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Entre a figura e o abstrato: instâncias do pensamento

Entre a figura e o abstrato: instâncias do pensamento

Autores:

Eduardo Augusto Alves Almeida,
Felipe Goés

ARTIGO ORIGINAL

Interface - Comunicação, Saúde, Educação

versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762

Interface (Botucatu) vol.19 no.52 Botucatu jan./mar. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622014.1298

ABSTRACT

With text and painting, this article aims to discuss the possibility of inhabiting certain interval between extreme poles and to review, from the aesthetic, some paradigms of modern and contemporary thoughts.

Key words: Aesthetics; Painting; Modernity; Contemporary; Figurative and abstract art

RESUMEN

Con texto y pintura, este artículo tiene como objetivo discutir la posibilidad de habitar cierto intervalo entre polos extremos y revisar, desde la estética, algunos paradigmas del pensamiento moderno y contemporáneo.

Palabras-clave: Estética; Pintura; Modernidad; Contemporáneo; Arte figurativo y abstracto

Pintura 189 (acrílica e guache sobre tela), 2013 

Classificar obras de arte como figurativas ou abstratas parece tão incompatível com o pensamento crítico contemporâneo quanto outras oposições extremistas às quais fomos conduzidos ao longo do tempo. Real ou virtual, ciência ou ficção, exatas ou humanas, teoria ou prática, razão ou sensibilidade, fato ou imaginação, saúde ou enfermidade, justiça ou impunidade, sujeito ou objeto, público ou privado, somático ou psicológico, políticas de direita ou de esquerda; entre tantos outros exemplos.

A concepção dualista acaba não apenas insistindo nesses territórios utópicos como, também, ignorando o universo de possíveis que habitam o intervalo entre os seus polos – a “zona de indiscernibilidade” de que fala Deleuze1, composta por linhas [não exatamente] divisórias tão tênues, pulsantes e permeáveis que atuam como membranas, regulando fluxos de intensidade. Ingênua ilusão, triste engano; o rígido/instituído não se sustenta, ele se esgota no que diz respeito à sua relevância para as múltiplas/facetadas questões que permeiam a atualidade.

[O absolutismo dá conta das sutilezas do mundo? Fosse o absolutismo político, crítico, científico, social... não daria conta porque se aproxima por uma única frente e pretende, com ela, abranger o todo; porque se aproximaria com a resposta pronta, buscando somente a questão que, de alguma maneira, a justifica. Trabalharemos com essa hipótese.]

Entre a abstração e a figuração absolutas, encontra-se uma rica trama de possibilidades existenciais; linhas de força, linhas flexíveis, linhas erráticas, potências. Os extremos dão lugar a pontos de passagem, encontros, conexões, reflexões. Afirmar o absurdo do pensamento fechado, recluso e embrutecido é ignorar que a humanidade se constitui mais de matizes que de dogmas (c) , e que sua emancipação se encontra no caminhar, não no ponto de chegada; a emancipação pelo acompanhamento do outro e de seus processos, pela troca de experiências, pela partilha do sensível2.

No lugar de verdades, é possível criar discursos fragmentados. Alternativas. Aberturas. Aproximações. Assumir que tudo se enxerga por perspectivas, e que, do objeto em questão, apenas se apreendem alguns aspectos3. Estes tampouco pertencem, única e exclusivamente, àquilo que se observa/pesquisa: são ambiguidades oriundas [da colaboração] daquele que olha e do que é olhado. Portanto, todo olhar é, também, um ato criador4, uma participação ativa5; e se a criação não é absoluta, se não detém uma aura6, pode-se dizer que é singular, própria de cada pessoa.

No limite, não se trata da subjetividade de um sujeito em contato com um mundo – é essa relação “homem-mundo” que possibilita a existência de ambos. Em outras palavras, sujeito e mundo passam a existir no instante em que se encontram, e é desse encontro que provém a experiência subjetiva.

Olhar/criar é inventar/dar sentido; viver é um processo de doação e formação, além de apreensão e expectativa. Colocar-se à disposição do outro, à disposição do mundo; deixar-se atravessar, fluir com eles. Olhar implica transformar – o arredor e a si. Não somente fazer ‘com’ o outro, mas possibilitar, ao outro, fazer, colaborar com seu processo de descoberta e emancipação. Promover, prioritariamente, o seu direito de fazer, tanto quanto lugares afeitos à prática. Instaurar espaços de encontro: interfaces. Espaços abertos ao diálogo – no lugar então ocupado pelo silêncio incontestável da verdade e seus guardas opressores, sempre prontos para a defesa. E para o ataque.

Pintura 146 (acrílica e guache sobre tela), 2012 

Pintura 222 (acrílica e guache sobre tela), 2014 

Pintura 230 (acrílica e guache sobre tela), 2014 

Perspectivas ficcionais

Uma pintura dita ‘abstrata’ oferece ‘significados abstratos’ e, também, ‘concretos’, assim como a pintura dita ‘figurativa’. Trata-se de instâncias da experiência, da relação com a arte, do conhecimento de mundo. Instâncias do pensamento que se depositam como camadas de tinta, ocultando parte do que antes predominava na tela, acrescentando nova possibilidade à composição, estabelecendo novas estruturas e relações.

Essa pintura pode ser batizada com nome que remeta a algo concreto e provocar irrupções de ‘pensamentos figurativos’ (narrativas, lembranças de fatos...); do mesmo modo, uma paisagem dita ‘figurativa’ pode se apresentar com nome ‘abstrato’ e ocasionar sensações difíceis de serem verbalizadas sem que a tradução comprometa sua essência (d) , sem que a clareza da elucidação ofusque suas cores e texturas – sentimentos alheios à lógica dita ‘científica’.

[Estaria a figura mais próxima da ideia de ‘verdade’ enquanto a abstração se enamoraria pela ‘virtualidade’? Ou ambas seriam aspectos de uma realidade com estrutura ficcional, para citar Žižek7; ou de um real que precisa ser ficcionado para ser pensado/assimilado, conforme acredita Rancière2?]

Outra hipótese: o mundo se apresentaria a nós por meio de estruturas ficcionais. Isso significa que nada existiria de forma definitiva – tudo seria apreendido conforme a cultura de quem apreende, e o real nada mais seria do que um consenso limitado a um grupo de pessoas, um local, uma tradição etc.; em outras palavras, tudo seria, em certa medida, inventado, ficcionado.

Vale esclarecer que essa ficção não se enquadra no duelo ‘verdade x mentira’; ela pertence a outro plano no qual estão imersas tanto a concepção da verdade quanto a da mentira, portanto, ambas seriam também espécies de ficção dadas num contexto específico.

A partir de Žižek e Rancière, é factível pensar na ficção – numa certa ideia de ficção – como um possível método de apreensão do contemporâneo; de serem arte e estética ferramentas de questionamento de certas realidades e, no limite, da própria ideia de ‘realidade’; e de ser o próprio contemporâneo um conceito ao invés de uma medida – ou seja, uma maneira de pensar demandas ainda relevantes que nos atravessam em campo expandido, tão abrangentes quanto quiserem ser, em vez de continuidade linear da [tradicional cronologia] da História da Arte. Portanto, tratar-se-ia de uma metodologia: um estudo de certa ficção, da arte e da estética contemporâneas como métodos de analisar aspectos daquilo que chamamos de realidade, de produzir uma crítica em relação a ela e, desse modo, de propor resistências.

Pintura 134 (acrílica sobre tela), 2011 

Pintura 125 (acrílica sobre tela), 2011 

Ilusão perigosa

A polarização pode parecer acolhedora, afinal. E, por isso, traiçoeira. Ela dispõe de espaço para o sim e para o não, para o certo e o errado; oferece o conforto de ter amigos e inimigos bem distintos, fáceis de reconhecer; o conforto da certeza. Entre trancos e barrancos, ambos coexistem, e a existência de um acaba por depender do outro. Só não há espaço para sobreviver entre os polos, e nisso consiste o perigo que, oriundo da Modernidade, ainda opera nos dias atuais. No pensamento moderno, não existem outras possibilidades entre o cientificismo da verdade e o misticismo da natureza. Os que acreditam nelas tornam-se estranhos (e) , malvistos, excluídos, perseguidos por polícias da ordem, com seus uniformes assassinos. Excluídos da constituição do Estado, ainda que este se pretenda democrático. “Uma anomalia a ser retificada”, diz Bauman9 (p. 30). E explica: “Em suas buscas de constituição da ordem, o estado moderno tratou de desacreditar, de repudiar e erradicar les pouvoirs intermédiaires das comunidades e tradições”.

Nesse sentido, aquele suposto acolhimento oferecido pela polarização moderna revela-se fascista – uma política de aniquilação das diferenças [ou das possibilidades de existência dessas diferenças] não previamente instituídas, de dissidências, transgressões etc. Seu projeto construtivo se pauta na destruição – em outras palavras, para sanar é preciso exterminar; é preciso erradicar qualquer condição de incerteza. Porque a incerteza atenta contra a segurança (moral, militar, física...). Porque a incerteza não condiz com a ideia de pureza.

Enquanto, em revés, a certeza se pauta na exatidão, nos contornos precisos, na rigidez do método científico. Tanto que “os primeiros grandes inventos que marcam a modernidade são instrumentos de medida, e os primeiros grandes inventores são fabricantes de relógios, óculos e mecânicos de oficina”10. Essa condição determinante nos levou à Era dos Extremos, denominação do “breve século XX”11, que denuncia certa falência do pensamento moderno. Ou, melhor dizendo, trata-se da crítica de certo lugar a que a Modernidade chegou, levada pelas ondas do capitalismo e tendo, enfim, instituído/dogmatizado aquilo que seria ruptura [tanto objeto de ruptura quanto a atitude de romper], contrariando seus próprios princípios fundadores, como a ‘destruição criativa’ das Vanguardas artísticas. Tendo o maravilhamento com a máquina desembocado na destruição em massa, no esvaziamento das relações interpessoais e, no limite, na banalização da vida.

Por sua vez, “as oposições que nessa outra experiência [moderna] asseguram e sancionam o significado do mundo, e da vida vivida neste, perdem na nova experiência [atual (f) ] muito de seu significado, bem como muito de seu potencial heurístico e pragmático”9 (p. 37). Abrir espaço para novas potências aumenta, também, a complexidade dos casos e inviabiliza generalizações. A organização vira desordem, a sensação de segurança desemboca em incertezas; fica evidente certo medo de dissolução da ordem instituída.

No entanto, ao lado do colapso da oposição entre a realidade e sua simulação, entre a verdade e suas representações, vem o anuviamento e a diluição da diferença entre o normal e o anormal, o esperável e o inesperado, o comum e o bizarro, o domesticado e o selvagem – o familiar e o estranho, “nós” e os estranhos. Os estranhos já não são autoritariamente pré-selecionados, definidos e separados, como costumavam ser nos tempos dos coerentes e duráveis programas de constituição da ordem administrados pelo estado. Agora eles são tão instáveis e proteicos como a própria identidade de alguém, e tão pobremente baseados, tão erráticos e voláteis.9 (p. 37)

Em tempos de apagamento de fronteiras e valorização das nuances, cabe rever a organização do mundo e a noção de sujeito que o habita, assim como o impasse entre os polos individual e social, público e privado, normal e estranho, realidade e ficção, figurativo e abstrato. Essa nova paisagem permanece borrada, indefinível e impura. Permanece dissolvida, e, na dissolução, encontra novas formas de composição.

Pintura 186 (acrílica e guache sobre tela), 2013 

Pintura 190 (acrílica e guache sobre tela), 2013 

Pintura 204 (acrílica e guache sobre tela), 2013 

Um método para chamar de contemporâneo

“O paradigma da ciência moderna encontra-se calcado na razão, na consciência, no sujeito soberano, no progresso e na totalidade do mundo. [...] Tendo como meta abordar a natureza essencial das ‘coisas’, a partir da noção de verdade”, explica Romagnoli12 (p. 166). Enquanto o paradigma contemporâneo se pautaria numa “humildade epistemológica, ao não perseguir a verdade; a busca de ferramentas úteis para o entendimento do mundo e o abandono da ideia de um lugar privilegiado a partir do qual podemos compreender definitivamente as relações que nos circundam”12 (p. 168).

Seria possível classificar o homem, nos dias atuais, como abstrato ou figurativo sem trair aspectos inerentes ao ser? E a ciência que produz, muitas vezes, tão afeita à arte (g) ? E a arte que inventa, por vezes mais efetiva em suas descobertas do que a ciência (h) ? É possível afirmar a pureza da ciência, da arte, do homem, dos pensamentos?

Cabe, ainda, uma última questão: é plausível classificar o homem – e todas as suas criações –, cedendo à generalização, ignorando o que há de mais brutalizante nela?

Última hipótese: talvez a demanda atual almeje fazer conviver as diferenças, as incertezas e as possibilidades de existência oriundas daquele imenso fosso que separava as ambivalências modernistas. Da aridez e da rigidez daquele [em tese] vazio. Aprender a enxergar o obscuro no excesso de claridade, o impuro no excesso de sanidade, o obs-ceno na cena representada bem diante dos nossos olhos, o factível nas utopias. Habitar as heterotopias de que fala Foucault14.

Tudo que existe é ao mesmo tempo indissociável e irredutível: a música não é matemática, mas é todinha matemática. Mas seria um erro dizer que a música se reduz à matemática. Inversamente, na matemática, as bases do próprio cálculo decorrem do imaginário, do poético. A indissociabilidade e a irredutibilidade existente entre todas as coisas nos leva a crer que a renúncia à unificação ou à simplificação final não é nem provisória nem uma regra de boa conduta. 15 (p. 50)

Nem exatamente par nem totalmente ímpar; vivemos no ‘entre’. Basta olhar ao redor e perceber que o mundo aceita ser visto assim, e revela os gradientes de que é constituído; é assim a paisagem que nos cerca, ainda que alguns evitem o esforço, preferindo enxergar somente céu ou somente inferno. Manchas de cor que escorrem pela tela formam tanto uma paisagem abstrata quando concreta – a pintura se abre a um universo ficcional ao mesmo tempo em que constitui a própria realidade onde se insere; uma narrativa de fatos e, também, o próprio fato. Confunde o aqui e o acolá, insistindo no ambíguo. Diferentemente do híbrido, formado por ambos os extremos, o ambíguo é nem um nem outro; é o intervalo, a fenda, o meandro e suas nuances.

Assim é a paisagem que ajudamos a compor; e aceitar suas camadas de significados deve estar na ordem do dia daquele que se pretende contemporâneo, que ouve as demandas do agora, que está determinado a pesquisar em meio a essa complexa indeterminação estabelecida entre o absolutismo da verdade e a inconsistência da ficção. Pesquisar com rigor, porém sem dogmas, com persistência, porém sem opressão, circulando pelas redes de possíveis sem dar mais “uma volta a essas reviravoltas que sustentam infindavelmente o mesmo maquinário”5 (p. 48), que alimentam o velho sistema da crítica e anticrítica, que não conseguem se desvencilhar da verdade justificada pela oposição à mentira. Pesquisar com a consciência de que não se produz nada mais do que leituras do mundo; não se faz nada além de acrescentar uma pincelada à grande representação da vida humana.

Pintura 139 (acrílica sobre tela), 2011 

REFERÊNCIAS

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