versão impressa ISSN 1677-5449versão On-line ISSN 1677-7301
J. vasc. bras. vol.14 no.4 Porto Alegre out./dez. 2015 Epub 01-Dez-2015
http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.04115
Hematúria intratável secundária a hemorragias vesicais e prostáticas são potencialmente letais e representam um desafio terapêutico1-3.
Causas de hematúria maciça incluem carcinoma de bexiga, cistite actínica, cistite induzida por ciclofosfamida, ressecção transuretral da próstata, carcinoma prostático1,2,4, fístula arteriovesical traumática, iatrogênica ou espontânea5.
Em muitos pacientes, a hematúria não pode ser controlada por medidas conservadoras, como irrigação vesical, instilação de formalina, nitrato de prata, estrogênio, fator de crescimento epidérmico, aumento da pressão hidrostática intravesical, oxigenoterapia hiperbárica, ou por procedimentos endoscópicos com eletrocoagulação, hemostasia a laser ou argônio1-4,6.
A cistectomia nem sempre é uma opção, já que nesse cenário os pacientes, frequentemente, apresentam alto risco cirúrgico1,2,4.
A embolização arterial representa uma alternativa minimamente invasiva, segura e capaz de controlar a hematúria por sangramentos vesicais1,5.
Paciente de 46 anos, submetida a tratamento radioterápico por neoplasia de colo de útero há 14 anos. Há dois anos foi submetida a novo ciclo de tratamento, o qual incluiu novas sessões de radioterapia.
Apresentou inúmeros episódios de hematúria com intensidade progressiva e necessidade de cateterismos vesicais frequentes devido à retenção urinária por coágulos. Em um intervalo de seis meses, necessitou de três internações hospitalares para transfusão de concentrado de hemácias e foi submetida a duas cistoscopias para evacuação de coágulos e a cauterizações para hemostasia vesical. Durante um período de remissão de sangramento, a paciente foi encaminhada para avaliação pelo cirurgião vascular quanto à embolização de artérias viscerais. O procedimento acabou sendo realizado em caráter de urgência, quando a paciente foi internada em unidade de terapia intensiva por agravamento do estado geral e por novo episódio de hematúria franca, que fez com que os níveis de hemoglobina atingissem 6,6 mg/dl.
O procedimento foi realizado sob anestesia geral, por meio de punção retrógrada da artéria femoral comum direita e da implantação de um introdutor angiográfico 5F. Cateteres pigtail e cobra curva 2 5F foram usados para as angiografias a partir da aorta abdominal e das artérias ilíacas internas. Identificaram-se hipervascularização na pelve e extravasamento de contraste na topografia vesical. As angiografias superseletivas demonstraram que o sangramento estava relacionado não apenas às artérias vesicais, mas a ramos anormais provavelmente desenvolvidos em resposta à radioterapia. Todos os pedículos arteriais identificados como associados ao sangramento foram cateterizados de modo superseletivo com microcateter 3F e embolizados com micropartículas do tipo emboesferas (Medical ®) de 500 a 700 µm. A angiografia de controle demonstrou importante diminuição da hipervascularização pélvica e ausência de extravasamento de contraste na topografia vesical (Figura 1).
Figura 1 (A) aortografia pré-embolização; as setas apontam pedículos arteriais associados à hemorragia; as pontas de seta mostram imagens compatíveis com o extravasamento de contraste; observar a hipervascularização na topografia vesical; (B) aortografia pós-embolização; observar a diminuição da vascularização na topografia vesical, quando comparada com a Figura 1A; (C, E, e G) cateterismos superseletivos de pedículos (setas) associados ao sangramento (pontas de seta); (D, F e H) angiografias de controle após a oclusão dos pedículos embolizados (setas).
A paciente retornou à UTI para suporte de pós-operatório e foi transferida para o apartamento no 1º pós-operatório. A hematúria apresentou-se menos intensa desde o pós-operatório imediato e diminuiu gradualmente. A irrigação vesical da paciente foi descontinuada no 2º pós-operatório, quando já apresentava hematúria discreta, que foi interpretada como residual, já que não houve novas quedas hematimétricas. Nos primeiros dias após a embolização, a paciente queixava-se de dor leve a moderada no baixo ventre, sem alterações relevantes à palpação da região. Esse achado foi interpretado como síndrome pós-embolização e melhorou com sintomáticos. A paciente permaneceu internada até o 5º pós-operatório para vigilância quanto a uma eventual necrose de bexiga e recebeu alta sem intercorrências.
A paciente vem sendo acompanhada há nove meses. Não houve necessidade de novas internações, hemotransfusões ou irrigações vesicais, no entanto a paciente desenvolveu uma incontinência urinária e passou a referir discreta hematúria após situações de aumento da pressão intra-abdominal, como o esforço defecatório. Apesar de estar fazendo quimioterapia por uma metástase pulmonar diagnosticada, a paciente refere uma marcante melhora da qualidade de vida.
Embora a técnica de embolização seletiva das artérias vesicais tenha sido descrita há mais de 30 anos7, os poucos artigos publicados sobre o tema2 são representados, principalmente, por relatos de casos ou de pequenas séries. Além disso, uma busca nas bases de dados PubMed, Bireme e SciELO não detectou nenhum trabalho brasileiro sobre o tema.
Quando medidas mais conservadoras e procedimentos endoscópicos urológicos não são capazes de controlar o sangramento de origem vesical, a hematúria franca é potencialmente letal e representa um desafio terapêutico1,2.
Em pacientes espoliados pelo sangramento intenso e com o estado geral comprometido por neoplasias avançadas, procedimentos cirúrgicos de maior complexidade, como a ligadura de artérias hipogástricas, derivacões urinárias4 e cistectomia radical com ou sem confecção de neobexiga, estão associados a altas taxas de morbidade e de mortalidade4,6.
Caso a etiologia do sangramento ainda não tenha sido identificada e, durante a cistoscopia, uma hemorragia de aspecto pulsátil seja percebida, uma angiotomografia ou uma arteriografia pode ser solicitada para complementação diagnóstica5, sendo que esta última é capaz de detalhar com maior precisão a vascularizacão pélvica. Dependendo do padrão de sangramento identificado, o procedimento angiográfico diagnóstico pode ser convertido em terapêutico.
Antes da embolização, o paciente deve receber hidratação endovenosa vigorosa, a bexiga deve ser irrigada, os coágulos, se houver, devem ser evacuados e a hemotransfusão deve ser feita conforme a necessidade2. Embora o procedimento possa ser realizado sob anestesia local, a escolha da técnica anestésica deve levar em consideração o estado geral e a necessidade de colaboração do paciente no que se refere a manter-se imóvel durante um proedimento de duração imprevisível, já que os cateterismos superseletivos dos ramos nutridores do sangramento podem ser desafiadores.
Alguns aspectos angiográficos e técnicos devem ser considerados quando uma embolização vesical é proposta. A artéria vesical inferior é um ramo da divisão anterior da artéria hipogástrica. Esse vaso irriga o fundo da bexiga, as vesículas seminais, o ducto deferente e a próstata, e é análogo à artéria vaginal no gênero femino. Para alguns autores, essa artéria existe em ambos os gêneros e, no caso das mulheres, seria um dos ramos da artéria vaginal. Origens alternativas da vesical inferior incluem um tronco comum com a glútea superior e a pudenda ou a emergência diretamente desta última2. A artéria vesical superior, por sua vez, emite ramos para as porcões mais altas da bexiga e segmentos distais dos ureteres2.
A grande variação anatômica2 faz com que o procedimento vascular intervencionista seja baseado na identificação de sinais que denunciam o vaso a ser ocluído. Áreas de hipervascularizacão são mais frequentemente identificadas do que o próprio extravasamento de contraste2; artérias espiraladas ou ectasiadas e a retenção de contraste em ramos terminais também sugerem associação com o sangramento.
Todo esforço deve ser empregado para a embolizacão bilateral ser a mais seletiva posível2.
Hematúria secundária à cistite actínica é, frequentemente, associada a sangramentos nutridos por vários vasos, como o demonstrado neste caso; porém, quando apenas uma das artérias vesicais estiver aparentemente implicada, a embolização contralateral pode ser executada em um segundo tempo para diminuir o risco de necrose vesical4,6. Como os relatos na literatura são escassos, não há consenso sobre qual o intervalo ideal entre as embolizações e se essa estratégia tem impacto real na proteção contra a necrose vesical. Além disso, a maioria dos autores defende a embolização bilateral simultânea nas hematúrias importantes2,6.
Há uma variedade de cateteres e de microcateteres que podem ser usados nos diferentes tempos do procedimento. A escolha deles é influenciada pela anatomia das artérias, disponibilidade e preferência do cirurgião endovascular.
Grande variedade de agentes embolizantes já foi usada para embolização de artérias vesicais. Em situação de urgência e de indisponibilidade de materiais não absorvíveis, materiais hemostáticos absorvíveis como o Gelfoam® podem ser manipulados para essa finalidade. Já foi descrito também o uso de micropartículas inabsorvíveis com diâmetro calibrado entre 300-500 µm e 500-700 µm2 e de cola cirúrgica de n-butil-2-cianoacrilato misturada a lipiodol na proporção de 1:3 para tornar o material radiopaco2.
Quando o cateterismo superseletivo das artérias vesicais não for possível, a oclusão proximal das artérias não nutridoras do sangramento com molas pode ser feita antes da embolização com material particulado (as molas desviam as partículas em direção ao vaso-alvo e protegem o leito distal dos vasos não associados à hemorragia)1.
A influência do tipo de agente embolizante é controversa, pois a escassez de trabalhos na literatura não permite conclusões, mas a preferência atual da maior parte dos autores é por agentes permanentes particulados, como as microesferas calibradas usadas neste caso2.
O sucesso terapêutico é atingido em 90% dos casos, quando as artérias vesicais podem ser identificadas2.
Na literatura, o sucesso clínico precoce foi definido como ausência de hematúria macroscópica, não formação de coagúlos intravesicais, não ocorrência de queda maior que 2,0 mg/dl na hemoglobina e/ou falha das medidas mais conservadoras para o manejo de hematúria no primeiro mês após a embolização1. O ressangramento é mais frequente nos casos de cistite actínica do que nos casos de neoplasia local, principalmente pela maior expectativa de vida do paciente2. Neste caso, a paciente vem sendo acompanhada há nove meses e mantendo boa evolucão.
As complicações do método incluem síndrome pós-embolização (manifestação autolimitada de dor, náusa, vômito e febre), dor no glúteo e no períneo, síndrome de Brown-Séquard devido a anastomoses entre as artérias vesicais e artérias sacrais (o que deve ser checado na arteriografia), paresia do glúteo e necrose cutânea; necrose vesical é rara pela rica vascularização do órgão2,6.
Necrose de bexiga e outras complicações isquêmicas graves foram relatadas com mais frequência nas casuísticas mais antigas, quando a oclusão bilateral das artérias hipogástricas era executada6. Estudos mais modernos usando a técnica de embolização superseletiva relatam taxas de complicação menores que 10%2.
Internações frequentes para transfusão sanguínea e irrigação vesical não são práticas e comprometem a qualidade de vida do paciente, e a cirurgia radical pode ser de alto risco1,2.
O procedimento promove o controle imediato da hemorragia potencialmente fatal, melhora os cuidados paliativos e a qualidade de vida, diminuindo a necessidade de tranfusões, irrigação vesical e cistoscopia frequentes2,6.
Na maioria dos casos, a embolização é bem tolerada, diminui a necessidade de cirurgia2,6 e pode ser repetida, caso necessário6. Em caso de necessidade da intervenção cirúrgica, o estado geral do paciente estará mais preservado e a necessidade de transfusões intraoperatórias tende a ser menor6.