versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762
Interface (Botucatu) vol.22 no.64 Botucatu jan./mar. 2018 Epub 12-Jun-2017
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0549
This paper aims to describe and analyze international models and strategies for the involvement of patients of healthcare systems in HTA processes. A literature review was conducted on papers from seven databases, followed by selection of papers, identification and description of the models adopted in different countries. Based on the 392 articles identified, eight were selected for analysis based on eligibility criteria. The models and strategies were classified according to the domains of the involvement; type of audiences and level of involvement. The description of the models allowed identifying a wide range of experiences for citizens’ involvement in the HTA processes. The results point to knowledge and information exchange as ways to reduce the distance between patients and HTA processes through diversified strategies to foster participation.
Key words: Health technology assessment; Patient participation; Citizen participation; Involvement of the public
El objetivo fue describir y analizar modelos y estrategias internacionales de envolvimiento de usuarios de sistemas de salud en los procesos de evaluación para incorporación de tecnologías de salud registrados en la literatura científica. Se realizó un levantamiento de la literatura en siete bases científicas, selección de artículos, identificación y descripción de los modelos adoptados en diferentes países. De 392 artículos identificados, se seleccionaron ocho según criterios de elegibilidad. Las estrategias y modelos identificados se clasificaron según el dominio del envolvimiento, tipo de público y nivel de envolvimiento. La descripción de los modelos permitió identificar una amplia diversidad de experiencias para envolvimiento del público en procesos de ETS. Los resultados señalan el intercambio de conocimientos e informaciones como forma de reducir el distanciamiento entre los usuarios y los procesos de evaluación mediante estrategias diversificadas de incentivo a la participación.
Palabras-clave: Evaluación de tecnologías de salud; Participación de pacientes; Participación de ciudadanos; Envolvimiento del público
Ao longo das últimas décadas, o conhecimento científico vem ganhando, cada vez mais, centralidade nas práticas e políticas de saúde. Durante os anos 1970, dois campos de conhecimento emergiram e tiveram papel fundamental no fortalecimento do uso de evidências científicas na prática médica e na gestão em saúde: a Medicina Baseada em Evidências (MBE) e a Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS).
A MBE se caracteriza pela ênfase na análise apurada dos métodos por meio dos quais o conhecimento médico é cientificamente produzido – em detrimento de práticas baseadas na experiência do profissional, intuição e modelos fisiopatológicos1. O foco é acionar evidências oriundas de publicações científicas para embasar decisões clínicas2.
Signatária desses mesmos princípios, a ATS visa subsidiar as decisões de cobertura, incorporação ou reembolso de tecnologias em sistemas de saúde – sejam elas medicamentos, procedimentos diagnósticos, equipamentos de saúde ou protocolos e práticas clínicas e terapêuticas – com evidências científicas3. Diante disso, a ATS é definida como um “procedimento sistemático que permite avaliar os impactos de uma tecnologia sobre uma população no que concerne a aspectos como segurança, eficácia, efetividade, custo-efetividade e implicações éticas e sociais”4 (p. 25).
Apesar de considerar múltiplas dimensões referentes ao uso de tecnologias em saúde, a ATS está focada em determinar a efetividade e os custos de uma determinada tecnologia3. Privilegia os métodos quantitativos de revisão sistemática da literatura e metanálise de ensaios clínicos, bem como o uso de modelagens econômicas5, sobrepondo-se a métodos qualitativos que privilegiam aspectos sociais, psicológicos e éticos, os quais são frequentemente negligenciados ou considerados implicitamente nas avaliações e tomadas de decisão6.
Diversas publicações nos últimos anos questionam a adequação de avaliações de tecnologias centradas em medidas quantitativas6-9. Segundo tais trabalhos, a inclusão das perspectivas, dos valores e das experiências de pacientes e usuários de tecnologias e do público em geral pode contribuir para uma avaliação mais conectada com as disposições sociais vigentes, colaborando para a democratização de decisões, e para uma melhor análise do impacto das tecnologias de saúde.
Nos anos 1990, percebe-se o desequilíbrio entre abordagens biomédicas, centradas em pesquisadores e técnicos, em detrimento das abordagens sociais envolvendo a perspectiva do público, de pacientes e de usuários nos processos de avaliação. Nos anos 2000, as agências de ATS7 começaram a propor estratégias de envolvimento do público em diferentes etapas de uma ATS6,7,10-12.
Os inquéritos realizados nos últimos anos demonstraram aumento de iniciativas voltadas para o envolvimento do público nos processos avaliativos das agências de ATS. Em 2006, Hailey e Nordwall publicaram estudo no qual se identificou que 57% das agências da International Network for Health Technology Assessment (INAHTA) envolviam o público em algumas etapas de suas avaliações13. Na segunda edição do inquérito, em 2010, os resultados apontaram um aumento de 10% no índice verificado anteriormente14. O estudo de Whitty, por sua vez, direcionado para agências de diferentes consórcios, apontou uma proporção de 67% de organizações de ATS que desenvolviam ações direcionadas ao envolvimento de pacientes8.
Ademais, publicações da Sociedade Health Technology Assessment International (HTAi) emitem recomendações para inclusão de pacientes como participantes plenos nas ATS15. A perspectiva da participação do público nas ATS está também presente nos quinze princípios-chave publicados por Drummond et al. Entre eles, a perspectiva social deve ser considerada nas avaliações; os pesquisadores e técnicos devem envolver todos os grupos interessados; e os achados dos estudos devem ser adequadamente comunicados a todos os públicos16.
No contexto brasileiro, o envolvimento dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) na avaliação de tecnologias surgiu com a Rede Brasileira de Avaliação de Tecnologias, que mantém um canal aberto para sugestão de temas a serem analisados (Rebrats)17. No que tange a processos de análise para fins de cobertura e incorporação de tecnologias no SUS, destaca-se a norma de consultas e audiências públicas definidas na legislação que cria a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), bem como a presença de representação do Conselho Nacional de Saúde no plenário da comissão18.
Em que pese o adensamento de propostas para formalização do envolvimento de usuários de sistemas de saúde nas avaliações, ainda persistem lacunas sobre estratégias mais sistemáticas e transparentes para reduzir o distanciamento desse público nos processos de avaliação e decisão de cobertura de tecnologias em saúde8,19.
Levando em conta as características históricas e estruturais apresentadas, o presente trabalho tem como objetivo identificar, descrever e analisar, de forma exploratória, modelos e estratégias internacionais de envolvimento de usuários nos processos de avaliação para incorporação de tecnologias de saúde registrados na literatura científica. A partir da descrição de características fundamentais de experiências de diferentes países no engajamento do público, espera-se reconhecer os elementos das opções implementadas, bem como explorar as potencialidades e limitações de cada estratégia.
Realizou-se uma revisão narrativa da literatura, caracterizada por valorizar publicações amplas, apropriadas para descrever e discutir o desenvolvimento de um determinado assunto, sob ponto de vista teórico ou contextual20. O foco foi compreender e analisar de forma exploratória modelos e estratégias de envolvimento do público na ATS.
Existem expressões heterogêneas para se referir ao envolvimento ou engajamento do público na ATS19. Para os fins deste artigo, adotou-se a definição de Whitty8, formulada a partir dos conceitos de engajamento, de Rowe e Frewer21, e de público, de Mitton22. Assim, considerou-se como público todos aqueles cidadãos comuns leigos, membros de grupos de interesse, pacientes ou consumidores de tecnologias que podem vir a ser usuários de sistemas de saúde – excluindo-se sempre profissionais de saúde. Como envolvimento ou engajamento, foram entendidas quaisquer iniciativas ou processos que visam apoiar a comunicação, consulta ou participação do público em processos de ATS.
Os tipos de estudos priorizados para esse trabalho foram: relatos de experiências, estudos qualitativos e revisões sistemáticas. Realizou-se busca nas seguintes bases científicas: Centre for Review and Dissemination (CRD), Health Systems Evidence, Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), Medline via PubMed, PQD-Evidence, Web of Science e Science Direct. Os descritores utilizados foram: ‘Avaliação de Tecnologias em Saúde’; ‘participação de consumidores’; ‘participação de pacientes’ para a BVS e ‘Health Technology Assessment’; ‘Consumer Participation’; ‘Patient Participation’ e ‘Citizen Participation’ para as demais bases.
Os critérios de inclusão para elegibilidade dos artigos foram: i) população envolvendo o público em geral, pacientes, cidadãos ou consumidores; e ii) modelos e estratégia usados para inclusão do público em atividades de ATS. Os critérios de exclusão foram: i) intervenção não diretamente relacionadas à ATS; ii) ausência de descrição sobre os modelos ou estratégias para inclusão do público em processos de ATS; iii) estudos com compilações de experiências de mais de um país; iv) relatórios de agências; e v) experiências de hospitais ou unidades locais de saúde.
Os estudos selecionados foram classificados em duas categorias propostas por Facey et al. para introduzir a experiência do público nas ATS6. A primeira delas se refere a atividades de captação de estudos científicos sobre valores e perspectivas de pacientes. Para tanto, recorre-se à sistematização de estudos qualitativos ou revisões sistemáticas, direcionados ao público em geral, a respeito de suas experiências, atitudes, crenças, valores e expectativas sobre saúde, doença e tecnologias de saúde. A segunda se refere ao engajamento direto de representantes do público em processos de avaliação de tecnologias.
Uma vez classificados segundo essas macrocategorias, os modelos e as estratégias selecionados foram descritos tendo como referência as dimensões de participação do público na saúde elaborado por Gauvin et al. Tal modelo prevê três linhas: i) domínio de envolvimento, ii) tipo de público a ser considerado, e iii) nível de envolvimento23. Os aspectos descritivos que constituem cada uma dessas dimensões estão descritos no Quadro 1.
Quadro 1 Dimensões de descrição e análise dos modelos e estratégias selecionados
Dimensão Analítica | Caracterização | Aspectos descritivos |
---|---|---|
Domínio de envolvimento | Política | • Elaboração de políticas de cobertura • Tomada de decisão de cobertura |
Organizacional | • Governança da agência • Submissão de solicitações • Priorização de solicitações • Financiamento de pesquisas • Publicação de relatórios finais • Elaboração de recomendações • Publicação de recomendações | |
Pesquisa | • Elaboração de protocolos • Coleta de informações prévias • Definição de questões de pesquisa • Coleta de evidências • Análise de evidências • Síntese de evidências • Escrita de relatórios • Condução de revisões | |
Tipo de público | Público leigo em geral | • Perspectivas de cidadãos ou representantes de cidadãos |
Pacientes | • Perspectivas daqueles diretamente afetados por uma dada condição de saúde: pacientes, cuidadores e seus representantes | |
Nível de envolvimento | Informação | • Disseminação e comunicação de resultados ao público |
Consulta | • Inclui diferentes formas de perguntar ao público sobre seus valores, perspectivas, necessidades ou preferências para alimentar diferentes fases de uma ATS | |
Participação | • Engajamento de pacientes ou do público leigo em geral como parceiros do processo de ATS |
Fonte: adaptado de Gauvin et al.23
A caracterização com uso dos descritores apresentados permitiu a análise dos artigos selecionados. Compararam-se múltiplas características e dimensões dos modelos e estratégias e, a partir desse quadro descritivo, apontaram-se reflexões críticas sobre os processos de elaboração, execução e disseminação de estudos de ATS. Diferenças na denominação do público no decorrer da análise resultam de variações de nomenclatura entre os próprios autores dos artigos selecionados.
Por se tratar de revisão de literatura, não foi necessária submissão e autorização de um Comitê de Ética em Pesquisa para realização deste estudo.
A busca nas diferentes bases científicas resultou na recuperação de 392 artigos. Após a remoção de duplicações e a leitura de títulos e resumos, trinta trabalhos foram selecionados para leitura completa. Destes, oito foram eleitos, pois atendem os critérios de inclusão. Dos oito trabalhos, apenas dois apresentam a produção e sistematização de conhecimentos científicos como estratégia para envolvimento do público em processos de ATS. Os seis demais abordam estratégias de envolvimento direto do público, pacientes ou consumidores.
Descreveremos, brevemente, as estratégias identificadas em cada um desses trabalhos à luz dos descritores de Gauvin et al.23, e dividindo-os segundo as categorias de classificação apontadas por Facey et al.6
Os dois estudos inseridos na primeira categoria de classificação (Quadro 2) ressaltam a importância da perspectiva e dos valores de pacientes para a realização de avaliações de tecnologias por eles utilizadas, e advogam pela pertinência da produção ou sistematização dos conhecimentos a respeito das percepções deste público para subsidiar a tomada de decisão. Embora estivessem preocupados com avaliações de custo-efetividade, os métodos e as abordagens utilizadas pelos autores foram distintos – tendo um deles natureza qualitativa e, o outro, uma base quantitativa24,25.
Quadro 2 Captação de estudos científicos sobre valores e perspectivas de pacientes
Referência | País | Tipo de Público | Domínio de envolvimento | Nível de envolvimento | Estratégia ou modelo de envolvimento |
---|---|---|---|---|---|
Street et al. (2008) | Austrália | Pacientes | Pesquisa | Consulta | Busca e sistematização da perspectiva do público em estudos científicos e em weblogs e comunidades de discussão na internet |
Danner et al. (2011) | Alemanha (IQWiG) | Pacientes | Pesquisa | Consulta | Workshops com pacientes e profissionais para graduação de critérios de importância de desfechos de um tratamento |
Fonte: elaboração própria.
O estudo de Street et al.24 utiliza buscas na literatura e em blogs para obter informações sobre as perspectivas de pacientes com relação a uma tecnologia diagnóstica de retinopatia diabética. Primeiro revisaram a literatura referente às percepções e valores de diabéticos, por meio de periódicos científicos – sobretudo, qualitativos. Na busca em blogs e fóruns eletrônicos de discussão, os autores destacam relatos de experiências de pessoas com diabetes que utilizaram a tecnologia. Os autores consideram a captação direta da perspectiva comunitária como muito dispendiosa em termos de tempo e recursos, e privilegiam consultas online aos discursos disponíveis em weblogs de pessoas com diabetes. Argumentam que a perspectiva da comunidade foi fundamental tanto para aceitabilidade, impacto social e potencial absorção de uma tecnologia, quanto para a compreensão de significados dados ao exame de retinopatia, sobretudo no que toca a desconfortos dos usuários.
Entretanto, apontam limitações da busca bibliográfica, pela dificuldade de se recuperarem estudos que abordam a perspectiva de membros da comunidade. Os blogs e fóruns de discussão, por outro lado, são limitados às pessoas que utilizam ambiente eletrônico e, portanto, excluem pessoas que não usam essas ferramentas, não têm acesso à internet ou são residentes em locais remotos.
Danner et al.25 enxergam os pacientes como usuários finais de uma tecnologia de saúde e, portanto, argumentam que seu envolvimento na ATS pode aumentar a viabilidade de uma decisão de saúde. Os autores construíram um processo de quantificação das preferências dos pacientes para subsidiar a etapa de priorização de efeitos de medicamento para tratar depressão. Buscaram também identificar como essas informações poderiam ser utilizadas nas análises de custo-efetividade do German Institute for Quality and Efficiency in Health Care (IQWiG).
Os autores realizaram um workshop com sete profissionais de saúde e outro com doze pessoas com depressão. Nessas ocasiões, os próprios participantes de cada um dos grupos escalonaram suas preferências de desfechos do tratamento por meio de uma comparação entre dois resultados – uma técnica de análise de decisão por múltiplos critérios denominada de Analytic Hierarchy Process (AHP). Baseado em matrizes de comparação pareada, realiza-se cálculo por meio de um algoritmo, representando pesos diferenciados para cada variável, baseados em preferências declaradas para cada um dos critérios de decisão. Graduaram a importância de diferentes desfechos para pessoas com depressão e compararam com os considerados significativos por profissionais de saúde.
Segundo os autores, o uso da AHP em workshops foi bem recebido por pacientes e profissionais de saúde. A fragilidade no uso da AHP está na determinação prévia de desfechos a serem avaliados pelos organizadores do workshop. Isso porque os efeitos do tratamento previamente determinados podem não ser aqueles que pacientes e profissionais valorizam.
Os seis trabalhos descrevendo opções de engajamento direto do público em avaliações de tecnologias guardaram uma série de aproximações entre si (Quadro 3). Percebeu-se o uso de estratégias de construção de diálogos e exercícios controlados de debate – deliberativo ou não – conduzidos por equipes multiprofissionais treinadas, com a finalidade de captação de percepções e preferências do público, prevalecendo o envolvimento por meio de consultas destinadas a subsidiar as outras etapas da avaliação e tomada de decisão.
Quadro 3 Estudos com estratégias de engajamento direto do público
Referência | País | Tipo de Público | Domínio de envolvimento | Nível de envolvimento | Estratégia ou modelo de envolvimento |
---|---|---|---|---|---|
Pivik et al. (2004) | Canadá | Pacientes | Política | Informação, consulta e participação | Uma organização independente, liderada por consumidores e financiada pelo governo federal para promover a nomeação dos consumidores mais efetivos para participação em comitês de ATS. |
Royle; Oliver (2004) | Reino Unido (NCCHTA- NHS) | Pacientes | Organizacional | Informação e participação | Formação de equipe de profissionais voltada para elaboração e execução de atividades de envolvimento de consumidores e ações de engajamento destes na priorização, avaliação e divulgação de estudos realizados |
Menon; Stafinski (2008) | Canadá (Alberta) | Público em geral | Organizacional | Consulta | Realização de um júri de cidadãos para eleição de critérios de priorização |
Moran; Davidson (2011) | Reino Unido | Não há uma identificação clara do tipo de público ao qual se dirigem as estratégias | Organizacional Pesquisa | Consulta e participação | Formulário online para interposição de sugestões e busca ativa de sugestões de grupos de usuários; revisão de resumos com informação sobre tecnologias; participação no comitê que define os estudos que serão financiados |
Watt et al. (2012) | Austrália | Pacientes Público em geral | Política | Consulta | Realização de reuniões separadas de médicos, consumidores (pacientes) e comunidade em geral (cidadãos) para discussão de dimensões de uma tecnologia existente. |
Silva (2013) | Brasil | Pacientes e público em geral | Organizacional | Consulta | Audiência e consulta públicas |
Fonte: elaboração própria.
A ocorrência da denominação “consumidor” para fazer referência ao tipo de público que se desejava incluir aparece em três trabalhos26-28. A definição deste público, quando explicitada, referenciou o trabalho de Hanley et al.29, no qual denominaram consumidor como: i) pacientes, cuidadores, usuários de longo prazo; ii) organizações de consumidores; iii) membros do público em geral; e iv) grupos que solicitem pesquisas por acreditarem que foram expostos a circunstâncias, produtos ou serviços potencialmente prejudiciais29.
O artigo de Pivik et al.26 consiste em uma apresentação das etapas de produção de um modelo de participação do público em processos de ATS no Canadá. Os autores do trabalho o desenvolveram a partir de quatro etapas sequenciais: i) revisão da literatura de modelos e métodos já existentes; ii) identificação de critérios para avaliação de modelos em funcionamento; iii) avaliação de modelos; e iv) inquéritos com associações canadenses ligadas à saúde.
O estudo de Pivik et al. resultou na proposta de criar uma organização independente, liderada por consumidores e financiada pelo governo federal para nomear consumidores para os comitês de ATS. Entre as atribuições da organização, estão: i) ativar uma rede de organizações de saúde, ii) desenvolver uma base de dados sobre consumidores, iii) estabelecer um processo formal de envolvimento de stakeholders, iv) realizar treinamento de consumidores, v) fazer a disseminação e avaliação das ações da própria organização. Como regra, ao menos dois membros indicados precisariam participar de todas as etapas de avaliação de tecnologias, e a efetivação satisfatória deste modelo dependeria de custos de deslocamento e acomodação dos membros indicados – prevendo-se, inclusive, pagamento de salário ou honorários26.
O artigo de Royle e Oliver também privilegia consumidores, e registra a experiência de quatro anos do National Coordinating Centre for Health Technology Assessment (NCCHTA), do National Health Service (NHS) do Reino Unido27. A equipe do NCCHTA contava com: um gerente de relações com o consumidor; um consultor externo e um grupo gestor. Esses profissionais dedicaram horas semanais para desenvolverem ações de envolvimento do público nas etapas de priorização, avaliação e divulgação de estudos. Consumidores fizeram parte de painéis consultivos para definição de prioridades de pesquisa, de atividades nas quais foram comentaristas dos sumários de pesquisas e como pares avaliadores de propostas de pesquisa recebidas pelo NCCHTA. Ao longo de quatro anos, observaram que a grande quantidade de informações técnicas e o curto tempo para sua interpretação foram barreiras relatadas. Ademais, houve crescimento de demandas por pagamento pela participação e pelo trabalho de revisão de material oriundo das avaliações. Em que pesem as limitações, os autores ressaltam que a equipe de ATS se qualificou à medida que se tornou mais atenta à perspectiva desse público e às suas demandas.
O trabalho de Watt et al. está voltado para percepções de diferentes stakeholders em deliberações para retirada de tecnologias de saúde na Austrália28. Os autores partem das noções de evidência científica e conhecimento experiencial. Estes últimos, em contraposição àquele produzido segundo os moldes tradicionais da ciência moderna, são conhecimentos oriundos da experiência de pessoas com a doença ou condição cuja tecnologia visa tratar. Juntam-se, também, a esse escopo de informações os conhecimentos do público leigo em geral, não diretamente afetado pela tecnologia em estudo.
A proposta de Watt et al. é dividida em três etapas. Na primeira, realizou-se uma revisão sistemática sobre efetividade, custos e questões éticas do uso da tecnologia. Em seguida, os achados das revisões são encaminhados para grupos distintos de médicos, pacientes e cidadãos comuns. Em grupo, facilitadores têm a incumbência de conduzir debates para identificar perspectivas coincidentes e discordantes com relação ao financiamento público da tecnologia e conduzi-los à formulação de um modelo de financiamento alternativo. Na última etapa, as perspectivas de cada grupo são levadas ao corpo de assessores da política para que tomem a decisão levando em conta tanto as evidências científicas como a experiência dos participantes. Os autores identificam desafios significativos para o recrutamento de grupos de interesse apropriados e para obtenção de informações das deliberações de modo neutro. Devido à natureza da atividade, dificilmente a estratégia seguiria um procedimento padronizado, pois, a cada avaliação, mudam os grupos de interesse e, portanto, adaptações seriam necessárias.
O único trabalho levantado que relata a experiência de estratégia ativa de envolvimento do público de um país não europeu foi o de Silva et al.30 Os autores relatam o processo de consulta pública da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS e fazem uma revisão de experiências internacionais de envolvimento de público na ATS. Descrevem os mecanismos previstos para esse tipo de ação no Brasil, relatando duas situações específicas nas quais tais mecanismos foram acionados. Essas ocasiões foram uma audiência e uma consulta pública referentes à avaliação de múltiplas tecnologias para tratamento de feridas crônicas e queimaduras, ocorrida na época da Comissão de Incorporação de Tecnologias do Ministério da Saúde (CITEC).
A audiência foi realizada na cidade de Brasília, na sede da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), e contou com o comparecimento de representantes de centros universitários, de empresas, de instituições do terceiro setor e da sociedade civil. Um debate não deliberativo foi promovido entre os presentes, tendo como subsídio técnico os resultados de um estudo de avaliação de diferentes tecnologias para o tratamento de feridas. Após a realização da audiência, uma consulta pública referente ao tema foi realizada para recolhimento de evidências adicionais às apresentadas no evento30.
O trabalho de Menon e Stafinski31, diferentemente daqueles até agora descritos, avalia a realização de um júri formado por cidadãos do público geral da província de Alberta, no Canadá. O propósito desse júri era a identificação de critérios para priorização de estudos de avaliação de tecnologias. Dezesseis indivíduos foram convidados mediante uma seleção baseada em aleatorização estratificada por região, gênero e idade, e receberam 375 dólares canadenses por sua participação. Os autores consideram, para fins do trabalho, que as deliberações oriundas da amostra representam as perspectivas do público geral.
Durante dois dias e meio, esses indivíduos participaram de um júri, que contou com sessões dedicadas à apresentação de cientistas, pacientes, gestores de saúde e médicos a respeito de aspectos de duas tecnologias que eles deveriam analisar; seguidas de grupo de trabalho para hierarquização de dez critérios para priorização de estudos de avaliação, dos quais os primeiros se referiam ao potencial da tecnologia para beneficiar uma grande quantidade de pessoas e aumentar o tempo de vida com qualidade, e o último à completude dos dados disponíveis sobre eventos adversos. O custo foi qualificado como critério que não deve ser utilizado para definição de prioridades na perspectiva do júri.
Segundo os autores do artigo, os resultados do estudo mostram que: os jurados tinham iguais oportunidades de expor seus pontos de vista, estiveram engajados nos debates, rememoraram detalhes das informações a eles apresentadas e desenvolveram um senso de comunidade, saindo de suas visões mais autointeressadas para outras mais socializadas. Como fragilidades da experiência, os autores apontam a impossibilidade de generalização dos resultados do júri, sendo necessário repetir a experiência de diferentes formas.
O trabalho de Moran e Davidson relata a experiência de uma organização do programa de Avaliação de Tecnologias de Saúde do National Institute of Health Research (NIHR) ao final de dez anos de atividades. No decorrer do artigo, não está explicitado o tipo de público privilegiado para envolvimento. Os autores apresentam estratégias de engajamento do público nos cinco estágios que compõem o trabalho de avaliação da unidade: identificação de temas, priorização de temas como questões pesquisáveis, financiamento de pesquisas, monitoramento de projetos ao longo de sua implementação, e publicação e disseminação dos resultados.
Segundo os autores, foi notável uma divisão desigual do envolvimento do público entre as etapas de avaliação, pois não havia qualquer iniciativa nesse sentido nos estágios de avaliação, monitoramento ou publicação e disseminação. O público ficava, então, restrito à participação em processos de identificação de temas – por meio do uso do formulário online permanentemente disponível para interposição de sugestões. Outra estratégia foi a participação, nas redes e fóruns, entre o NIHR e organizações de pesquisa e grupos de usuários cujos membros são convidados a submeter sugestões e realizar priorização por meio da revisão de resumos com informações sobre as tecnologias ou participação em comitê que define as tecnologias que receberão avaliação.
Moran e Davidson apontam que a ampliação do envolvimento do público exigiria treinamento, financiamento, gestão e pagamento de revisores do público. Destacam, ainda, que implementariam um novo modelo de envolvimento do público a partir de 2011 e esperam, a partir deste, avaliar seu funcionamento de modo mais sistemático.
O conjunto final de trabalhos selecionados não é representativo do corpo de publicações sobre o assunto e nem visa esgotar as possibilidades de descrição de experiências internacionais sobre envolvimento de usuários na ATS. Ao contrário, busca-se, por meio de seleção e análise qualitativa, mapear a diversidade de abordagens para o envolvimento do público e explorar criticamente algumas dimensões de tais iniciativas e para instituir diálogos com atores do campo da Avaliação de Tecnologias em Saúde.
Os resultados ora apresentados coincidem com as reflexões presentes na literatura no que toca à identificação de uma ausência de homogeneidade ou falta de sistematizações que possam oferecer um modelo para esse tipo de iniciativa19. Entretanto, entende-se, aqui, que este fato é menos uma barreira, conforme apontado por alguns autores9, e mais uma característica que deve ter seu potencial criticamente analisado.
Os estudos revisados demonstram uma variedade significativa de abordagens, métodos e potencialidades de incentivos ao envolvimento do público na ATS para reduzir o distanciamento entre as perspectivas dos usuários e dos tomadores de decisão nos sistemas de saúde. Não foram detectadas repetições entre os modelos eleitos para a composição desta revisão, de modo que cada estudo apresenta maneiras peculiares de envolvimento do público em atividades de avaliação de tecnologias. As estratégias dos autores para subsidiar avaliações de tecnologias com evidências científicas exprimem possibilidades distintas de prospecção, produção e sistematização de resultados de estudos primários e secundários.
Os trabalhos aqui considerados abrangem todas as dimensões analíticas propostas por Gauvin et al.23 para caracterização de iniciativas de engajamento do público em processos de Avaliação de Tecnologias em Saúde. Entretanto, dadas as particularidades de cada caso, a distribuição das estratégias entre os domínios e tipos de envolvimento, bem como em relação ao tipo de público, variam de modo significativo.
Embora haja contribuições importantes das abordagens acima descritas, as estratégias de envolvimento do público baseadas na produção de evidências científicas limitam-no ao nível da consulta. Ou seja, mesmo que forneçam subsídios fundamentais, não permitem que o público esteja diretamente envolvido no processo de avaliação, representando a si mesmo e protagonizando as discussões embasadas em suas percepções.
Por outro lado, tais estudos salientam o potencial de pesquisas qualitativas para o entendimento de percepções de pacientes, cuidadores e outras pessoas que compartilhem de uma determinada condição de saúde em processos de ATS32. Mesmo com o avanço de abordagens que combinam evidências provenientes de prospecções e sínteses de estudos quantitativos e qualitativos33,34, são ainda principiantes as situações nas quais os estudos qualitativos são sistematicamente considerados para a fundamentação de uma ATS. O fortalecimento de estratégias de envolvimento do público pode, nesse sentido, implicar a ampliação de abordagens utilizadas nas avaliações, bem como na diversificação das formações acadêmicas de profissionais da área.
Mesmo nos modelos e estratégias de engajamento direto do público, notou-se a grande ocorrência de iniciativas que reservam, ao público, o envolvimento no nível da consulta. Poucas iniciativas, de fato, tiveram, como foco e resultado, a inserção de representantes ou membros do público em atividades nas quais pudessem influenciar nas deliberações, sendo suas perspectivas mais uma informação para a tomada de decisão, que pode ser ou não concordante com a perspectiva do público, pacientes ou consumidores.
O fato de as estratégias de engajamento direto se configurarem, em muitos casos, em ações de envolvimento indireto de representantes de um determinado grupo, indica que as escolhas e propósitos das organizações guardam, ainda, um distanciamento desse público. Embora as atividades para engajamento direto do público tenham aumentado, persiste, entre as organizações de ATS, uma postura de cautela5 ou resistência com relação ao envolvimento desses atores em processos de avaliação.
No contexto brasileiro, pode-se dizer que, embora também persista a ênfase no envolvimento ao nível da consulta, existe um ambiente favorável para implementar processos de participação mais direta do público nas avaliações para incorporação de tecnologias no Sistema Único de Saúde. Isso porque a legislação35 prevê audiências públicas e a participação de um membro do Conselho Nacional de Saúde na Comissão Nacional de Avaliação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec).
Os estudos sumarizados apontam o potencial de se utilizarem as evidências qualitativas para a inclusão de aspectos sociais do uso de uma tecnologia, e para a inclusão das perspectivas do público usuário de sistemas de saúde nas avaliações de tecnologias de saúde. Como implicações práticas, pode ser fundamental o trabalho de cientistas sociais, bioeticistas e outros que atuem com metodologias qualitativas para avaliação de dimensões sociais e éticas do uso de tecnologias de saúde.
A diversidade das experiências internacionais mostra formas e estratégias de incentivos para reduzir o distanciamento do público nos processos de avaliação e decisão de cobertura de tecnologias em sistemas de saúde, enraizadas em processos históricos específicos das interações entre usuários e tomadores de decisão de cada país. Nesse sentido, as estratégias locais devem ser, elas mesmas, construídas em diálogo com o público, de modo que este compreenda os processos de avaliação das diversas tecnologias de saúde e possa expressar e escolher a maneira com que prefere ser consultado, participar ou ser informado sobre tais procedimentos.