adquiridos (trauma penetrante ou contuso), iatrogênicos (por exemplo, acessos vasculares e cirurgias ortopédicas) e espontâneos (vasculites e infecções)5. Com a lesão da parede arterial, há a formação de fluxo pulsátil para o espaço perivascular, levando à dissecção por entre os tecidos circunvizinhos e culminando na formação de uma neocavidade pressurizada pelo contato direto com a corrente sanguínea6. Por não possuírem as três camadas da parede arterial, apresentam alto risco de ruptura7. No presente caso, como o ferimento por arma branca causou lesão de ramo venoso contíguo, além de o fluxo oriundo do ramo arterial encher a cavidade pseudoaneurismática, este era escoado pela lesão venosa contígua (FAV).
O diagnóstico de PSA da artéria femoral profunda é, frequentemente, adiado7. Isto se deve, principalmente, à natureza não palpável do aneurisma, situado no interior da musculatura da coxa3. Nos estágios iniciais, os sinais e sintomas sutis, como dor, edema e formação de hematoma causado pela lesão expansiva, muitas vezes são pouco exuberantes e, frequentemente, desprezados1,5. À medida que o pseudoaneurisma aumenta, pode surgir hematoma pulsátil palpável, com sopro ou frêmito (caso haja FAV concomitante)4. O efeito de massa de um hematoma ou grande PSA pode levar a necrose da pele ou compressão de nervos e vasos5. No presente caso, o retardo do diagnóstico deveu-se ao mecanismo do trauma (lesão por arma branca fora de trajeto vascular) e à ausência de sinais clínicos de lesão vascular ao exame físico inicial.
Vários exames complementares de imagem podem ser utilizados para confirmar o diagnostico de PSA de artéria femoral profunda, que incluem a ultrassonografia com Doppler colorido, a ressonância magnética nuclear/angiorressonância, a tomografia computadorizada contrastada e a arteriografia com subtração digital1,5. A arteriografia com subtração digital é considerada o padrão ouro no diagnóstico dos PSAs1, pois pode diagnosticar com precisão o tamanho e o local da lesão, a presença de vasos nutridores e a permeabilidade da árvore arterial distal, além de poder ser utilizada tanto para diagnóstico quanto para terapia1,3,7.
Recentemente, o tratamento endovascular tem surgido como alternativa ao tratamento cirúrgico aberto, mesmo em portadores de lesões arteriais traumáticas, em especial naquelas lesões em que se antecipa dificuldade de controle operatório arterial proximal e/ou distal, e naquelas lesões arteriais e venosas associadas7,8. Outra vantagem é o menor tempo de internação e de retorno dos pacientes às suas atividade habituais7-9.
As modalidades da terapêutica endovascular dos PSAs são as embolizações com cianoacrilato (cola) ou molas (fibradas ou de platina), e a utilização de stents (revestidos ou não)7. As molas são dispositivos metálicos destinados a causar trombose permanente dos vasos, sendo utilizadas principalmente em aneurismas saculares e nos PSAs8,9. Podem ser de liberação controlada, permitindo um posicionamento mais preciso, ou de liberação livre7,9.
Pode-se concluir, com o presente relato, que a utilização do tratamento endovascular através da embolização de lesões traumáticas, como PSAs e FAVs, pode ser eficaz e que, em pacientes selecionados, essa técnica pode figurar como primeira opção terapêutica.