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Enfrentando o racismo nos serviços de saúde

Enfrentando o racismo nos serviços de saúde

Autores:

Luis Eduardo Batista,
Sônia Barros

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.33 supl.1 Rio de Janeiro 2017 Epub 08-Maio-2017

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00090516

A importância da informação raça/cor (quesito cor) no desvelar das desigualdades raciais em saúde e na construção de políticas públicas é o tema deste texto.

Partimos do pressuposto que raça/cor, a classe social, gênero e geração são estruturantes em nossa sociedade, interferindo nos desfechos da saúde, da doença e morte 1, e que uma das estratégias para enfrentar estas iniquidades é avançar nas políticas de promoção da equidade dentro de uma política sistêmica e universal.

Nas décadas de 1970-1980 a produção acadêmica, ao estabelecer a relação entre direitos sociais, cidadania e saúde, ancorou-se nos pilares do conceito de classe social para evidenciar a relação entre população e saúde, morbimortalidade e seus diferenciais classe, socioeconômicos e culturais, estabelecidos no tempo, espaço, indivíduos e populações 2,3.

Na década de 1990, emergem como objeto de investigação no campo da saúde coletiva as reflexões sobre a demografia das desigualdades, e com elas as categorias de gênero, homossexualidade, heterossexualidade, identidades e saúde 4, assim como a construção social do risco associada às relações de poder e hierarquia socialmente construídas 5. Mas, se estamos falando de relações de poder e hierarquia socialmente determinadas, como se configuravam as desigualdades dentro das desigualdades? Haveria diferenciais no desfecho da saúde entre mulheres de diferentes classes sociais e diferentes raças? Que relação há entre gênero, classe, raça/cor e saúde?

Para Saffioti 6 (p. 9), esses elementos perfazem um nó apertado, cuja figura é utilizada para mostrar simultaneamente “...a simbiose entre o racismo, o sexismo e as classes sociais, assim como deixar aberta a possibilidade de se puxar uma ou outra ponta dos eixos que o formam, para se realizar um escrutínio mais acurado”.

Ainda em 1990, lideranças do movimento negro, com base nos pressupostos teóricos da saúde coletiva e dos indicadores que informam desigualdades de gênero e raça/cor, indagam sobre a relação existente entre racismo e saúde, instando a gestão pública a incluir o quesito raça/cor nos sistemas de informação em saúde.

A primeira experiência dessa inclusão ocorreu no Município de São Paulo (Portaria nº 696/907). Em 1996, o quesito cor foi incluído no Sistema de Informações sobre Mortalidade e no Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos do Ministério da Saúde (Portaria GM/MS nº 3.947/988). O histórico dessa implementação pode ser consultado em Adorno et al. 9.

A presença da informação raça/cor, quesito cor, nos sistemas de informação de mortalidade e de nascidos vivos possibilitou a realização de estudos sobre diferenciais de mortalidade e morbidade segundo sexo, idade e raça/cor 10,11,12,13. Os dados epidemiológicos obtidos evidenciaram as iniquidades raciais nas condições de vida da população e seu impacto no perfil da morbimortalidade. A inclusão do quesito cor nos estudos sobre o acesso e qualidade dos serviços de saúde prestada à população, realizados por Kalckmann et al. 14, Leal et al. 15 e Diniz et al. 16, também evidenciaram desigualdades raciais e seu impacto na saúde.

Para dar resposta a essa realidade, foi criado o Comitê Técnico de Saúde da População Negra do Ministério da Saúde (Portaria nº 1.678/200417).

Uma das principais atribuições do Comitê foi elaborar texto sobre a política de atenção à saúde da população negra. Em 10 de novembro de 2006, o Conselho Nacional de Saúde aprovou a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). Em 2008, a PNSIPN foi pactuada na Comissão Intergestores Tripartite e publicada pelo Ministério da Saúde em 2009 (Portaria nº 992/200918).

Enfrentando o racismo nos serviços de saúde: a implementação da PNSIPN

A PNSIPN tem como marca o “reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais das condições de saúde”. Seu objetivo é “promover a saúde integral da população negra, priorizando a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e à discriminação nas instituições e serviços do SUS18.

Em 2014, a fim de investigar o progresso da implementação da PNSIPN, desenvolvemos o projeto de pesquisa Avaliação do Processo de Implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: Indicadores de Monitoramento e Avaliação.

Desenvolvido em três etapas, o projeto foi iniciado com o uso de um instrumento aplicado por meio eletrônico, aos gestores e às lideranças de movimentos sociais que atuam no campo da saúde da população negra. O instrumento é composto de 52 perguntas divididas em tópicos, sendo 11 de identificação pessoal do respondente; três sobre características do local de respostas; 21 objetivas, sobre as vivências e problemáticas identificadas na implementação da Política; e 17 abertas, sobre o que vinha sendo produzido e realizado para implementar a PNSIPN e que indicadores estavam sendo utilizados em seu monitoramento.

A segunda etapa, Indicadores de Enfrentamento do Racismo Institucional, sistematizou as respostas (entre abril e julho de 2016) com base nos dados qualitativos do questionário, constituindo um painel de monitoramento da PNSIPN: indicadores sociodemográficos, morbimortalidade e de gestão.

Na terceira, Validação dos Indicadores de Enfrentamento do Racismo Institucional, foram realizadas duas reuniões técnicas com representantes dos movimentos sociais, gestores municipais, gestores estaduais, representante da coordenação da PNSIPN do Ministério da Saúde, representante do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde e do Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Na primeira, discutiu-se dificuldades e estratégias para implementar a PNSIPN e os possíveis indicadores de morbimortalidade. Na segunda, discutiu-se como os possíveis indicadores sociodemográficos, de morbidade, mortalidade e de gestão podem vir a ser utilizados para monitorar e avaliar a implementação da PNSIPN.

Resultados iniciais da pesquisa realizada revelam que dentre as 27 Unidades da Federação, 7 secretarias estaduais de saúde responderam ao questionário. Dentre os 5.561 municípios, somente 32 responderam/relataram ter essa política implantada (Figura 1).

Figura 1 Avaliação da implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), Brasil, 2016. 

Segundo os respondentes, a PNSIPN dá certo quando há compromisso de gestores e técnicos, quando há uma efetiva coordenação do programa e quando o movimento social apoia a gestão.

Cinco estados e 12 municípios têm área técnica ou responsável técnico para desenvolver ações de combate ao racismo, ou seja, responsável pela condução da PNSIPN. A articulação entre setores e instituições se mostra um facilitador para a implementação da PNSIPN.

O processo de implementação da PNSIPN desenvolveu-se nas gestões de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Nesse período, a temática social foi colocada no centro do debate nacional, propiciando vários avanços sociais de consolidação de direitos; os movimentos negros, em diálogos com o Estado, consolidaram novas pautas e reivindicações, como acesso a políticas e serviços de saúde e educação de qualidade, que atendam especificamente às suas necessidades. No caso da PNSIPN, trata-se de uma política que está em implementação, como evidenciam nossos estudos.

Entretanto, nos últimos tempos, temos assistido ao avanço de forças conservadoras - força política ancorada no fundamentalismo conservador e ultraliberal na economia - que vem atacando vários direitos sociais, em especial aqueles que atendem às populações negra e indígena, a mulheres e comunidades de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros.

Os projetos fundamentalistas de poder avançam pelo Legislativo, pelo Executivo e o Judiciário. Nesse cenário, levantamos alguma questões: Que estratégias desenvolver para avançar na implementação de políticas de promoção da equidade? Que estratégias desenvolver para garantir direitos sociais? Que coalizões estabelecer para continuar implementando políticas para as populações em situação de vulnerabilidade?

Os dados epidemiológicos mostram a assimetria racial, o projeto de pesquisa encontrou pistas de como os gestores que pretendem enfrentar o racismo nos serviços de saúde podem atuar (1) estabelecer uma coordenação da política (área técnica/grupo condutor); (2) incluir a política nos instrumentos de gestão e definir alguns indicadores de monitoramento e avaliação da PNSIPN. Esse é um grande esforço que gestores, trabalhadores da saúde e sociedade civil precisam para promover e caminhar na direção de um sistema de saúde que a população merece e necessita.

A PNSIPN tem apenas 10 anos. Há um desconhecimento da população e dos profissionais de saúde de como o racismo impacta a vida, o acesso aos serviços e a qualidade da atenção. Os poucos gestores/gerentes que conhecem e assumem o compromisso em implementar a PNSIPN não sabem como fazê-lo, mas compreendem o impacto, a diferença que se pode fazer no perfil de morbimortalidade da população negra o combate ao racismo e à discriminação nas instituições e serviços de saúde.

Ainda há um longo caminho a percorrer, mas a descontinuidade ou interrupção da PNSIPN significará que os diferenciais de mortalidade e morbidade relacionados à raça/cor, já existentes, se agravarão. Como exemplo mais evidente, pode-se afirmar que as pessoas com doença falciforme continuarão a não merecer assistência na atenção básica; persistirá a morte precoce de negros e negras por causas evitáveis, ocasionando assim grande perda à sociedade brasileira do ponto de vista social, econômico e politico. Esse será um retrocesso no processo de democratização no sentido da diminuição das desigualdades sociais.

Na atual conjuntura brasileira, de 2016, com todas as proposições parlamentares e políticas de governo de cortes de recursos para as políticas públicas sociais, o orçamento da saúde não pode reduzir o que já é exíguo. A necessária organização de gestores, trabalhadores e sociedade civil para garantir direito sociais, deve atentar para as iniquidades raciais nas condições de vida da população e seu impacto no perfil de saúde.

REFERÊNCIAS

1. Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde Soc 2016; 25:535-49.
2. Laurell AC. A saúde-doença como processo social. In: Nunes EDN, organizador. Medicina social: aspectos históricos e teóricos. São Paulo: Global; 1983. p. 133-58.
3. Possas CA. Epidemiologia e sociedade: heterogeneidade estrutural e saúde no Brasil. São Paulo: Editora Hucitec; 1989.
4. Goldenberg P, Marsiglia R, Gomes MHA, organizadores. O clássico e o novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003.
5. Aquino EML. Gênero e saúde: perfil e tendências da produção científica no Brasil. Rev Saúde Pública 2006; 40:121-32.
6. Saffioti HIB. Prefácio. In: Silva MAM, organizador. Errantes do fim do século. São Paulo: Fundação Editora da Unesp; 1999. p. 5-9.
7. Secretaria Municipal da Saúde. Portaria nº 696. Diário Oficial da Cidade de São Paulo 1990; 30 mar.
8. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 3.947, de 25 de novembro de 1998. Aprova os atributos comuns a serem adotados, obrigatoriamente, por todos os sistemas e bases de dados do Ministério da Saúde, a partir de 1º de janeiro de 1999. Diário Oficial da União 1999; 14 jan.
9. Adorno R, Alvarenga AT, Vasconcelos MP. O quesito cor nos sistemas de informação. Estud Av 2004; 18:119-23.
10. Barbosa MISB. Racismo e saúde [Tese de Doutorado]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 1998.
11. Batista LE, Escuder MML, Pereira JCR. A cor da morte: causas de óbito segundo características de raça no Estado de São Paulo, 1999 a 2001. Rev Saúde Pública 2004; 38:630-6.
12. Lopes F. Para além da barreira dos números: desigualdades raciais e saúde. Cad Saúde Pública 2005; 21:1595-601.
13. Chor D, Lima CRA. Aspectos epidemiológicos das desigualdades raciais em saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2005; 21:1586-94.
14. Kalckmann S, Santos CG, Batista LE, Cruz VM. Racismo institucional: um desafio para a eqüidade no SUS? Saúde Soc 2007; 16:146-55.
15. Leal MC, Gama SGN, Cunha CB. Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001. Rev Saúde Pública 2005; 39:100-7.
16. Diniz S, Batista LE, Kalckamnn S. Desigualdades sociodemográficas e na assistência à maternidade entre puérperas no Sudeste do Brasil segundo cor da pele - dados do inquérito nacional Nascer no Brasil (2011-2012). Saúde Soc 2016; 25:561-72.
17. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 1.678, de 13 de agosto de 2004. Cria Comitê Técnico para subsidiar o avanço da eqüidade na Atenção à Saúde da População Negra, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2004; 16 ago.
18. Ministério da Saúde. Portaria nº 992, de 13 de maio de 2009. Diário Oficial da União; 2009; 14 mai.