versão impressa ISSN 0021-7557versão On-line ISSN 1678-4782
J. Pediatr. (Rio J.) vol.92 no.3 Porto Alegre mai./jun. 2016
http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2015.08.013
A função da barreira gastrointestinal (GI), a motilidade intestinal, a imunidade da mucosa e a capacidade digestiva/de absorção são significativamente subdesenvolvidas no neonato prematuro.1 Os neonatos prematuros apresentam um risco maior de desenvolver crescimento deficiente, infecções hospitalares e enterocolite necrosante (ECN) e de desenvolver uma microbiota intestinal diferente de neonatos amamentados de forma saudável.1,2 Essa está relacionada a uma maior incidência de parto cesáreo, redução da exposição à microbiota materna, aumento da exposição a organismos que colonizam unidades de terapia intensiva neonatais (UTINs), (várias rodadas de) antibióticos e atraso na nutrição enteral.3É debatida uma função dos probióticos no cuidado de recém-nascidos prematuros. Os probióticos são definidos como "microrganismos vivos que, quando administrados em quantidades adequadas, concedem benefícios à saúde do hospedeiro".4 Embora os relatos de aumento do crescimento e redução da incidência de ECN sejam animadores, muitos aspectos sobre os mecanismos de ação ainda não são claros.5,6 Os estudos usam diferentes cepas e dosagens, dificultam conclusões baseadas em evidências.5-7
Até agora, os pesquisadores normalmente selecionaram cepas pertencentes a espécies bacterianas naturalmente presentes na flora intestinal, como os lactobacilos ou bifidobactérias.8 A Saccharomyces boulardii CNCM I-745 (S. boulardii) é uma levedura probiótica isolada da casca de frutas como lichias, produzidas na Indochina.9 A S. boulardii foi mal estudada em neonatos prematuros e com baixo peso ao nascer. O objetivo deste estudo foi avaliar se a S. boulardii administrada em recém-nascidos prematuros alimentados com fórmulas com menos de 30 semanas de idade gestacional melhoraria o ganho de peso e o resultado clínico.
Neonatos prematuros estáveis alimentados com fórmula e internados na UTIN do Hospital Shengjing da Universidade de Medicina da China em Shenyang (China) foram incluídos nesse estudo prospectivo duplo-cego randomizado controlado feito de abril a julho de 2013. O consentimento informado foi obtido dos responsáveis pelos neonatos. O protocolo do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Universitário.
O tamanho da amostra havia sido calculado antes do início do estudo para um nível de significância p < 0,05 (bilateral) com uma potência de 80% (β = 0,2) para estimar o tamanho da amostra necessário, com desvio padrão de ganho de peso de 9 g/dia em ambos os grupos e uma diferença no ganho de peso de 5 g/dia entre os dois grupos. Isso resultou em um tamanho da amostra de 125 neonatos, considerando uma taxa de desistência de 20%.
Os critérios de inclusão foram neonatos nascidos no hospital alimentados com fórmula com idade gestacional de 30 a 37 semanas e peso ao nascer entre 1.500 e 2.500 g.
Os critérios de exclusão foram patologias neonatais graves, como complicações graves no nascimento, malformações GI, anomalias cromossômicas, imunodeficiência conhecida, hidropsia fetal, cateter venoso central, antifúngicos e probióticos. Todos os pacientes incluídos receberam nutrição parenteral e/ou fórmula para prematuros. Nenhum neonato recebeu leite materno. A nutrição enteral ou trófica mínima foi iniciada assim que possível, com 1 mL/kg/dia. A nutrição enteral mínima é a prática de fornecer como alimentação um pequeno volume de alimentos enterais para estimular o desenvolvimento do trato GI imaturo do neonato prematuro; isso melhora a atividade da enzima GI, a liberação de hormônios, o fluxo sanguíneo, a motilidade e a flora microbiana. Os benefícios clínicos incluem melhoria na tolerância ao leite, maior crescimento pós-natal, redução da sepse sistêmica e menor tempo de internação.10 Assim que a nutrição enteral mínima foi tolerada, o paciente foi aleatoriamente alocado para um de dois grupos à razão de 1/1 (S. boulardii ou grupo de controle). A randomização foi feita de acordo com uma ordem de alocação aleatória determinada por computador e levou em consideração o peso ao nascer. O volume da alimentação foi aumentado quando bem tolerado de acordo com o protocolo local.
O grupo de intervenção recebeu S. boulardii CNCM I-745, administrada duas vezes por dia como medicação separada, não misturada com a fórmula, a uma dose de 50 mg/kg (Bioflor®; CMS Shenzhen Kangzhe Pharmaceutical Co. Ltd., Shenzhen, China, fabricado pela Biocodex, Paris, França); 50 mg são cerca de 109 unidades formadoras de colônias (UFC)). A dose do probiótico foi obtida de estudos anteriores em neonatos.11 Nada foi administrado no grupo de controle. O período do estudo se encerrava no 28° dia após o nascimento ou quando o neonato recebia alta hospitalar, caso fosse possível, mais cedo. Contudo, a duração mínima da intervenção era de pelo menos sete dias. Foram coletados dados observacionais e clínicos de rotina de todos os neonatos. O estudo cego foi possível porque a equipe de enfermagem que administrou a S. boulardii aos neonatos não estava envolvida no cuidado diário e a equipe de atendimento neonatal não estava ciente das atribuições de randomização.
Os resultados primários foram parâmetros de crescimento de curto prazo: ganho de peso (g/kg/dia) e crescimento linear (cm/semana). Os resultados secundários incluíam: dias de nutrição parenteral necessários para alcançar a nutrição enteral completa, volume tolerado de nutrição enteral máxima (mL/kg/dia) e duração da internação (dias). A intolerância de alimentação foi definida quando o vômito e os resíduos gástricos foram considerados muito importantes. As complicações foram definidas como incidência de ECN (definida como suspeita ou estágio de Bell positivo II ou superior) e sepse (definida como hemocultura positiva).9
Os dados foram coletados e incluídos em uma base de dados estatística (SPSS, versão 16.0, IBM, Armonk, EUA). Os dados estão apresentados como média ± desvio padrão. Os dados demográficos e variáveis de procedimento foram analisados com o teste t ou teste qui-quadrado. Foi considerado que um valor de P < 0,05 indica uma diferença estatisticamente significativa. Este estudo não foi financiado por fontes externas e foi registrado no website https://clinicaltrials.gov com o número NCT02310425.
Foram alimentados com fórmula 125 neonatos prematuros inscritos e aleatoriamente alocados; 63 pacientes receberam S. boulardii assim que puderam tolerar a nutrição enteral mínima e 62 neonatos foram incluídos no grupo de controle; 25 (20%) pacientes foram considerados desistentes (12 (19,1%) no grupo que recebeu S. boulardii e 13 (20,1%) no grupo de controle (fig. 1). Os motivos para desistência foram retirada do consentimento (n = 9), perda no acompanhamento (n = 11), cateter venoso central (n = 1), sífilis congênita (n = 1) e inclusões inadequadas (artresia intestinal congênita [n = 2], trissomia do cromossomo 21 [n = 1]); 51 indivíduos puderam ser analisados no grupo de intervenção e 49 no grupo de controle. As características de todos os neonatos na entrada do estudo estão listadas na tabela 1 e não apresentaram diferença estatisticamente significativa.
Tabela 1 Características (média + 1 DP) dos neonatos incluídos
S. boulardii | Controle | |
---|---|---|
Peso ao nascer (g) | 1947 ± 54 | 1957 ± 51 |
Idade gestacional (semanas) | 33 + 0,72 | 33 + 1,04 |
Meninos/Meninas | 27/24 | 24/25 |
Dificuldades respiratórias | 5 | 6 |
Hiperbilirrubinemia (n° (%)) | 16 (31,4%) | 14 (28%) |
Bilirrubina máxima total (µmol/L) | 18,5 ± 2,2 | 19,4 ± 2,8 |
Anemia (n° (%)) | 23 (45,1%) | 25 (51,0%) |
Tratamento com antibióticos (n° (%)) | 11 (21,6%) | 9 (18,4%) |
Dificuldades respiratórias: inclui síndrome do desconforto respiratório e síndrome do pulmão úmido.
S, Saccharomyces; p > 0,05 (todos)
A S. boulardii foi administrada pela primeira vez 2,63 dias após o nascimento (intervalo: um a seis dias; em 46 neonatos em três dias, apenas em cinco neonatos entre o dia quatro e o dia seis). O número total de dias de administração de S. boulardii foi, em média, 25,3 dias (intervalo: nove a 28 dias).
A ingestão de fórmula na nutrição enteral máxima (128,4 ± 6,7 em comparação com 112,3 ± 7,2 mL/kg/dia, p < 0,05) foi maior no grupo que recebeu S. boulardii do que no grupo de controle e o tempo necessário para atingir a nutrição enteral completa (0,4 ± 0,1 em comparação com 1,7 ± 0,5 dia, p < 0,05) foi menor no grupo de intervenção do que no grupo de controle (tabela 2).
Tabela 2 Comparação do peso de ganho, crescimento (média + 1 DP), tolerância de alimentação, eventos adversos (sepse, sintomas gastrointestinais) e duração da internação entre o S. boulardii e o grupo de controle
S. boulardii | Controle | P | |
---|---|---|---|
Ganho de peso (g/dia) | 16,14 ± 1,96 | 10,73 ± 1,77 g | 0,02 |
Nutrição enteral máxima (mL/kg/dia) | 128,44 ± 6,67 | 112,29 ± 7,24 | 0,03 |
Quando a nutrição enteral iniciou, tempo necessário até a nutrição enteral completa (dia) | 0,37 ± 0,13 | 1,70 ± 0,45 | <0,01 |
Aumento da PC (cm/semana) | 0,74 ± 0,03 | 0,72 ± 0,04 | 0,67 |
Crescimento linear (cm/semana) | 0,89 ± 0,04 | 0,87 ± 0,04 | 0,17 |
Incidência de sepse (n° (%)) | 4 (7,8%) | 6 (12,2%) | 0,06 |
Incidência de sintomas GI (n° (%)) | 7/51 (13,7%) | 10/49 (20,4%) | 0,05 |
Tempo de internação (dias) | 23,3 ± 1,6 | 28,0 ± 1,8 | 0,035 |
PC, perímetro cefálico; GI, sintomas gastrointestinais: regurgitação, vômito, resíduo gástrico; n° (%), número (percentual) de pacientes.
O ganho de peso no grupo que recebeu S. boulardii foi de 16,14 ± 1,96 g/kg/dia em comparação com 10,73 ± 1,77 g/kg/dia (p < 0,05) no grupo de controle. Não houve diferença significativa em crescimento linear, crescimento do perímetro cefálico, incidência de distensão abdominal e incidência de sepse (tabela 2). O tempo de internação do grupo S. boulardii foi mais curto (p = 0,035) (tabela 2). Nenhum neonato desenvolveu ECN.
Nenhum prematuro desenvolveu fungemia. Nenhuma reação adversa à S. boulardii foi relatada.
Mostramos que a S. boulardii pode ser administrada com segurança em neonatos prematuros e que melhora a tolerância de alimentação oral e o ganho de peso. Em neonatos a termo, provou-se que a fórmula complementada com Lactobacillus (L.) rhamnosus GG aumentou o ganho de peso, porém fórmulas complementadas com Bifidobacterium (B.) longum, B. animalis subsp. lactis e L. reuteri não causaram o mesmo efeito.11-13 Em neonatos prematuros, a administração de B. breve também melhorou o ganho de peso.14 Os mecanismos por meio dos quais o ganho de peso é afetado ainda não estão claros.
A S. boulardii é eficaz no tratamento de várias doenças GI relacionadas à presença de patógenos bacterianos e virais.15 Ela compete com patógenos por locais de ligação e produz uma ampla gama de substâncias antimicrobianas.16 A S. boulardii tem capacidade de produzir poliaminas, substâncias essenciais ao crescimento e à diferenciação celular, e de melhorar a maturação, refletida em maiores níveis de expressão enzimática.17 A S. boulardii é uma levedura que aumenta de forma significativa a atividade das enzimas metabólicas na mucosa intestinal, estimula a secreção de enzimas hidrolisantes de dissacarídeos, participa no metabolismo e na absorção de carboidratos e estimula a produção de IgA secretório como resultado de um efeito trófico sobre a mucosa intestinal.18 Além disso, a S. boulardii promove a estabilidade do microbioma intestinal e reduz a possibilidade de má absorção causada por distúrbios GI.19 A translocação da S. boulardii não foi relatada; pelo contrário, foi relatado que a S. boulardii reduz a translocação bacteriana.20 Com base nessas propriedades, trabalhamos com a hipótese de que a S. boulardii pode melhorar o crescimento e os resultados clínicos em neonatos prematuros ou com baixo peso ao nascer.
Apesar de vários ensaios clínicos sugerirem fortemente um lugar para a S. boulardii na prevenção e no tratamento de várias doenças GI em adultos e crianças, os dados em neonatos prematuros são limitados.18 A fórmula suplementada da S. boulardii mostrou-se bem tolerada por neonatos prematuros e apresentou efeitos benéficos sobre o microbioma GI, tornou-o parecido com o dos bebês amamentados.11 Os ensaios clínicos em neonatos prematuros também sugeriram que a S. boulardii apresentou melhoria na tolerância de alimentação e reduziu o risco de sepse. 21,22 A fim de atingir o crescimento ideal de um prematuro, o objetivo é imitar o crescimento intrauterino ao mesmo tempo em que se obtém um resultado funcional comparável a nascidos a termo.23 Recomenda-se um ganho de peso de 15 a 20 g/kg/dia, de comprimento de 0,7 a 1,0 cm/semana e de perímetro cefálico de 0,7 cm/semana.24,25 No grupo S. boulardii, o ganho de peso médio foi de 16,14 g/kg/dia, crescimento linear de 0,9 cm/semana e aumento do perímetro cefálico de 0,7 cm/semana, respectivamente. O ganho de peso no grupo de controle foi de 10,73 g/kg/dia, abaixo da recomendação. O número de dias para alcançar a nutrição enteral completa foi menor no grupo S. boulardii do que no grupo de controle. O maior ganho de peso provavelmente está relacionado à melhoria da tolerância de alimentação. Observamos que a incidência de vômito, volume de resíduos gástricos e distensão abdominal ("sintomas GI", tabela 2) diminuíram no grupo de intervenção em comparação com o grupo de controle, embora não houvesse diferença estatística significativa. O tempo de internação total no hospital no grupo S. boulardii foi mais curto do que o do grupo de controle.
Não observamos uma diferença significativa no crescimento linear e na evolução do perímetro cefálico, o que pode estar relacionado ao curto período de intervenção de um mês. Outras limitações deste estudo são a falta de informações sobre características clínicas pós-natais dos neonatos, que podem ser fatores que influenciam o resultado, como o índice de persistência do canal arterial, hemorragia intraventricular e outros. Faltam informações sobre o número de neonatos com fatores predisponentes para ECN, sepse ou outros problemas como pré-eclâmpsia, uso pré-natal de esteroides, ruptura prematura de membranas e parto cesáreo. A ausência de amamentação é outra fragilidade do estudo.
Uma recente revisão Cochrane relatou 24 ensaios clínicos sobre probióticos em neonatos prematuros e concluiu que os ensaios eram altamente variáveis no que diz respeito aos critérios de inclusão (peso ao nascer, idade gestacional), risco básico de ECN, cronograma, dose, formulação dos probióticos e regimes de alimentação.8 A suplementação enteral com probióticos reduziu significativamente a incidência de ECN grave (estágio II ou superior) (risco relativo [RR] típico 0,43, intervalo de confiança [IC] de 95% 0,33 a 0,56; 20 estudos, 5.529 neonatos) e de mortalidade (RR típico de 0,65, IC de 95% 0,52 a 0,81; 17 estudos, 5.112 neonatos).8 De acordo com essa metanálise, não havia evidência de uma redução significativa de sepse hospitalar (RR típico de 0,91, IC de 95% 0,80 a 1,03; 19 estudos, 5.338 neonatos).8 Em nosso ensaio, nenhum prematuro desenvolveu ECN; isso provavelmente está relacionado ao fato de que a idade gestacional para inclusão era de 30-37 semanas e que o ECN ocorre com mais frequência em neonatos nascidos com uma idade gestacional menor. Ensaios clínicos anteriores mostraram que a suplementação com S. boulardii não reduziu a incidência de óbito nem de ECN em neonatos com muito baixo peso ao nascer, mas melhorou a tolerância de alimentação e reduziu o risco de sepse clínica, ao mesmo tempo em que não foram observados efeitos adversos relacionados à ingestão de S. boulardii.21,22
A S. boulardii teve um efeito protetor contra vários patógenos entéricos por dois mecanismos principais: produção de fatores que neutralizam as toxinas bacterianas e modulação da célula hospedeira, o que sinaliza a via implicada na resposta pró-inflamatória durante a infecção bacteriana.18,19 Além disso, a S. boulardii pode aumentar a atividade das células T reguladoras e secreção de IgA de células do epitélio e das criptas intestinais e melhorar a proteção intestinal por meio de regulação immune.18 Neste estudo, não houve diferença estatisticamente significativa na incidência de sepse entre os dois grupos (4/51 em comparação com 6/49). Esse achado está de acordo com a análise de Cochrane, mostra que os ensaios clínicos incluídos não relataram infecção sistêmica com o organismo probiótico suplementar.8 A fungemia de S. boulardii foi relatada em pacientes com acesso venoso central.18 Neste ensaio clínico, não houve caso de fungemia e não ocorreu efeito colateral. Os autores da recente revisão Cochrane concluíram que a versão atualizada das evidências disponíveis justifica fortemente uma alteração na prática, o que significa que os probióticos devem ser administrados em neonatos prematuros para diminuir o risco de ECN e mortalidade.8
Em conclusão, os resultados deste estudo mostram que o uso profilático de S. boulardii em neonatos prematuros acelera o ganho de peso e melhora a tolerância de alimentação. Esses dados confirmam uma análise retrospectiva recente que concluiu que os probióticos melhoram a tolerância de alimentação e levam a um crescimento geral melhor em neonatos prematuros.26 Pela primeira vez, sugere-se maior ganho de peso em neonatos prematuros que receberam S. boulardii. São necessários futuros ensaios clínicos duplo-cegos controlados por placebo para confirmar esses dados.