versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.109 no.3 São Paulo set. 2017 Epub 29-Jun-2017
https://doi.org/10.5935/abc.20170091
As doenças cardiovasculares são anualmente responsáveis por quase um terço do total de mortes no mundo. Dentre elas, a hipertensão arterial sistêmica (HAS) está relacionada com mais da metade desses desfechos. O diabetes mellitus tipo 2 é visto com um fator de risco independente para HAS por causar lesões funcionais e estruturais na parede arterial, ocasionando-lhe enrijecimento. Diversos estudos relacionam o stress oxidativo, a produção de radicais livres, as alterações neuroendócrinas e genéticas com a fisiopatogenia do envelhecimento vascular. Formas indiretas para analisar esse processo de envelhecimento têm sido amplamente estudadas, dentre elas, a velocidade de onda de pulso (VOP) é vista como o padrão-ouro para avaliar a rigidez arterial por existir maior número de evidências epidemiológicas do seu valor preditivo para eventos cardiovasculares além de requerer pouco conhecimento técnico para sua realização. A onda de pulso é gerada durante cada contração cardíaca e percorre o leito arterial até encontrar resistência periférica ou algum ponto de bifurcação, ocasionando o surgimento de uma onda refletida. Em indivíduos jovens, as artérias tendem a ser mais elásticas, em consequência, a onda é refletida mais tardiamente no ciclo cardíaco e atinge o coração no momento da diástole, enquanto nos mais velhos, com reflexão mais precoce da onda, tende a acontecer na sístole. Por ser a VOP um importante biomarcador de dano vascular, de grande valia para a determinação do risco global cardiovascular do paciente, optamos por revisar os artigos referentes ao envelhecimento vascular no contexto dos fatores de risco cardiovasculares e as ferramentas disponíveis para a identificação precoce desse dano.
Palavras-chave Pressão Arterial; Análise de Onda de Pulso; Rigidez Vascular; Remodelação Vascular
Cardiovascular diseases (CVD) account annually for almost one third of all deaths worldwide. Among the CVD, systemic arterial hypertension (SAH) is related to more than half of those outcomes. Type 2 diabetes mellitus is an independent risk factor for SAH because it causes functional and structural damage to the arterial wall, leading to stiffness. Several studies have related oxidative stress, production of free radicals, and neuroendocrine and genetic changes to the physiopathogenesis of vascular aging. Indirect ways to analyze that aging process have been widely studied, pulse wave velocity (PWV) being considered gold standard to assess arterial stiffness, because there is large epidemiological evidence of its predictive value for cardiovascular events, and it requires little technical knowledge to be performed. A pulse wave is generated during each cardiac contraction and travels along the arterial bed until finding peripheral resistance or any bifurcation point, determining the appearance of a reflected wave. In young individuals, arteries tend to be more elastic, therefore, the reflected wave occurs later in the cardiac cycle, reaching the heart during diastole. In older individuals, however, the reflected wave occurs earlier, reaching the heart during systole. Because PWV is an important biomarker of vascular damage, highly valuable in determining the patient’s global cardiovascular risk, we chose to review the articles on vascular aging in the context of cardiovascular risk factors and the tools available to the early identification of that damage.
Keywords Hypertension; Blood Pressure; Pulse Wave Analysis; Vascular Stiffness; Vascular Remodeling
Estima-se que atualmente 17 milhões de mortes por ano no mundo ocorram devido às doenças cardiovasculares (DCV), cerca de um terço do total de mortes. Dessas, 9,4 milhões estão relacionadas à hipertensão arterial (HA),1 fator de risco de grande relevância para acidente vascular cerebral, doença coronária, insuficiência cardíaca e doença arterial obstrutiva periférica.2
A HA está frequentemente associada com outros fatores de risco cardiovasculares (FRCV), tais como tabagismo, obesidade, colesterol elevado e diabetes mellitus (DM) tipo 2, e essa associação, principalmente com o DM, aumenta significativamente o risco de complicações micro- e macrovasculares, assim como a incidência das DCV.1,3
Diversos estudos têm demonstrado que o DM é fator de risco independente e importante para lesões funcionais e estruturais da parede arterial, resultando no enrijecimento precoce da mesma.4,5 A conjunção desses FRCV, especialmente HA e DM, concorre para a potencialização do dano vascular e envelhecimento arterial precoce.6
Algumas teorias explicam o processo de envelhecimento normal e, de um modo genérico, podem ser divididas em teorias da evolução e fisiológicas ou estruturais. Do ponto de vista cardiovascular, as principais teorias passam pelo estresse oxidativo, produção de radicais livres, alterações neuroendócrinas e predisposição genética. A confluência desses fatores, atuando principalmente nos miócitos e na camada miointimal das artérias, leva ao aumento na rigidez ventricular e vascular, fenômeno intimamente relacionado ao processo de envelhecimento cardiovascular7 (Figura 1).
Figura 1 Fisiopatologia do envelhecimento vascular.9
No leito arterial, as principais modificações estruturais e funcionais decorrem da calcificação, aumento do diâmetro da parede e perda de elasticidade, resultante da deposição de colágeno e da fragmentação da elastina na camada média. Esse fenômeno é mais evidente em grandes artérias, mas também ocorre no leito vascular periférico.8,9 Todas essas modificações concorrem para uma diminuição da complacência e da capacidade arterial de resistir ao estresse a que é submetida.10
A fisiopatogenia desse processo está relacionada às mudanças no estiramento mecânico da parede arterial e suas alterações estruturais.11 Ainda existem evidências que demonstram associação de marcadores inflamatórios e de biomarcadores com fenômenos pró-aterogênicos e que, em última análise, também participam na patogênese da lesão vascular. Níveis aumentados da proteína C reativa (PCR), um marcador de inflamação, estão presentes em hipertensos e contribuem para lesões de órgão-alvo. Além disso, a adiponectina, uma proteína do plasma derivada de adipócitos, que se encontra diminuída nos hipertensos e que tem relação também com o metabolismo da glicose, atua como um fator endógeno antiaterogênico e, quando reduzida, está associada com um risco cardiovascular aumentado. Outros marcadores inflamatórios e biomarcadores também estão descritos, entre eles o fator nuclear Kappa B (NF-KB) e fator 1 de aumento de insulina (IGF-1).9,12
Alterações relacionadas à idade também se associam com a geração de espécies reativas de oxigênio, inflamação, disfunção endotelial e com distúrbios no metabolismo do cálcio e fosfato.10 São observadas, a depender de características genéticas, em diferentes graus entres as populações. Refletem ainda diferenças nas características nutricionais, atividade física, tabagismo, colesterol, glicemia e outros fatores de risco conhecidos por afetar a rigidez arterial.13,14
Mediadores inflamatórios participam ativamente nos mecanismos de lesão vascular e doença aterosclerótica e estão aumentados em todos os estágios da HA, e essa associação acelera o processo de envelhecimento vascular. Ainda, o aumento da PCR pode reduzir os níveis de óxido nítrico endógeno, um importante vasodilatador que tem relação com a regulação funcional da complacência de grandes artérias in vivo.12,15 Dessa forma, a ativação inflamatória e pró-aterogênica, mediada pela ação de diversos biomarcadores na presença dos FRCV clássicos, contribui para a piora dos desfechos CV.9,12,16
Ainda, a associação entre as características genéticas, metabólicas, inflamatórias e os fenótipos de risco cardiovascular tem sido cada vez mais estudada com a identificação de alguns genes que catalisam o processo de envelhecimento vascular precoce.9
Por fim, o fenômeno envelhecimento caminha com alterações relacionadas à diminuição da elasticidade e consequente aumento na rigidez arterial e nos valores da pressão arterial (PA) sistólica. Do ponto de vista fisiopatológico, diminuição da quantidade de elastina, aumento na quantidade de colágeno e aumento na espessura das camadas íntima e média das artérias precedem a lesão endotelial e podem de maneira indireta identificar o dano vascular ainda em fases iniciais.7,9,17
A cada batimento cardíaco, uma onda de pulso é gerada e percorre o leito arterial até encontrar resistência periférica em um ponto de bifurcação, que gera uma nova onda refletida de volta ao coração. A velocidade dessa onda refletida e o momento do ciclo cardíaco em que ela ocorrerá (sístole ou diástole) dependem da resistência vascular periférica, da elasticidade, principalmente das grandes artérias, e também da pressão central, e está relacionada aos principais desfechos cardiovasculares.16,17
Em indivíduos jovens, as artérias são mais elásticas. Assim, a onda refletida é lenta e atinge o coração em diástole, aumentando a pressão diastólica e melhorando a perfusão coronária.18 A reflexão da onda também devolve parte da energia pulsátil para a aorta central, onde é dissipada, limitando a transmissão de energia pulsátil para a periferia e prevenindo danos à microcirculação.19 Com o fenômeno do envelhecimento vascular, observam-se aumento da velocidade de onda de pulso (VOP) e reflexão precoce da onda, atingindo o coração em sístole. Isso gera um aumento da pressão sistólica com consequente aumento da carga de trabalho cardíaco e também uma redução da perfusão coronária.18,19
O papel da rigidez arterial no desenvolvimento da DCV tem sido estudado com maior ênfase nos últimos anos, sendo a sua utilização para o aprimoramento da estratificação do risco cardiovascular recomendada em diretrizes.20-22
A avaliação do envelhecimento vascular pode ser realizada por meio da verificação da rigidez arterial.
Diversos métodos invasivos e não invasivos têm sido descritos com essa finalidade. As técnicas mais amplamente utilizadas e validadas envolvem a avaliação da VOP.23
A medida da VOP é aceita como padrão-ouro para avaliar a rigidez arterial. Outros métodos como a pressão sistólica central (PSc) e o augmentation index (AI) (Figura 2) sofrem maior influência de condições fisiopatológicas, medicamentos, frequência cardíaca e idade, o que os torna menos fidedignos.16,23
Figura 2 Curva da pressão arterial com descrição dos seus principais componentes. AI: Augmentation Index; PAM; Pressão Arterial Média.28
A VOP carótida-femoral é a medida da velocidade ao longo do percurso da aorta e ilíaca, de grande relevância clínica, uma vez que a aorta e seus primeiros ramos estão intimamente relacionados com o ventrículo esquerdo (VE) e tem boa correlação com a maior parte dos efeitos fisiopatogênicos da rigidez arterial.16,24
Dessa forma, a análise da VOP carótida-femoral é o padrão-ouro recomendado para avaliação da rigidez arterial, pois existem mais evidências epidemiológicas do seu valor preditivo para eventos cardiovasculares além de requerer pouco conhecimento técnico para sua realização. Também é possível e validado o método de medida da VOP em um ponto, calculado por função de transferência com calibração PA sistólica/PA diastólica (PAS/PAD) por PA média/PAD (PAM/PAD), sendo mais viável e com melhor relação custo-benefício para a prática clínica.16,21,25
Ainda, a VOP tem uma forte correlação com a idade e a PA, já que em ambas as situações as propriedades elásticas da parede arterial são reduzidas, com consequente aumento da rigidez do vaso.7,26,27
A avaliação da elasticidade (complacência) arterial tem importância clínica na medida em que tem correlação com a patogênese de um grande espectro de desfechos cardiovasculares e não cardiovasculares, incluindo lesões da substância branca cerebral e diversos tipos de déficits cognitivos, entre eles a doença de Alzheimer, além da disfunção renal.28-32
O comprometimento cognitivo vascular (CGV), termo criado para compor um grupo heterogêneo de distúrbios cognitivos que compartilham uma etiologia vascular e que inclui tanto demência quanto comprometimento cognitivo sem demência, vem ganhando destaque. Isso porque provavelmente sua prevalência aumentará nas próximas décadas, devido ao envelhecimento da população e aumento na expectativa de vida decorrente do melhor controle das DCV.32 Além disso, o CGV aumenta a morbidade, a incapacidade e os custos de saúde da população idosa, e diminui a sua qualidade e expectativa de vida.7,33
Em comparação com a doença de Alzheimer, o CGV está associado a 50% de sobrevida média mais baixa (6-7 anos versus 3-4 anos), maiores custos de saúde e maiores taxas de comorbidade. Diante disso, a prevenção primária e a secundária do CGV também é de grande importância. Em geral, elas são abordadas através da prevenção do acidente vascular cerebral e da modificação dos fatores de risco vascular, como HA, dislipidemia, DM, obesidade e sedentarismo. O maior entendimento e identificação precoce do processo de envelhecimento vascular e dos biomarcadores relacionados pode contribuir para a melhora na prevenção.33,34
O processo de envelhecimento biológico está sempre associado com o de enrijecimento arterial. A HA antecipa e acelera esse processo. A relação entre a rigidez arterial e a pressão sanguínea é mais complexa e é assumida atualmente como sendo bidirecional, pois um aumento na pressão de distensão do vaso acarreta um aumento na rigidez arterial, e, inversamente, um aumento em dureza pode levar a um aumento na PAS. A relação entre a rigidez arterial e a PA pode ainda ser influenciada pelos medicamentos anti-hipertensivos, que, reduzindo a PA, podem beneficiar a saúde vascular. Assim, a interpretação dos dados de rigidez arterial precisa levar em conta as características clínicas da população de pacientes estudados, incluindo idade, prevalência de comorbidades, medicamentos, estilo de vida e fatores genéticos.35
Além do efeito dominante do envelhecimento, outras condições fisiológicas e fisiopatológicas estão associadas com o aumento da rigidez arterial e mudança no padrão de comportamento da onda de pulso refletida. Entre elas, condições fisiológicas (baixo peso ao nascer, ciclo menstrual, menopausa), características genéticas (história familiar de hipertensão, DM ou infarto do miocárdio, polimorfismos genéticos), FRCV (sedentarismo, obesidade, tabagismo, HA, dislipidemia, intolerância a glicose, síndrome metabólica, DM tipos 1 e 2), DCV e também doenças não cardiovasculares (insuficiência renal nos seus diversos estágios, artrite reumatoide, vasculite sistêmica, lúpus eritematoso sistêmico).16,19
Especificamente falando de DM e HA, observa-se que a parede arterial sofre várias mudanças biomecânicas que, do ponto de vista teórico, podem causar um aumento da rigidez arterial.36 Além disso, a adiponectina também tem sido associada à rigidez da aorta em pacientes diabéticos.12 Outro estudo comparando procedimentos diferentes da VOP para avaliar a rigidez arterial em indivíduos diabéticos concluiu pela necessidade de maiores investigações para esclarecer sua utilidade nesse perfil de pacientes e reforça a VOP como padrão-ouro também nessa população.37 Ainda, uma revisão sistemática que avaliou a relação da VOP com os diversos FRCV mostrou que 52% dos estudos encontraram uma associação positiva entre VOP aumentada e DM.38
Diante do exposto, vale ressaltar que os dados de rigidez arterial fornecem evidências diretas de danos em órgãos-alvo, sendo a VOP considerada um biomarcador de dano vascular,17 o que se reveste de importância na determinação do risco global cardiovascular do paciente, tendo em vista que os escores de risco clássicos, especialmente no extrato de risco intermediário, têm um desempenho ruim para predizer desfechos cardiovasculares.21,22 Os escores classicamente utilizados são baseados em fatores de risco já bem estabelecidos e de fácil obtenção; entretanto, da mesma forma que pelo menos um desses fatores de risco tradicionais está presente na maioria dos pacientes que sofreu um evento cardiovascular, igualmente podem ser encontrados em pacientes que não apresentarão um evento precoce.6,39
Além disso, as DCV são precedidas por uma fase assintomática. Assim, pacientes com danos subclínicos têm um risco aumentado para o desenvolvimento de doença sintomática, refletindo uma possível suscetibilidade à influência de fatores de risco tradicionais. As diretrizes mais recentes de HA têm recomendado o uso de biomarcadores para melhorar a acurácia da estratificação do risco cardiovascular, especialmente no risco intermediário.21,22
Dentre os principais biomarcadores, destaca-se a VOP que, quando adicionada à estratificação clássica do risco cardiovascular, pode reclassificar indivíduos para estratos mais altos e implicar em mudança na conduta com vistas à maior proteção cardiovascular.40,41
Assim, a análise do envelhecimento vascular no cenário da estratificação de risco, pode aprimorar a avaliação e definição de conduta nesses pacientes e pode representar uma estratégia útil tanto na redução de risco absoluto quanto do risco residual, pois possibilita a identificação do dano precoce e o tratamento adequado já nessa fase do continuum cardiovascular.42