versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.42 no.4 São Paulo jul./go. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/s1806-37562016000400001
O que define uma doença? Intuitivamente é muito simples diferenciar doença de saúde, mas é surpreendentemente difícil definir o que é "doença". Um médico é treinado exaustivamente a reconhecer sinais e sintomas em um paciente e atribuí-los a uma única doença. Esse modelo unicista, na prática, transforma os achados semiológicos em rótulos.1
O problema é que, ao se atribuir um rótulo a um doente, ele ganha um tratamento padrão que, muitas vezes, ignora as particularidades de seu caso. Os consensos internacionais do Global Initiative for Asthma e Global Initiative for Chronic Obstructive Lung Disease (GOLD) para asma e DPOC, respectivamente, tiveram grande valor em sistematizar o atendimento e padronizar o tratamento dessas condições, mas, na verdade, são simplificações de uma infinidade de apresentações clínicas que combinam características de ambas as doenças das vias aéreas. Para tentar corrigir essa imprecisão foi lançado o conceito de asthma and COPD overlap syndrome (ACOS, síndrome de superposição asma e DPOC).
Diversos critérios já foram advogados para definir um paciente como portador de ACOS, que chegam a 30% dos casos entre os portadores de DPOC. No entanto, essa nova entidade é apenas mais uma simplificação de um complexo conjunto de características clínicas e sua relevância tem sido questionada.2
Há muito tempo se debate se asma e DPOC são doenças distintas ou dois lados da mesma moeda. A presença de indivíduos cujo diagnóstico entre uma e outra doença não se consegue definir e de indivíduos que apresentam características de ambas as doenças reforça o conceito de que asma e DPOC são espectros da mesma doença. Mesmo marcadores biológicos, como a avaliação do escarro, não conseguem separar adequadamente essas duas condições.
Um estudo recente comparou as características do escarro na DPOC e na asma. Foi possível dividir os resultados em três grupos: um claramente com predomínio de inflamação eosinofílica do tipo Th2 e outro com perfil mais neutrofílico. O terceiro grupo, que compreendia um terço dos pacientes avaliados, não mostrava uma distinção clara entre os dois diagnósticos.3
Outro estudo avaliou a presença de eosinofilia no escarro em pacientes com DPOC que foram então tratados com corticoide sistêmico por duas semanas.4 A eosinofilia foi um marcador de resposta clínica ao corticoide. Já foi demonstrado que a avaliação sistemática de eosinofilia no escarro pode ajudar a prevenir exacerbações.5
Já foi estabelecido que há uma forte correlação entre eosinofilia no escarro e eosinofilia periférica na DPOC.6 A eosinofilia periférica é um biomarcador de resposta ao uso de corticoide inalatório (CI). Análises de subgrupo de três grandes estudos demonstraram que o benefício do CI em prevenir exacerbações foi encontrado unicamente no subgrupo de pacientes com eosinófilos acima de 2%.7 A resposta ao CI no ritmo de queda de função pulmonar também parece ser marcada pela eosinofilia. Os pacientes com mais de 2% de eosinófilos, quando tratados com CI, mostraram expressiva redução na taxa anual de queda do VEF1 (de 74,5 ml para 40,6 ml). Na ausência desse marcador não houve mudança na queda de função pulmonar.7
No estudo publicado no presente número do JBP, Queiroz et al.8 investigaram o perfil inflamatório no escarro de 37 pacientes com DPOC, dividindo-os entre aqueles com e sem resposta ao broncodilatador. Os achados principais foram os seguintes: pacientes com resposta ao broncodilatador tinham maior eosinofilia no escarro independentemente do diagnóstico de asma ou de marcadores clínicos e laboratoriais de atopia (incluindo as citocinas dosadas); e a quantidade de eosinófilos no escarro se correlacionava inversamente com o VEF1, especialmente em pacientes classificados como GOLD III. Paradoxalmente, não foram encontrados eosinófilos no escarro de pacientes classificados como GOLD IV.
Apesar das limitações do desenho transversal e do pequeno número de pacientes recrutados, os resultados do estudo de Queiroz et al.8 levam a considerações importantes. A primeira delas é que a avaliação da eosinofilia na DPOC independe do diagnóstico de asma. A presença de eosinófilos no escarro é um forte marcador de gravidade e de resposta ao broncodilatador e não apenas mais um achado em pacientes com história ou características de atopia. Isso reforça a necessidade da caracterização laboratorial do tipo de processo inflamatório.
Outro achado interessante é que, corroborando estudos anteriores, a presença de eosinófilos na via aérea está associada a gravidade e progressão da doença, mas, em algum momento da história natural da DPOC, o processo inflamatório se arrefece, sendo que seus marcadores são menos evidentes conforme ocorre a redução do VEF1. Esse dado ajuda a demonstrar a complexidade da DPOC, que se comporta de forma diferente, e aparentemente contraditória, nas diversas fases da doença. Por esse motivo, ensaios clínicos mostram o benefício do tratamento na doença mais precoce (estágios II ou III), quando o processo inflamatório é intenso.9
Ao invés de rotular doenças, ignorando que as variações são mais frequentes que a regra, devemos entender que existem marcadores objetivos que ajudam a compor o quadro clínico e laboratorial, permitindo a escolha adequada de uma linha de tratamento. A eosinofilia tem se firmado como um dos marcadores de maior importância.
Tratar doenças obstrutivas de vias aéreas baseado em rótulos desconsidera a complexidade biológica dessas condições e ignora a multiplicidade de apresentações clínicas. Leva a prescrição insuficiente ou excessiva de medicamentos e limita o progresso da pesquisa, visto que pacientes que não se encaixam em uma ou outra definição são excluídos dos ensaios clínicos. Ao nos importarmos com os eosinófilos na DPOC, estamos garantindo um tratamento com maior chance de resposta e menos efeitos adversos e, assim, oferecendo a medicina personalizada, de melhor qualidade.10