versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.39 no.1 São Paulo jan./mar. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170002
A hipertensão é um achado quase universal em receptores de transplante renal resultante da interação de vários fatores, incluindo medicamentos imunossupressores, disfunção do enxerto, bem como predisposição genética.1
Embora tenha sido demonstrado que o aumento da pressão arterial pós-transplante ocorre em 90% dos casos secundariamente a terapia com imunossupressores como a ciclosporina (CsA),2 essa classe de fármacos continua a desempenhar um papel fundamental na prevenção da rejeição do aloenxerto renal. O exato mecanismo da hipertensão induzida por CSA permanece obscuro, mas várias linhas de evidência sugerem o envolvimento do sistema renina-angiotensina (SRA).3
A caracterização da enzima conversora da angiotensina (ECA) N-domínio 80/90-kDa como possível marcador biológico de hipertensão nos levou a supor que tal proteína pudesse estar associada ao desenvolvimento de hipertensão em pacientes transplantados renais.4-6 Assim, o presente estudo prestou-se a investigar: 1) os efeitos do transplante renal sobre ratos Wistar espontaneamente hipertensos (SHR) e a possível transferência da isoforma 80/90 kDa da ECA; e 2) se tal transferência pode contribuir para o desenvolvimento da hipertensão induzida por CsA.
Ratos Wistar machos espontaneamente hipertensos (SHR) de quatro meses de idade foram aleatoriamente divididos nos seguintes grupos (n = 6/grupo): 1) grupo de controle-placebo: ratos Wistar que tiveram seus rins removidos e retransplantados no mesmo compartimento, sacrificados após sete, quinze ou trinta dias (C-7, C-15 e C-30); 2) grupo transplante: ratos Wistar que receberam rim de um SHR, sacrificados sete, quinze ou trinta dias após o transplante (T-7, T-15 e T-30); 3) grupo transplante tratado com CsA: ratos Wistar que receberam rim de um SHR tratados com dose intraperitoneal diária de CsA (2mg/Kg/dia) por sete, quinze ou trinta dias após a cirurgia (TCsA-7, TCsA-15 e TCsA-30). Os protocolos foram aprovados pela Comissão de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (número 04348/02).
Os rins esquerdos de SHR foram ortotopicamente transplantados nos ratos Wistar receptores após nefrectomia ipsilateral sob anestesia. Por um breve período, o rim esquerdo foi removido e mantido em soro fisiológico frio. Após o clampeamento dos vasos renais, o rim esquerdo nativo do receptor foi removido e substituído pelo rim do doador; anastomoses término-terminais foram realizadas nos vasos renais e ureter.7
A pressão arterial sistólica (PAS) foi medida nos ratos conscientes, por meio de um sistema manguito de cauda computadorizado (BP-2000, Blood Pressure Analysis SystemTM, Visitech System)8 sete, quinze e trinta dias após a manipulação cirúrgica ou transplante renal.
Sete, quinze e trinta dias após a manipulação cirúrgica ou transplante renal, os ratos foram colocados em gaiolas metabólicas por 24 horas para coleta de urina. Ao final do protocolo, os ratos foram sacrificados por decapitação e o sangue do tronco e os órgãos foram colhidos. Rins e pulmões foram homogeneizados9 e a concentração de proteína foi determinada pelo método de Bradford.10
A eletroforese foi realizada de acordo com o método de Laemmli.11 As bandas foram reveladas por meio dos substratos tetrazólio nitroazul (NBT)/5-bromo-4-cloro-3-indolil-fosfato (BCIP) (NBT/BCIP).
A sequência NH2-terminal das ECAs foi deduzida a partir do sequenciamento dos aminoácidos utilizando um sequenciador de proteínas (modelo PPSQ-23, Shimatzu).12
A atividade catalítica da ECA foi determinada de acordo com o método descrito por Friedland e Silverstein,13 utilizando o substrato Z-Phe-His-Leu.12
Os resultados foram apresentados na forma de média ± erro padrão da média (EPM). Os dados foram avaliados por ANOVA de fator único com o teste de diferença significativa de Fisher. Valores de p < 0.05 foram considerados significativos.
São várias as causas que podem contribuir para a hipertensão pós-transplante. Os fatores relacionados aos doadores não se resumem apenas a hipertensão pré-existente e baixa qualidade do enxerto, mas incluem também fatores genéticos. Em tal contexto, descrevemos a presença da isoforma 80/90 kDA da ECA na urina e nos rins de indivíduos com predisposição a hipertensão, pacientes e animais hipertensos.4-6 Assim, pretendemos avaliar se a transferência de isoformas da ECA ocorre quando um enxerto renal de um SHR é transplantado para um rato normotenso, como o SRA é afetado, e a correlação entre PAS e presença de isoforma 80/90-kDa da ECA na urina.
Os ratos espontaneamente hipertensos apresentaram PAS significativamente mais elevada do que os ratos Wistar (171 ± 8 x 120 ± 2 mmHg, p < 0,05, Figura 1). Sete e quinze dias após o transplante, a PAS dos receptores de rins de SHR estava semelhante à dos animais nos grupos C e Wistar, e significativamente mais baixa do que a PAS do grupo SHR (Figura 1). Por outro lado, 30 dias após o transplante renal de SHR, o grupo T apresentou PAS significativamente mais elevada (em comparação aos grupos C e Wistar), como visto nos SHR (Figura 1). Além disso, os resultados mostram que o tratamento com CsA não influenciou a PAS sete, quinze ou trinta dias após o transplante renal. Corroborando nossos achados, Kawabe et al.14 e Rettig et al.15 mostraram que a PAS em ratos submetidos a transplante renal é fortemente determinada pelo perfil genético do rim transplantado.
Figura 1 PAS basal de SHR ou ratos Wistar transplantados após sete, quinze ou trinta dias de manipulação cirúrgica ou transplante renal, tratados ou não com ciclosporina (CsA, 2mg/Kg/dia; n = 6/grupo). Valores representados como média ± EPM. SHR: ratos espontaneamente hipertensos (SHR); C: controle placebo Wistar; T: ratos Wistar receptores de transplante renal de SHR; TCsA: ratos Wistar receptores de transplante renal de SHR tratados com CsA. + vs. Todos os grupos experimentais; * vs. C-30; & vs. T-7 e T-15; # vs. TCsA-7 e TCsA-15; p < 0,05.
Segundo a Figura 2, a urina dos ratos Wistar que receberam rins de SHR apresentou três isoformas da ECA: a isoforma somática com 190-kDa, a isoforma N-domínio com 65-kDa e a isoforma 80/90-kDa da ECA. Esta última foi detectada na urina dos SHR e dos indivíduos do grupo T sete dias após o transplante (T-7), com expressão aumentada trinta dias após o procedimento (T-30; Figura 2).
Figura 2 Análise da expressão de isoformas da ECA na urina de SHR e ratos Wistar transplantados após sete, quinze ou trinta dias (anticorpo anti-ECA - 9B9). Faixa 1: padrão de peso molecular, Faixa 2: C-30, Faixa 3: SHR; Faixa 4: T-7, Faixa 5: T-15, Faixa 6: T-21, Faixa 7: T-30.
É importante destacar que os ratos Wistar normalmente não expressam essa isoforma, como descrito por Ronchi et al.4 Considerando-se que a detecção da isoforma 80/90-kDa da ECA na urina dos grupos T-7 e T-15 ocorreu apesar da ausência de alterações na PAS, os resultados demonstram que a mensagem da proteína é transferida, predispondo esses animais ao desenvolvimento de hipertensão.
O transplante parece afetar a expressão da isoforma 80/90-kDa em rins transplantados, que mostrou-se mais elevada no grupo não tratado com CsA em relação ao tratado (Figura 3, Faixa 1 x Faixa 6), indicando que essa isoforma pode ser intensamente afetada pela resposta imunológica ao transplante.
Figura 3 Análise da expressão da isoforma de ECA no tecido renal nos grupos SHR, placebo Wistar C e T-30 (anticorpo anti-ECA 9B9). Faixa 1: rim nativo de T-30; Faixa 2: SHR; Faixa 3: Wistar; Faixa 4: rim nativo de C-30; Faixa 5: aloenxerto renal de T-30; Faixa 6: rim nativo de TCsA-30.
Além das células imunológicas transferidas com o enxerto renal, macrófagos nativos e outras células imunológicas que portam a mensagem genética da isoforma 80/90-kDa da ECA transferidas com o enxerto renal, podem migrar para o órgão transplantado, elevando localmente a expressão da isoforma. Tal hipótese é corroborada pela observação da redução da expressão da isoforma 80/90-kDa da ECA durante tratamento com CsA.
A sequência NH2-terminal da isoforma da ECA purificada com 80/90-kDa de rins transplantados é descrita na Tabela 1. O sequenciamento mostrou que a isoforma 80/90-kDa da ECA de rins nativos dos grupos T-30 e TCsA-30 era semelhante à das ECAs de ratos somáticos, camundongos e humanos (~80% homologia), comprovando que as enzimas detectadas contêm a porção NH2-terminal da molécula (Tabela 1).
Tabela 1 Sequências NH2-terminal da isoforma 80/90-KDA e alinhamento comsequências N H2-terminal da eca de bovinos, camundongos, ratos e humanos
Grupos | Sequência |
---|---|
ECA rins nativos T-30 | DPGXQPGNXS |
ECA rins nativos TCsA-30 | - PGXQPGNFS |
ECA bovina | DPALQPGNF - |
ECA camundongos | DPGTQPSNF - |
ECA ratos | DPGLQPGNFS |
ECA humanos | DPGLQPGNFS |
A atividade da ECA nos rins nativos dos ratos transplantados foi semelhante entre os grupos. Além disso, a atividade renal da ECA dos rins nativos dos grupos T-15, TCsA-15, T-30 e TCsA-30 foi mais elevada do que no grupo SHR. É também importante citar que atividade mais baixa da ECA foi observada em rins transplantados no décimo-quinto dia (T-15, TCsA-15) em comparação aos indivíduos Wistar, C e SHR, sem qualquer efeito da CsA. Curiosamente, trinta dias após o transplante a atividade da ECA dos rins transplantados (T-30, TCsA-30) não foi significativamente diferente dos SHR (Tabela 2).
Tabela 2 A tividade da eca nos pulmões, rins nativos e rins transplantados de indivíduos S HR e wistar transplantados após sete, quinze e 30 dias da manipulação cirúrgica ou transplante renal, tratados ou não com ciclosporina (CsA, 2mg/kg/dia; n = 6/grupo).
Grupos | Pulmões (nmol/mL/ min) | Rins nativos (nmol/ mL/min) | Rins transplantados (nmol/mL/min) |
---|---|---|---|
Wistar | 260 ± 19 | 24 ± 5 | -- |
SHR | 478 ± 29 + | 21 ± 1 | -- |
C | 290 ± 14 | 27 ± 4 | -- |
T-15 | 404 ± 26 # | 35 ± 5 | 10 ± 1 |
TCsA-15 | 257 ± 20 & | 31 ± 5 | 8 ± 1 |
T-30 | 296 ± 10 & | 31 ± 4 | 16 ± 1 & |
TCsA-30 | 232 ± 15 * | 32 ± 2 | 21 ± 3 * |
Valores apresentados como média ± EPM (n = 6/grupo).
+vs. Todos os grupos experimentais,
#vs. Wistar e C,
&vs. T-15;
*vs. T-30; p < 0,05.
A atividade pulmonar da ECA estava elevada em T-15 em comparação ao grupo Wistar, sugerindo que o transplante renal tenha induzido tal alteração, ainda que a mesma não tenha sido suficiente para elevar a PAS dos receptores. O tratamento com CsA reduziu significativamente a atividade pulmonar da ECA quinze e trinta dias após o transplante (T-15 x TCsA-15 e T-30 x TcsA-30; Tabela 2). Nossos resultados sugerem que o transplante de rins de SHR para ratos Wistar também faz surtir um efeito de curto prazo sobre a atividade da ECA na fonte primária de produção de ECA (pulmões), que pode ser evitada com terapia imunossupressora.
A detecção precoce da isoforma 80/90-kDa na urina de ratos transplantados indica que este marcador biológico da hipertensão aparece antes de qualquer elevação substancial da PA. Nossos dados contribuem para destacar a relação entre SRA tecidual e disfunção do enxerto.