versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.113 no.4 São Paulo out. 2019 Epub 04-Nov-2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190198
A avaliação da função sistólica do ventrículo esquerdo sempre foi uma das principais atribuições da ecocardiografia. O grau de disfunção sistólica ventricular é um importante preditor de desfecho para um grande número de doenças, incluindo cardiopatia isquêmica, miocardiopatias, valvopatias e cardiopatias congênitas. Nessa seara a fração de ejeção reina soberana há muitas décadas, mas apesar de ser um parâmetro que, na maioria das vezes, pode informar o real estado da função global ventricular, em muitas situações pode estar normal na presença de disfunção sistólica ou diastólica evidente. Exemplos clínicos conhecidos são os diversos casos de insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada (ICFEP) ou portadores de cardiomiopatia hipertrófica, entre outros. Por esse motivo, há muito tempo que se procura um índice que identifique disfunção ventricular precocemente e desvinculado da fração de ejeção.
A avaliação da deformação miocárdica pela ecocardiografia surgiu com as técnicas do strain e strain rate, ainda derivadas do Doppler tecidual, e foi desenvolvida na Norwegian University of Science and Technology, em Trondheim, na Noruega há cerca de vinte anos.1,2 Em 2004 já havíamos demonstrado com essa técnica a presença de disfunção sistólica incipiente em portadores da forma indeterminada da doença de Chagas.3 Posteriormente, em 2006, surgiu a técnica do speckle tracking que realiza a quantificação da deformação miocárdica pelo eco bidimensional e é independente do ângulo de insonação (uma limitação da técnica anterior).4 Essa técnica avançou até os dias de hoje e permite medir a deformação longitudinal, radial e circunferencial dos diversos segmentos miocárdicos (strain). O valor médio do percentual de deformação longitudinal de cada segmento é o que chamamos de strain longitudinal global (SLG) e esse índice tem se mostrado um excelente parâmetro de avaliação da função sistólica, sensível o suficiente para detectar comprometimento incipiente, quando a fração de ejeção ainda está normal, e apresenta valor prognóstico superior a ela em diversas situações clínicas.5-7
Nesse número dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia o Dr. Ronaldo Campos Rodrigues nos apresenta um excelente trabalho onde estudou a função sistólica do ventrículo esquerdo pela quantificação do SLG em portadores de HIV, sem e com terapia antirretroviral, comparando com grupo controle.8 Observou que os valores do SLG foram significativamente menores nos indivíduos infectados do que no controle, independentemente de estarem ou não em tratamento. Todos apresentavam fração de ejeção normal e o único grupo que apresentou o SLG anormal (inferior a -18%) foi o de indivíduos infectados sem tratamento. Seus achados demonstram a alta sensibilidade desse parâmetro ecocardiográfico em detectar disfunção sistólica incipiente e nos leva a pensar que o tratamento deve diminuir a agressão miocárdica pelo vírus. Disfunção sistólica precoce também foi encontrada por Mendes et al.,9 em um grupo semelhante.
Estes e outros trabalhos apontam para uma mudança de paradigma no estudo da função ventricular. Acredito que, em breve, os cardiologistas não irão se satisfazer apenas com o valor da fração de ejeção, mas irão também perguntar pelo valor do SLG para uma avaliação mais profunda e acurada da função sistólica ventricular.