versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.114 no.1 São Paulo jan. 2020 Epub 10-Fev-2020
https://doi.org/10.36660/abc.20190809
A importante questão da mortalidade intra-hospitalar em endocardite infecciosa (EI) é discutida por Marques et al.,1 A mortalidade intra-hospitalar na coorte International Collaboration in Endocarditis (ICE) (2000-2005) foi de 18%,2 semelhante à taxa de 17% na grande coorte europeia publicada recentemente,3 inaceitavelmente altas, considerando que a maioria dos pacientes incluídos era de países desenvolvidos e registros voluntários.
No presente artigo, a mortalidade hospitalar foi de 42/134 (31,3%), superior ao esperado. Os fatores de risco identificados para mortalidade intra-hospitalar foram etiologia por Staphylococcus aureus, hemoculturas negativas, evidência de obstrução valvar no ecocardiograma, insuficiência cardíaca secundária à EI e choque séptico. A cirurgia cardíaca foi um fator protetor para mortalidade. Para mim, a mensagem mais importante é “a cirurgia cardíaca foi um fator protetor para mortalidade”. Isso foi demonstrado em vários estudos.1-6
O tratamento cirúrgico é necessário em aproximadamente metade dos pacientes com EI devido a complicações graves, das quais a insuficiência cardíaca (aguda ou crônica agudizada) é a mais frequente, ocorrendo em 40 a 60% dos casos.7 Representa a indicação mais comum de cirurgia em EI de válvula nativa esquerda. A cirurgia pode precisar ser realizada em caráter de emergência (dentro de 24 horas) ou de urgência (dentro de alguns dias, 7 dias), independentemente da duração do tratamento com antibióticos, ou após 1 ou 2 semanas de tratamento com antibióticos.7 Embora não esteja claro qual é o melhor momento,6,8 certamente antes do instalação da insuficiência cardíaca aguda parece ser uma boa hora.9
Uma revisão sistemática e uma meta-análise avaliaram artigos em que foram realizadas intervenções cirúrgicas precoces versus tardias ou tratamento conservador para EI.5 A definição utilizada para cirurgia valvar precoce nesta publicação foi a realização de cirurgias com 20 dias ou menos de diagnóstico de EI ou durante a hospitalização inicial. A mortalidade por todas as causas foi mencionada em 21 estudos e, no grupo que foi submetido à cirurgia precoce, foi significativamente menor do que no grupo sem intervenção cirúrgica precoce (OR 0,61, IC 95% 0,50 a 0,74, p < 0,001). A heterogeneidade foi alta entre os estudos incluídos. No entanto, em relação à mortalidade intra-hospitalar, um total de 11 estudos relatou-a e não houve diferença significativa entre os grupos de cirurgia precoce e terapia convencional.5
Wang et al.,8 abordaram a questão do momento da cirurgia em pacientes com diagnóstico definitivo de EI do lado esquerdo, de acordo com os critérios de Duke modificados que foram submetidos a cirurgia cardíaca durante a hospitalização-índice.8 Essa foi uma coorte prospectiva do estudo ICE-PLUS e avaliou 485 pacientes submetidos à cirurgia durante a mesma hospitalização. É importante observar que os casos de EI relacionados a dispositivo foram excluídos da análise, assim como acidente vascular cerebral hemorrágico antes da cirurgia, EI nosocomial e realização da cirurgia mais de 60 dias após a hospitalização. Um modelo de regressão logística multivariada foi adequado para calcular um escore de propensão (probabilidade) para o tratamento cirúrgico precoce. A mediana do tempo até a cirurgia foi de 7 dias ([IIQ] 2-15). Pacientes submetidos à cirurgia mais precocemente apresentaram uma porcentagem menor de insuficiência cardíaca preexistente (antes do diagnóstico de EI), mas uma taxa mais alta de insuficiência cardíaca aguda; não foi encontrada diferença na sobrevida em 6 meses entre os quartis (Quartil 1, dia da cirurgia 0 ou 1; Q2, dia 2 a 6; Q3 dia 7 a 15; Q4 mais de 15 dias) do tempo cirúrgico. O risco de mortalidade em 6 meses foi maior nos pacientes submetidos à cirurgia nos primeiros 2 dias após a hospitalização ou transferência. Os autores concluíram que o uso rotineiro de cirurgia muito precoces para qualquer indicação não é apoiado pelos dados atuais.8
O estudo EURO-ENDO envolveu uma coorte prospectiva de 3.116 pacientes adultos (2.470 da Europa), nos anos de 2016 a 2018 com diagnóstico de EI provável ou definitivo.3 A cirurgia cardíaca foi indicada em 2.160 (69,3%) pacientes, mas no final, foi realizada em apenas 1.596 (73,9%), sendo que a mortalidade hospitalar ocorreu em 532 (17,1%) pacientes e foi mais frequente na EI de prótese valvar.9 Os preditores independentes de mortalidade foram o índice de Charlson, creatinina >2 mg/dL, insuficiência cardíaca congestiva, maior diâmetro da vegetação >10 mm, complicações cerebrais, abscesso e falha na realização da cirurgia, quando indicada. As indicações cirúrgicas foram hemodinâmicas em 46,3% dos casos, embólicas em 32,1% e infecciosas em 64,2% (este último percentual muito diferente de outras grandes séries de EI).
A cirurgia foi realizada de maneira emergencial em 6,7%, como urgência em 24,8%, além da 1ª semana em 32% e de maneira eletiva em 36,5%. Ter uma indicação para cirurgia e não ser submetido a ela foi o grupo com maior mortalidade no estudo e constituiu a principal mensagem do artigo. É importante ressaltar que o principal motivo para a não realização da cirurgia foi a morte dos pacientes antes da cirurgia (53%).3
Está claro que é importante encaminhar precocemente para avaliação cirúrgica por uma equipe experiente no tratamento da endocardite e realizar a cirurgia em tempo hábil. O prazo entre a indicação cirúrgica e a cirurgia foi de 2 semanas no artigo de Marques et al.1 Apenas um terço dos pacientes foi operado e 2/3 dos pacientes não tiveram indicação de cirurgia devido a comorbidades significativas.1
Em um estudo observacional multicêntrico sobre EI, o tratamento cirúrgico para EI foi realizado em 733 pacientes, o que representou 57% de todos os pacientes e 76% dos pacientes com indicação cirúrgica.6 A média da idade foi 57 anos para pacientes submetidos à cirurgia, estatisticamente diferente em comparação aos 68 anos para aqueles que não foram submetidos à cirurgia. Os pacientes submetidos à cirurgia tiveram maior probabilidade de apresentar nova insuficiência mitral ou aórtica moderada ou grave, perfuração valvar ou abscesso e embolização. Por outro lado, pacientes que não foram submetidos ao tratamento cirúrgico para EI tiveram maior probabilidade de apresentar comorbidades, como doença arterial coronariana, insuficiência cardíaca anterior, diabetes mellitus e doença renal moderada / grave (os achados de comorbidades são semelhantes3) e de ter infecção causada por S. aureus. A mortalidade intra-hospitalar foi de 26% vs. 14,8% e mortalidade em 6 meses foi de 31,4% vs. 17,5% entre os pacientes que não foram submetidos à cirurgia em comparação com os que foram submetidos, respectivamente. Os motivos da não realização da cirurgia para aqueles que tinham indicações cirúrgicas foram um prognóstico ruim, independentemente do tratamento (33,7%), instabilidade hemodinâmica (19,8%), óbito antes da cirurgia (23,3%), acidente vascular cerebral (22,7%) e sepse (21,0 %). A sepse foi o fator único associado ao manejo não cirúrgico da EI por S. aureus em comparação com outras causas microbiológicas, e a mediana do escore STS-IE para pacientes que não tinham EI por S.aureus foi maior (32) em comparação com 24 em pacientes não-S. aureus, com significância estatística.
No estudo de Marques et al.,1 como esperado, o choque séptico foi associado à mortalidade, com um OR de 20. A sepse continua sendo um desafio, com taxas de mortalidade muito altas em todo o mundo, principalmente quando associada ao choque.10 As principais medidas terapêuticas são abordadas na Surviving Sepsis Campaigns, das quais a versão mais recente reforça a rapidez no início de fluidos intravenosos, coleta de hemoculturas, início de antibióticos apropriados logo após isso, medidas de lactato e, principalmente, início das drogas vasoativas prontamente (em 1 hora) se os fluidos intravenosos não normalizarem a pressão arterial e os níveis de lactato.11
Apesar dos benefícios da cirurgia na sobrevivência, muitas mortes ocorrem após a cirurgia, e os escores prognósticos da cirurgia valvar na EI foram debatidos nos últimos anos. As taxas de mortalidade no estudo EUROENDO3 mostram que, a mortalidade hospitalar pós-cirurgia cardíaca foi de 170/532 (32%) no geral, 74/187 (39,6%) se fosse EI protética, e 79/286 (27,6%) se fosse EI de válvula nativa. Um pequeno estudo recente de nossa equipe incluiu 154 pacientes submetidos a cirurgia para EI de 2006 a 2016; eram em sua maioria do sexo masculino (66,9%) e a média de idade era de 42,7 ± 15 anos.12 Valvopatia reumática estava presente em 31,2%; os microrganismos isolados mais frequentemente foram estreptococos do grupo viridans (29,9%), seguidos por culturas negativas em 26,6% dos pacientes. A principal indicação cirúrgica foi insuficiência cardíaca (65,6%), e a mortalidade hospitalar foi de 17,5%. Na análise multivariada, as variáveis consideradas estatisticamente significantes para óbito foram bloqueio atrioventricular, choque cardiogênico, diabetes mellitus insulinodependente, Gram-negativos não HACEK como etiologia da EI e uso de inotrópicos. A sensibilidade calculada para isso foi de 88,9% e a especificidade, de 91,8%; a AUC foi de 0,97. Isso foi chamado de escore INC-Rio e um aplicativo para foi criado para Android (endocarditeinc.org).
No presente estudo,1 a EI com hemocultura negativa foi associada à mortalidade; uma publicação do nosso grupo mostrou que, embora não houvesse diferença na mortalidade para EI com hemocultura positiva e EI com hemocultura negativa, esta última estava associado a mais insuficiência cardíaca, que é o principal fator associado à morte na EI e o principal motivo para indicar cirurgia cardíaca na maioria das séries.13
Em conclusão, o trabalho de Marques et al, apesar de limitado em suas inferências devido à natureza de estudo retrospectivo, de centro único, é importante, pois chama a atenção dos cardiologistas para a questão da mortalidade muito alta associada a EI, principalmente em um centro sem cirurgia cardíaca. A mensagem importante é dada: a EI do lado esquerdo é frequentemente uma doença cirúrgica, e um “endocarditis team” é mais rápido em reconhecer e tratar melhor essa condição, especialmente no que diz respeito à indicação de cirurgia, esperamos que no momento mais apropriado.