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Entre as asperezas do cotidiano e o brilho fácil: o manejo cotidiano do uso prejudicial de drogas

Entre as asperezas do cotidiano e o brilho fácil: o manejo cotidiano do uso prejudicial de drogas

Autores:

Francisco Inácio Pinkusfeld Bastos

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.33 no.6 Rio de Janeiro 2017 Epub 03-Jul-2017

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00097017

As recentes operações deflagradas pela Prefeitura de São Paulo, Brasil, nos espaços conhecidos como “cracolândias” (terminologia pouco feliz, mas amplamente difundida na população e nos meios de comunicação) devem tanto merecer respostas de curtíssimo prazo, como as que já estão em curso com relação ao julgamento da sua legalidade e legitimidade, como tentativas de análise de médio e longo prazos. Essas últimas dimensões são centrais, embora habitualmente negligenciadas, com graves consequências, inclusive porque é exatamente o imediatismo que faz com que as ações nessa área em nosso país sejam invariavelmente incompatíveis com processos psíquicos e sociais necessariamente demorados e complexos.

Um artigo hoje clássico de McLellan et al. 1 ressalta o profundo descompasso entre a compreensão e o manejo de diferentes condições médicas crônicas (como a diabetes e a hipertensão arterial) e a abordagem dos quadros graves de dependência de álcool e demais substâncias psicoativas, lícitas e ilícitas, que, obviamente, ultrapassam a dimensão biomédica, mas com elas compartilham a evolução lenta, frequentemente sujeita a recidivas e mesmo ao agravamento progressivo em certos indivíduos e contextos. Seria inteiramente inadmissível que se demandasse a pacientes e profissionais de saúde que, por exemplo, o “problema” da diabetes fosse resolvido definitivamente em uma dada comunidade ou região geográfica, em um curto espaço de tempo. Talvez pela marcada interface com categorias morais (como uma suposta “fraqueza da vontade”/culpabilização) e psicossociais (com um forte componente de estigmatização e marginalização), a busca de “soluções” imediatas e radicalmente “resolutivas” é não apenas vista como aceitável, como desejável por frações substanciais do público, dos meios políticos e dos formadores de opinião (que passaram a disseminar suas “soluções” mágicas via redes sociais).

Talvez exista algum exagero nas críticas que estão ancoradas em conceitos como “higienização urbana” ou “limpeza étnica” (em que pese a sobrerrepresentação de homens negros em diversos estudos empíricos conduzidos no Brasil) em sociedades complexas, multirraciais e marcadas por profundas desigualdades sociais, como a nossa, inclusive e talvez principalmente nos espaços urbanos das megalópoles, mas não resta dúvida de que existem ressonâncias entre esta premência por respostas que “eliminem” (alguns se valem mesmo do termo “erradicar”) o “problema” do crack e dos “cracudos” e os hediondos conceitos veiculados por inúmeros conflitos de fundo racista e sectário, como, apenas a título de exemplo, a Guerra Civil Síria, hoje em curso.

Existe ainda uma clara superposição, no contexto paulista, como nos mais diversos contextos em todo o mundo, de intervenções que objetivam excluir populações indesejáveis de determinados espaços urbanos e um processo que a literatura em língua inglesa denomina gentrification (posteriormente difundido em português como “gentrificação”), que é um processo de renovação urbana, que promove a valorização de determinados espaços ao custo da exclusão das suas populações originárias, seja pelo uso da força, das desapropriações em massa ou pelo aumento substancial dos custos da moradia e do comércio local, que ganha em (real ou percebida) sofisticação o que perde em acessibilidade. A história do Brasil é pródiga em processos dessa natureza, sem relação alguma com o consumo de drogas, daí o simplismo de associar necessariamente uma e outra questão. Um exemplo triste, mas bastante bem documentado é o da destruição sistemática do nosso patrimônio histórico em prol da modernização dos espaços urbanos (um estudo de caso particularmente ilustrativo é o relativo à demolição da Igreja São Pedro dos Clérigos, símbolo da arquitetura barroca do Rio de Janeiro) 2.

É exatamente em função da possibilidade bastante frequente de associar de modo simplista a expulsão de usuários de drogas e outras populações marginalizadas a uma suposta modernização urbana que, em todo o mundo, programas de acolhimento, construção ou reforma de unidades habitacionais, ou ainda de aluguel social vêm balizando iniciativas habitualmente enfeixadas sob a rubrica housing first, que contam hoje com centenas de avaliações, no mundo todo. Em sua imensa maioria, essas avaliações têm sido favoráveis, embora a gravidade de diversas situações, como quadros de doença mental avançada, dificultem o domiciliamento regular dessas populações mesmo em países de renda elevada e que contam com programas sociais exemplares 3.

A priorização da abstinência como porta de entrada e não como um desfecho desejável, embora nem sempre exequível, vai na contramão do conceito, bastante simples, mas que é entendido de forma imediatista por amplos setores da opinião pública, de que alguém gravemente adoecido possa, como num passe de mágica, se engajar em programas de tratamento repletos de exigências quanto a horários, frequência e mesmo de metas complexas a curto prazo.

Os usuários de crack que fazem uso contínuo e constante desta substância frequentemente se veem às voltas com problemas graves das vias respiratórias e comprometimento da saúde oral, além de problemas de memória de curto prazo e coordenação, uma vez que a substância é absorvida e determina efeitos intensos em minutos e mesmo segundos. Isso não os torna, entretanto, “zumbis”, pois denominá-los assim significa não apenas violar seus direitos mais básicos como seres humanos, mas rotular um segmento como párias sociais, que ao invés de merecerem solidariedade e compaixão são objeto de escárnio e discriminação. Não é difícil traçar paralelos com diferentes condições médicas graves, tanto históricos (como na história da doença de Hansen ou, à época, lepra), como, no contexto atual, com diversas doenças neurológicas degenerativas, doenças pulmonares crônicas etc.

Como mostrou com brilho Susan Sontag 4,5, em seus ensaios sobre diferentes doenças como a tuberculose, o câncer e a AIDS, metáforas podem ser tão ou mais letais que as próprias doenças. Essas metáforas se mostram, no entanto, convenientes aos que querem impor ações a contrapelo das próprias populações, pois ao subtraírem a seres humanos sua dimensão propriamente humana, as manipulam de forma acrítica como coisas, restos a serem descartados.

Outra dimensão que frequentemente escapa por completo aos que analisam a situação atual é que, na história já longa do Brasil das grandes metrópoles, sucedem-se as populações marginalizadas às voltas com as substâncias mais diversas, presentes no espaço público, como há poucos anos atrás (e, em diversos contextos, ainda presente), as crianças e adolescentes usuários de cola de sapateiro e outros solventes. Esse é um hábito de consumo igualmente grave, associado a diversos danos e riscos, especialmente em jovens cujo organismo está em formação, particularmente em situações já por si adversas, como o cumprimento de penas de privação de liberdade 6.

Obviamente, com a crise econômica em curso no Brasil de hoje, um vasto contingente de pessoas, usuárias de drogas ou não, tem suas condições de subsistência mais básicas, como acesso à moradia e segurança alimentar comprometidas, o que acaba por determinar uma conglomeração em determinados espaços públicos de um contingente de excluídos. Não por acaso, uma vez deflagradas operações de recolhimento em massa de pessoas em situação de rua, acabam por aparecer em clínicas supostamente especializadas pessoas com as condições mais variadas, como doentes mentais crônicos, vendedores ambulantes ou familiares em busca de filhos ou outros parentes desaparecidos. Acrescento aqui um relato fortuito, ocorrido em uma pesquisa de campo coordenada por mim, há poucos anos, em que um entrevistador foi detido em um estado do Norte do país, e liberado dias após. Quando finalmente fui contatado, confirmei que o referido colega pertencia à nossa equipe de entrevistadores. Curiosamente, o nosso entrevistador, estava seguindo integralmente as regras pactuadas pela pesquisa, e vestia uma camiseta com o logo da instituição e portava um crachá de identificação. Ele foi informado pelo policial que o levou para a delegacia que era “melhor prender primeiro para depois averiguar, até porque essa conversa de que a pessoa trabalha para alguma instituição com atuação nesses locais era uma desculpa ‘bastante manjada’”.

Ao recolhimento em bloco de indivíduos presentes nessas cenas, segue-se à sua detenção/hospitalização compulsória, medida contraproducente, explicitamente condenada pelo conjunto de organismos da Organização das Nações Unidas (ONU) 7, e avaliada não apenas como ineficaz, como potencialmente associada a diferentes violações dos direitos humanos e danos diversos, como evidenciado em revisão sistemática recente 8.

Programas de intervenção baseados em dados empíricos e com base epidemiológica e clínica infelizmente não despertam a atenção do público, pois colecionam não apenas pretensos êxitos como os fracassos inevitáveis a quaisquer medidas destinadas ao controle ou mitigação de condições de saúde graves e de magnitude importante, de que são exemplos as sucessivas iniciativas de controle do dengue ou da malária, ou, no plano dos pacientes individuais, de terapia oncológica ou de condições cardiovasculares ou renais crônicas. Em nenhum desses casos os eventuais insucessos são vistos como conducentes a intervenções nos moldes de espetáculos em que o mote é a degradação humana e a demonstração de força.

Os leitores e os gestores (que dificilmente despenderão seu tempo e esforço com leituras que lhes façam pensar, já que estão sempre saturados de certezas) se beneficiariam muito do relato sincero do médico húngaro, naturalizado canadense, Gabor Maté 9, uma rara combinação de relato do trabalho cotidiano com usuários graves da região do Downtown Eastside de Vancouver, Canadá, permeado por pequenas mas relevantes vitórias, mas também por decepções devastadoras; ciência de ponta e uma descrição sincera e comovente das suas próprias limitações e fraquezas pessoais e profissionais, assim como de sua biografia de filho de prisioneiros de um campo de concentração nazista. Lamentavelmente, parecem nos faltar pessoas com a coragem de expor suas falhas e limitações, uma vez que é tão mais fácil e rentável ostentar brilhos, ainda que falsos.

REFERÊNCIAS

1. McLellan AT, Lewis DC, O'Brien CP, Kleber HD. Drug dependence, a chronic medical illness: implications for treatment, insurance, and outcomes evaluation. JAMA 2000; 284:1689-95.
2. Prefeitura do Rio de Janeiro. Memória da destruição. Rio: uma História que se perdeu. Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro; 2002.
3. Hwang SW, Burns T. Health interventions for people who are homeless. Lancet 2014; 384:1541-7.
4. Sontag S. Illness as metaphor. In: Reiff D, editor. Essays of the 1960s and 1970s. Nova York: Library of America; 2015. p. 675-732.
5. Sontag S. AIDS and its metaphors. In: Reiff D, editor. Later essays. Nova York: Library of America; 2017. p. 143-206.
6. Howard MO, Balster RL, Cottler LB, Wu LT, Vaughn MG. Inhalant use among incarcerated adolescents in the United States: prevalence, characteristics, and correlates of use. Drug Alcohol Depend 2008; 93:197-209.
7. Joint United Nations Programme on HIV/AIDS. Joint UN Statement calls for the closure of compulsory drug detention and rehabilitation centers. (acessado em 06/Jun/2017).
8. Werb D, Kamarulzaman A, Meacham MC, Rafful C, Fischer B, Strathdee SA, et al. The effectiveness of compulsory drug treatment: a systematic review. Int J Drug Policy 2016; 28:1-9.
9. Maté G. In the realm of the hungry ghosts: close encounters with addictions. Berkeley: North Atlantic Books; 2010.