versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.34 no.10 Rio de Janeiro 2018 Epub 11-Out-2018
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00069018
En agosto de 2015, neuropediatras de hospitales públicos de Recife, Pernambuco, Brasil, observaron un aumento desproporcional del número de casos de microcefalia, asociado a anomalías cerebrales. Este hecho generó conmoción social, movilización de la comunidad académica y obligó al Ministerio de Salud a decretar la emergencia de salud pública nacional, seguida de la declaración de interés internacional de la Organización Mundial de la Salud. La hipótesis formulada para este fenómeno fue la infección congénita por el virus Zika (ZIKV), en base a la correlación espacio-temporal y a las características clínico-epidemiológicas de las dos epidemias. Se acumularon evidencias, y en el ámbito del raciocinio epidemiológico se cumplieron los criterios que dieron apoyo a la hipótesis. Su plausibilidad está anclada en el neurotropismo del ZIKV, demostrado en animales, alcanzando progenitores neuronales del cerebro en desarrollo, y en seres humanos, debido a las complicaciones neurológicas observadas en adultos tras la infección. El aislamiento del ARN y antígenos virales en el líquido amniótico de madres infectadas, en cerebros de neonatos y fetos con microcefalia, contribuyeron a demostrar la consistencia de la hipótesis. El criterio de temporalidad se contempló al identificarse desenlaces desfavorables en una cohorte de gestantes con exantema y positivas en ZIKV. Finalmente, el primer estudio caso-control realizado demostró que existía una fuerte asociación entre microcefalia e infección congénita por el ZIKV. El conocimiento construido en el ámbito del paradigma epidemiológico recibió la aprobación de la comunidad científica, existiendo consenso en cuanto a la relación causal entre el ZIKV y la epidemia de microcefalia.
Palabras-clave: Virus Zika; Microcefalia; Epidemias
Registrar em ensaio os marcos na construção do conhecimento epidemiológico de uma nova epidemia de microcefalia congênita é, sem dúvida, um desafio. Esse aglomerado de casos de microcefalia detectados inicialmente no Nordeste brasileiro gerou intensa comoção social em curto espaço de tempo. Essa mobilização social refletiu, a nosso ver, a gravidade desses eventos ligados à saúde reprodutiva da mulher e ao desenvolvimento neurológico, cognitivo e motor dos bebês, ao desconhecimento sobre a causa e fatores de risco, além do potencial de expansão nacional e internacional dessa epidemia. As (des)informações circulando em tempo real, a intensa cobertura jornalística nacional e internacional refletiam o pânico das epidemias em uma era de intensa interconectividade. As fotos dos bebês com malformações congênitas e de suas jovens mães circularam e comoveram o mundo.
A gravidade dessa situação de saúde pública resultou em uma intensa mobilização da comunidade científica, na decretação de estado de emergência de saúde pública nacional 1, seguida pela declaração de emergência de saúde pública de interesse internacional da Organização Mundial da Saúde (OMS) 2. Neste ensaio, registramos as primeiras descobertas científicas que permitiram caracterizar a nova síndrome de Zika congênita e os desdobramentos em pesquisas epidemiológicas. Contamos esta história sem o distanciamento pretendido pelos artigos científicos, mas como pesquisadores atuando no epicentro dessa epidemia.
Na área da saúde, é comum que novas entidades nosológicas sejam percebidas pela observação clínica. Foi o que aconteceu em agosto de 2015 quando duas neuropediatras de hospitais públicos do Recife, Pernambuco, Brasil, observaram o aumento do número de casos de neonatos com microcefalia de causa desconhecida e, em alguns casos, acompanhados de outras malformações congênitas 3,4. A consulta ao Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) confirmou a observação acurada dos profissionais de saúde pernambucanos: havia um aumento importante do registro de casos 3.
Em outubro desse mesmo ano, uma busca realizada por neonatologistas e clínicos em maternidades de referência em gestação de alto risco investigou e descreveu 29 casos de crianças com microcefalia internadas nestas unidades 5,6,7, o que levou a Secretaria de Saúde do Estado de Pernambuco (SES-PE) a comunicar a existência dessa epidemia inusitada ao Ministério da Saúde 3. Equipes da SES-PE juntamente com técnicos do Programa de Treinamento em Epidemiologia Aplicada aos Serviços do Sistema Único de Saúde (EPISUS) iniciaram uma investigação epidemiológica preliminar dos casos.
A microcefalia congênita é uma condição definida como um perímetro cefálico pequeno, presente ao nascimento 8. Esse achado clínico, em sua maioria, pode estar associado ao comprometimento do sistema nervoso central (SNC) e alterações cognitivas. No entanto, não indica necessariamente um desenvolvimento cerebral anormal e alguns neonatos com microcefalia são normais 9. A medida do perímetro cefálico (PC) é uma ferramenta de triagem para a detecção de microcefalia independente de sua causa. Uma definição aceita de microcefalia é a de uma circunferência occiptofrontal (COF), desvio padrão (DP) abaixo da média para o sexo e idade gestacional 9,10,11. Um PC abaixo do padrão das curvas de crescimento indica a existência de um cérebro pequeno, e exames de neuroimagens e testes laboratoriais auxiliam na investigação de anomalias congênitas 3,10. A microcefalia congênita pode resultar de um crescimento anormal do cérebro durante a vida intrauterina, associado às síndromes genéticas ou injúrias por hipóxia, distúrbios metabólicos, exposição a agrotóxicos e infecções que podem interferir no desenvolvimento cerebral. As principais infecções congênitas que podem causar microcefalia são aquelas tradicionalmente denominadas TORCH: toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus, herpes simples e sífilis 9,10.
Uma epidemia é definida como a ocorrência de casos de uma doença, comportamento específico ou outros eventos relacionados à saúde, claramente acima da expectativa normal para uma dada comunidade ou região 12. As evidências apontavam para uma inusitada e estranha epidemia de microcefalia em Pernambuco, com o aumento de quase cinco vezes os registros do SINASC em apenas três meses (agosto a outubro de 2015). Em novembro de 2015, quando o aumento do número de casos foi também identificado em outros estados da Região Nordeste, o Ministério da Saúde assumiu a existência de uma epidemia dessa malformação congênita e decretou estado de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) 13, após reunião em Brasília com a participação de representantes da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e de pesquisadores de diversas áreas de formação no campo da saúde, demonstrando a articulação entre o Ministério da Saúde e a comunidade acadêmica.
Apesar do aumento impressionante de casos da malformação congênita e da decretação do estado de emergência de saúde pública pelo Ministério da Saúde, não havia consenso na comunidade científica acerca da existência de uma epidemia. Esse ceticismo sobre o enquadramento do evento pode ser exemplificado pela entrevista de pesquisadores brasileiros do Estudo Colaborativo Latino-Americano de Malformações Congênitas (ECLAMC), publicada pela revista Nature em uma edição “on-line first”, em 28 de janeiro de 2016. Esses especialistas diziam “que o aumento de casos de microcefalia podia ser atribuído em grande parte à busca intensa de casos de defeitos congênitos e diagnósticos errados” 14 (p. 13). Poucos dias depois, em 1º de fevereiro, a diretora geral da OMS, Dra. Margaret Chan, declarou que “os agregados de casos de microcefalia e síndromes neurológicas (...) são uma emergência de saúde pública de preocupação internacional” 2. A situação era um risco para a saúde de outros países, e devido à sua gravidade e desconhecimento de sua etiologia requeria uma resposta coordenada e imediata 15.
No epicentro dos acontecimentos muitas eram as especulações e rumores na sociedade e na academia, perguntas ainda sem respostas. Os pesquisadores foram confrontados com um cenário inusitado, era ao mesmo tempo uma tragédia do ponto de vista social e um grande desafio do ponto de vista científico. Como desdobramento operacional, o setor de vigilância em saúde do Ministério da Saúde, a OPAS e a SES-PE convidaram alguns pesquisadores para liderar uma agenda de projetos de pesquisa com foco na elucidação dessa epidemia. Dessa forma, um acordo interinstitucional entre Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-PE), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade de Pernambuco (UPE), SES-PE e Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP) foi assinado. Além disso, estabeleceu-se parceria internacional com a Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres (LSHTM; Londres, Reino Unido) e a Universidade de Pittsburgh (Pittsburgh, Estados Unidos). O acordo teve por objetivo definir as bases de cooperação interinstitucional nas áreas de pesquisa, para realizar projetos e estudos epidemiológicos. Esse grupo de pesquisadores e profissionais de saúde se autodenominou Microcephaly Epidemic Research Group (MERG; http://www.cpqam.fiocruz.br/merg/). A direção da Fiocruz-PE entendendo a gravidade da situação de saúde pública abriu as portas para o MERG, e este ato materializou a parceria no dia a dia do desenvolvimento das pesquisas clínico-epidemiológicas.
A epidemiologia é a ciência que estuda a distribuição e os determinantes da ocorrência de eventos de saúde e doenças em populações humanas 16. Duas premissas são fundamentais para a teoria e métodos epidemiológicos: (1) a distribuição das doenças não é aleatória e; (2) os fatores e processos determinantes dessa ocorrência podem ser identificados por meio de uma investigação sistemática de grupos populacionais, em um dado espaço e tempo 17. Em doenças infecciosas são também cruciais o conhecimento do(s) mecanismo(s) de transmissão (direto, sexual, por vetores etc.), os reservatórios e a complexa rede de contatos da população. Esses conhecimentos possibilitam estimar as taxas de transmissão, o potencial de dispersão da infecção em diferentes populações humanas e também traçar estratégias de prevenção e controle 18.
O estudo da distribuição de doenças, após uma definição clara de caso, considera questões como “onde” e “quando” a doença está ocorrendo, e “quem” está sendo acometido, dentro de uma população ou subgrupos de população. A epidemiologia começa com a descrição dos casos de doenças (ou agravos), a pergunta a se responder é se existe alguma(s) característica(s) que eles tenham em comum. A pergunta seguinte é intuitiva: por quê? Os estudos analíticos são desenvolvidos para testar hipóteses e explicar os padrões de ocorrência de doenças nessas populações 16,18. A epidemiologia fundamenta-se em três eixos: um saber clínico-biológico; uma base metodológica que vem da estatística; e um substrato social e demográfico. É com base nesses saberes que as observações e indagações se transformam em perguntas científicas. No caso da epidemia de microcefalia ao nascimento, muitas eram as indagações sem respostas.
Do ponto de vista da vigilância epidemiológica, era preciso definir o que seria “um caso de microcefalia”, e inicialmente esta definição visou a identificar o maior número de neonatos suspeitos para investigação, privilegiando a sensibilidade do critério, que se baseava na mensuração do PC. Naquele momento era relevante identificar todos os casos e essa estratégia permitiu que crianças, que a rigor não seriam classificadas com microcefalia, fossem investigadas e algumas delas apresentaram alterações de imagem na tomografia computadorizada cerebral. Isso contribuiu para a percepção de que havia um espectro maior de manifestações além da microcefalia.
Em março de 2016, o Ministério da Saúde alinhou-se às recomendações da OMS, que adotava, para crianças a termo, as medidas de 31,5cm para meninas e 31,9cm para meninos. Finalmente, em agosto de 2016, a OMS recomendou o uso dos parâmetros de curvas InterGrowth para ambos os sexos 19, o que significa pontos de corte de PC de 30,24cm para meninas e 30,54cm para meninos a termo. A principal justificativa para a adoção desses pontos de corte do PC foi privilegiar a especificidade do critério de definição de caso de microcefalia, com redução de casos falso-positivos 11.
As primeiras séries de casos publicadas descreveram neonatos com um fenótipo raro que envolve microcefalia e anomalias cerebrais. A microcefalia era caracterizada pela desproporção craniofacial e por vezes acompanhada por “cútis girata” (dobras do couro cabeludo em excesso). Ao nascimento, os reflexos arcaicos (reflexos de preensão palmar e plantar, de sucção, entre outros) estavam presentes, em geral se alimentavam bem, embora alguns casos evoluíram com disfagia. Ao exame neurológico, apresentavam hipertonia ou espasticidade, hiper-reflexia, irritabilidade, tremores e convulsões 20,21. Alguns neonatos apresentavam atrofia macular ao exame oftalmológico 22 e distúrbios auditivos 20. Os exames de imagem mostravam anormalidades do sistema nervoso central e presença de calcificações intracranianas indicativas de infecção intrauterina 23.
Rapidamente, outras alterações foram sendo descritas como fazendo parte da síndrome que apresentava características de infecção congênita, tais como pés tortos (talipes equinovarus) e a artrogripose, esta última definida como contraturas congênitas articulares em consequência de anormalidades neurológicas 24.
Diante de um fato tão inesperado como uma epidemia de microcefalia, era natural que surgissem polêmicas em torno de potenciais fatores de risco vinculados à malformação. Vacinas durante a gravidez 25,26? Larvicida usado na água potável para controle de vetores 27,28? No cenário da saúde pública, um arbovírus emergia no mundo: o vírus Zika (ZIKV).
No Brasil, no final de 2014 e início de 2015, serviços de vigilância epidemiológica de estados do Nordeste relataram um surto de doença exantemática com quadro clínico caracterizado por exantema de início precoce, sem febre ou febre baixa, acompanhada de artralgia, edema articular e conjuntivite. Devido à presença de artralgia, a infecção pelo vírus chikungunya (CHIKV) foi investigada e afastada por testes sorológicos e pela técnica de PCR (polymerase chain reaction). A observação dos casos não fazia pensar em doenças exantemáticas clássicas, nem em dengue, o que levou um infectologista da Universidade Federal do Rio Grande do Norte a considerar a existência de infecção pelo ZIKV 5,29. A presença do ZIKV no Nordeste do país foi confirmada em abril de 2015 por PCR realizada em amostras de casos suspeitos na Bahia e no Rio Grande do Norte 30,31.
Questionava-se se o vírus foi introduzido no Brasil durante a Copa do Mundo de futebol de 2014, embora nenhum país endêmico para o ZIKV tenha competido. Outra hipótese é que o ZIKV tenha sido introduzido durante um campeonato mundial de canoagem, no Rio de Janeiro, quando times da região do Pacífico competiram (Polinésia Francesa, Nova Caledônia, Ilhas Cook e Ilha de Páscoa) 32,33. Uma terceira hipótese mais plausível, porque baseada em um estudo do genoma do ZIKV, demonstrou por análise filogenética e molecular uma única entrada do vírus no país, entre maio e dezembro de 2013. A data estimada coincide com a Copa das Confederações e com o aumento de passageiros de transporte aéreo vindos da Polinésia Francesa, onde ocorria o auge da epidemia pelo ZIKV. A equipe do Taiti (Polinésia Francesa) jogou na Arena Pernambuco em junho de 2013. Esse fato também explicaria a maior dimensão da epidemia nesse estado 34. O estudo de filogenética do vírus reconhece que a cepa brasileira é de origem asiática, compartilhando um ancestral comum que circulou na Polinésia Francesa 34. Apesar das publicações, o tema ainda gera controvérsias entre alguns especialistas da área.
O ZIKV é um flavivírus da família Flaviviridae transmitido principalmente pelos mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus, isolado pela primeira vez em 1947 em Uganda, África, na floresta que lhe deu o nome 35. Depois da primeira infecção humana confirmada em Uganda entre 1962 e 1963 36, casos esporádicos foram relatados na África e Ásia, e esta disseminação do ZIKV ocorreu silenciosamente, durante décadas, com poucos relatos de infeção humana por 60 anos 35. Assim, a impressão que a infecção pelo ZIKV causava apenas uma doença febril leve durou várias décadas 37, até o primeiro surto documentado ocorrer na Micronésia, na ilhas Yap, em 2007 38, e em seguida, entre março de 2013 e setembro de 2014, na Polinésia Francesa 39. Durante essa última epidemia, casos de síndrome de Guillain-Barré foram relatados, com uma incidência aproximadamente vinte vezes maior do que a esperada 40,41.
Em Pernambuco, observou-se o mesmo fenômeno; após o surto da doença, o número de casos de síndromes neurológicas agudas em adultos começou a aumentar nas emergências e serviços de neurologia. Sete pacientes com quadros neurológicos foram positivos para ZIKV pela RT-PCR, seis no soro e um no líquido cefalorraquidiano (LCR), testes realizados no laboratório de virologia (LAVITE) da Fiocruz-PE. Desses pacientes, quatro foram diagnosticados com síndrome de Guillain-Barré, dois com encefalomielite aguda disseminada e um com meningoencefalite 2,42,43. Meses depois surgiram os primeiros casos de microcefalia. A hipótese de causalidade foi elaborada com base nessa correlação espaço-temporal entre a epidemia de microcefalia e surtos de infecção pelo ZIKV, meses antes, e características clínico-epidemiológicas da epidemia. A existência de muitos casos num curto espaço de tempo, ocorrendo simultaneamente em várias cidades, indicava uma doença com alta taxa de ataque, rápida dispersão, o que sugeria a possibilidade de ser transmitida por mosquitos artrópodes, responsáveis pela transmissão e disseminação de outro flavivírus em áreas urbanas, o vírus dengue. As principais doenças conhecidamente associadas à microcefalia que faziam parte das hipóteses iniciais dos especialistas, como a toxoplasmose, rubéola e citomegalovírus, pelo modo de transmissão, não estão associadas a grandes surtos. Essas evidências serviram de base para um clínico com formação em saúde pública elaborar a hipótese de associação entre ZIKV e microcefalia. O histórico desse processo foi registrado em artigo de Brito 5.
A associação entre infecção congênita por ZIKV e microcefalia parecia uma hipótese surpreendente: existiam poucos registros anteriores de malformações associadas à infecção congênita por um flavivírus 44. Os casos de microcefalia associados à epidemia por ZIKV nas ilhas do Pacífico só foram investigados e reportados retrospectivamente 45. Dessa forma, identificou-se a existência de associação espaço-temporal entre a epidemia de ZIKV e malformações fetais, tal como reconhecido prontamente no Brasil 5,46.
Os mesmos fatores que impulsionaram a disseminação do vírus da pandemia de dengue provavelmente são também responsáveis pela emergência e disseminação do ZIKV 35. A urbanização global e o crescimento não planejado das cidades dos países pobres e de renda média vêm transformando as áreas urbanas em locais favoráveis à proliferação de doenças transmitidas por vetores 47.
Além disso, os aspectos clínicos foram importantes na consolidação da hipótese. A investigação inicial dos casos de microcefalia em maternidade de referência no estado mostrou que 70% das gestantes apresentavam relato de quadro infeccioso associado à exantema, com padrão semelhante ao quadro clínico de Zika: exantema predominante, ausência ou pouca febre, conjuntivite e edema articular 5,48,49. Outra informação clínica que reforçou a hipótese do envolvimento do ZIKV por parte dos investigadores foi o fato de já existir relatos da associação do vírus com quadros neurológicos do adulto 40, confirmados em meses anteriores em Pernambuco 50.
O ZIKV foi encontrado em líquido amniótico de gestantes, com fetos com microcefalia detectada intraútero 51 e em tecido de cérebros e placentas de neonatos e fetos mortos 52. Os primeiros 42 casos de microcefalia investigados no Estado de Pernambuco apresentavam IgM antiZIKV no soro em 90,5% dos casos e de 100% no LCR, confirmando a infecção congênita e neurológica pelo ZIKV nos neonatos, uma vez que IgM materna não ultrapassa a barreira placentária ou hematoencefálica 7,53. Os estudos de Brasil et al. 54 e de Mlakar et al. 55 demonstraram ainda que a infecção de mulheres grávidas pelo ZIKV precedeu ao achado de microcefalia ou outras anormalidades cerebrais em fetos ou neonatos. Retrospectivamente, uma investigação na Polinésia Francesa identificou um excesso de casos de malformações neurológicas graves incluindo casos de microcefalia após o surto de ZIKV ocorrido em 2013 e 2014 45.
Assim, as evidências encontradas demonstravam uma provável relação causal entre a infecção congênita pelo ZIKV e a epidemia de microcefalia, embora ainda fossem necessários estudos epidemiológicos com desenhos mais adequados para se estabelecer a inferência causal 56. Sem estudos analíticos, com grupos de controle, considerar a relação observada entre infecção pelo ZIKV e microcefalia como causal seria inferir uma associação no nível individual, com base na observação no nível agregado de uma correlação espaço-temporal, ou seja, uma “falácia ecológica” 16,57.
Por outro lado, mesmo após o Ministério da Saúde assumir a relação entre o ZIKV e o surto de microcefalia na Região Nordeste 13 e a OMS declarar que os casos de microcefalia e outras alterações neurológicas possivelmente associados à infecção pelo ZIKV constituíam uma emergência de saúde pública de interesse internacional PHEIC 2,15, pesquisadores brasileiros e estrangeiros ainda questionavam a ousadia da hipótese, sem, no entanto, considerá-la “não inteiramente irracional” 58.
Especialistas questionaram por que as explosões de casos não ocorreram em outras áreas do país naquele ano e nos anos subsequentes, sugerindo que algo mais do que o ZIKV estaria causando essas diferenças e que outros fatores ambientais, socioeconômicos ou biológicos poderiam estar em jogo para justificar as diferenças 59,60,61,62.
Pernambuco foi considerado o epicentro da epidemia apresentando um grande número de casos, quando comparado a outros estados do Nordeste que foram acometidos pelo surto no mesmo período. Na Tabela 1 aponta-se que Pernambuco registrou um total de 399 casos confirmados, entre a semana epidemiológica 45/2015 e a semana epidemiológica 52/2016, número bem superior ao dos demais estados, excetuando a Bahia. Pode-se verificar também que as taxas de prevalência de Sergipe (31,5/10 mil nascidos vivos) e Paraíba (27,3/10 mil nascidos vivos) foram superiores a de Pernambuco (23,8/10 mil nascidos vivos) 63.
Tabela 1 Prevalência média anual de microcefalia relacionada à infecção pelo Zika vírus nos estados da Região Nordeste, Brasil, 2015-2016.
Unidades da Federação | Nascidos vivos * | Casos confirmados ** | Prevalência média anual (por 10 mil nascidos vivos) |
---|---|---|---|
Maranhão | 117.564 | 157 | 11,6 |
Piauí | 49.253 | 99 | 17,4 |
Ceará | 132.516 | 109 | 7,1 |
Rio Grande do Norte | 49.099 | 126 | 22,2 |
Paraíba | 59.089 | 186 | 27,3 |
Pernambuco | 145.024 | 399 | 23,8 |
Alagoas | 52.257 | 86 | 14,3 |
Sergipe | 34.917 | 127 | 31,5 |
Bahia | 206.655 | 420 | 17,6 |
Total | 846.374 | 1.709 | 17,5 |
* Nascidos vivos em 2015 segundo Unidade da Federação de residência da mãe (Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos. Departamento de Informática o SUS; http://www.datasus.gov.br).
** Casos de microcefalia relacionados à infecção pelo Zika vírus, ocorridos no período de 60 semanas, decorridas entre a semana epidemiológica 45/2015 e a semana epidemiológica 52/2016 63.
No período analisado, essa variação da prevalência de microcefalia entre os estados do Nordeste é pequena e por vezes sem significância estatística. Isso pode ser explicado tanto pela proximidade geográfica dos centros urbanos da região, com intensa mobilidade populacional, quanto pela possível flutuação aleatória que ocorre quando calculamos taxas para eventos raros.
No entanto, a interpretação desses dados de notificação deve levar em conta possíveis diferenças na aplicação da definição de caso e diversidade operacional para confirmação laboratorial dos casos. Vale lembrar que esse sistema de vigilância foi construído e implementado durante o primeiro surto de microcefalia e sujeito a subnotificações ou supernotificações. O recém-criado sistema de informação para monitoramento de síndrome de Zika congênita deve ser objeto de avaliação e aperfeiçoamento como qualquer sistema de uma nova doença.
Acreditamos que a pronta resposta da SES-PE ao alerta das neurologistas e a declaração de emergência em saúde pública pelo Ministério da Saúde do Brasil e depois pela OMS foram um divisor de águas para a mobilização da comunidade científica e para a coordenação das respostas de saúde pública no Brasil e no mundo. Pesquisadores, profissionais de saúde e gestores elaboraram protocolos de atendimentos às gestantes e bebês, desenvolveram projetos de pesquisas operacionais e instrumentos de avaliação de campo. A magnitude desse evento, o potencial de expansão quebrou as barreiras institucionais criando espaço para o compartilhamento de dados e conhecimento em tempo real. O primeiro estudo caso-controle para explorar as possíveis causas e fatores associados às malformações congênitas foi financiado sob essa emergência (ESPIN) e em vigência de intensa crise econômica e política no Brasil (impeachment da Presidente Dilma Rousseff) 64,65.
Uma das formas de o pensamento científico explicar a origem de um fenômeno é mediante a identificação de sua causa. Apesar de no âmbito da epidemiologia social terem sido incorporados, com base na filosofia, conceitos mais abrangentes de causa, como causa estrutural e causa final 66, o método epidemiológico clássico lida mais frequentemente com o conceito de causa eficiente ou direta. Ou seja, o estudo da causalidade na epidemiologia fundamenta-se na busca da causa “específica” da doença. Essa abordagem legitimou-se com a identificação de agentes etiológicos de doenças infecciosas. A partir da segunda metade do século XX, com o declínio das doenças infecciosas e o aumento das doenças cardiovasculares e do câncer, o estudo da causalidade em epidemiologia deslocou-se para a quantificação probabilística do risco. Esse modelo tornou-se mais adequado a essas doenças e agravos que não têm uma “causa” única e permitiu “solucionar problemas” que existem à luz de alguma teoria 67.
O teste da hipótese de causalidade envolve considerar a associação estatística entre uma exposição em particular e uma doença/evento. A medida de efeito estimada, o risco, é uma medida probabilística, que procura saber se a probabilidade de desenvolver uma doença/evento na presença de uma exposição é diferente da probabilidade correspondente na sua ausência 16. Em outras palavras, “associação” refere-se à dependência estatística entre duas variáveis, isto é, até que ponto a taxa de doença/evento entre as pessoas com um tipo de exposição específica é maior ou menor do que a taxa de doença entre aqueles sem a exposição. A presença de associação, entretanto, não garante a existência de uma relação de causa e efeito. Fazer julgamentos a respeito de causalidade não é “direto” e envolve uma cadeia lógica que remete a questões de validade da associação e à elaboração de um quadro teórico que dê suporte a um julgamento de causalidade. A validade da associação é verificada quando se minimiza o papel do acaso, pelo teste de significância estatística, quando se evita ou minimiza a presença de vieses com o planejamento de um desenho de estudo adequado do ponto de vista metodológico e controlam-se os potenciais fatores de confusão (confounding), ou explicações alternativas 19. Contudo, o risco é uma medida de associação estatística, inadequada para inferir diretamente a causalidade. Bradford Hill, em 1965, já definia critérios, adaptados dos cânones causais de John Stuart Mill, para avaliar a natureza causal ou não de uma associação epidemiológica encontrada.
No caso da associação entre infecção pelo ZIKV e microcefalia, autores realizaram esse exercício de verificação dos critérios de Hill, numa etapa do conhecimento quando poucos deles poderiam ser considerados como contemplados 2,56. Contudo, rapidamente os resultados de estudos foram agregando conhecimento.
Em relação à plausibilidade biológica, ou seja, a existência de uma explicação plausível para a hipótese de associação, está ancorada no neurotropismo do ZIKV, já demonstrado em animais à época de sua identificação 68,69, que passou a ser suspeitado em seres humanos, conforme se verifica em observações da associação entre a infecção pelo ZIKV e a ocorrência de complicações neurológicas 70. Ainda nesse sentido, houve isolamento do RNA viral e antígenos no líquido amniótico de mães infectadas e em cérebros de neonatos e fetos afetados pela microcefalia, demonstrando que a infecção congênita pelo ZIKV atinge a placenta e atravessa a barreira hematoencefálica fetal 51,52,55. A consistência da associação, que representa a repetição dos achados em diferentes grupos populacionais, foi fundamentada com o relato de caso de microcefalia congênita e infecção pelo ZIKV em gestante que esteve em área epidêmica 55 e séries de casos de microcefalia em recém-nascidos com relatos de provável infecção de gestante pelo ZIKV 23,44. O critério da temporalidade, ou seja, a causa precede o efeito ou evento, foi demonstrado em uma coorte de 182 gestantes com exantema e positivas para o ZIKV, em que 58 (46%) apresentaram desfechos desfavoráveis da gestação incluídos abortos, natimortos, anormalidades em exames de imagem em nascidos vivos 54. Quanto à analogia, recurso usado no pensamento científico, entre os flavivírus, o vírus da encefalite japonesa causou infecção congênita associada a efeitos teratogênicos durante epidemias em Uttar Pradesh, Índia, o que assinalou a introdução do vírus em uma população imunologicamente suscetível 44. Os experimentos em animais também têm dado suporte à hipótese de causalidade em estudos recentes. O ZIKV parece atingir principalmente os neurônios progenitores no cérebro em desenvolvimento 71 e, em primatas, a infecção materna com viremia prolongada causa malformações fetais 72,73.
Finalmente, o primeiro estudo epidemiológico, analítico, um caso-controle desenvolvido para testar a hipótese de associação entre microcefalia e infecção congênita pelo ZIKV foi desenvolvido em Pernambuco pelo MERG, com o apoio do Ministério da Saúde e da OPAS 64. Os resultados preliminares do caso-controle com recrutamento prospectivo dos bebês ao nascimento mostraram existir uma forte associação entre microcefalia e infecção congênita pelo ZIKV (OR = 55,5; IC95%: 8,6-∞). Essa divulgação acadêmica inicial visou a preencher a lacuna de conhecimento à época. Nesse estudo, recomendou-se que a nova síndrome congênita do ZIKV fosse incluída entre as TORCH, conjunto de infecções transmitidas da mãe para o filho durante a gravidez 64. Os resultados finais do estudo, com uma amostra de 91 casos e 173 controles, confirmaram a forte associação (OR = 73,1; IC95%: 13,0-∞). Nenhum controle (neonatos sem microcefalia) foi positivo para o ZIKV. Adicionalmente, nem as vacinas durante a gravidez, nem o uso de larvicida foram associados à microcefalia. Esses achados fortalecem a interpretação da associação causal entre microcefalia em neonatos e infecção congênita do ZIKV durante a epidemia no Brasil. Também refuta as hipóteses de que o uso de larvicida no ambiente domiciliar ou vacinas durante a gravidez aumentam o risco de microcefalia 65. Um estudo caso-controle não possibilita estabelecer qual o risco da infecção pelo ZIKV de acordo com o período gestacional. Esse tipo de pergunta deve ser respondida pelos estudos de seguimento em andamento 74.
A análise da distribuição espacial dos casos de microcefalia no Recife, considerando as desigualdades sociais da cidade, demonstrou que a população com melhores condições de vida foi muito menos afetada pela epidemia de microcefalia do que as outras com condições de vida mais precárias 75, ressaltando o papel da causa estrutural, enfocada pela epidemiologia social na determinação do processo saúde-doença 66.
Em uma revisão de 1.501 neonatos com microcefalia, notificados no Brasil, para quem a investigação por equipes médicas em seus estados de origem foi concluída até fevereiro de 2016, os casos foram classificados em cinco categorias com base em resultados de neuroimagem e testes laboratoriais para o ZIKV e outras infecções relevantes. Foram descartados 899 casos de microcefalia por falta de informações. Dos demais 602 casos, 76 (12,6%) apresentaram evidência laboratorial de infecção pelo ZIKV e foram classificados como “definitivos”, independentemente de outros achados. Cinquenta e quatro (9%) casos foram categorizados como “altamente provável” por apresentarem lesões cerebrais altamente sugestivas da síndrome de Zika congênita, nos exames de imagem, e testes negativos para outras infecções congênitas. Foram enquadrados como “moderadamente provável” 181 (30,1%), com lesões cerebrais sugestivas da síndrome de Zika congênita, mas para estes não foi possível afastar outras infecções congênitas. Na quarta categoria “com alguma probabilidade” ficaram 291 (48,3%) casos notificados de microcefalia com relato de achados aos exames de imagem, mas sem descrição destes achados. Chamou a atenção que “um em cada cinco casos notificados, classificados como definitivos ou prováveis, apresentou circunferências de cabeça no intervalo normal (acima de -2 DP abaixo da mediana do padrão InterGrowth)” 76 (p. 891). Esses achados apontam para a dificuldade de estabelecer critérios para a confirmação de casos dessa nova síndrome. Fica ainda evidente que o PC não pode ser o único critério de triagem para a investigação da síndrome de Zika congênita.
Mais recentemente, estudos mostraram que a síndrome de Zika congênita é composta por um espectro de desfechos adversos no neonato ainda não totalmente descrito e que a microcefalia é apenas um sinal clínico mais evidente. A revisão recente de relatos e séries de casos publicados na literatura identificou algumas características provavelmente específicas da síndrome de Zika congênita: fenótipo de disrupção do crescimento sequencial cerebral (raramente descrito antes de 2015), córtex cerebral fino com calcificações cerebrais subcorticais, atrofia corioretiniana afetando a mácula, contraturas congênitas, hipertonia precoce com sintomas extrapiramidais 77.
De outubro de 2015 até maio de 2017, 26 países das Américas relataram casos confirmados da síndrome de Zika congênita e, neste período, de 3.374 casos, 82% ocorreram no Brasil. Síndrome de Zika congênita é confirmada quando o recém-nascido vivo preenche os critérios para um caso suspeito e a infecção pelo ZIKV é comprovada em espécimes do recém-nascido, independentemente da detecção de outros patógenos 78.
Ainda falta muito para a descrição completa do espectro de eventos adversos associados à infecção congênita pelo ZIKV, e pesquisadores pernambucanos continuam engajados em investigações direcionadas a responder algumas questões prementes, em parceria com instituições nacionais e estrangeiras: qual é a taxa de transmissão materno-infantil do ZIKV? Qual é a taxa de malformações em fetos infectados pelo ZIKV? Quais são os efeitos adversos da infecção congênita pelo ZIKV a longo prazo em neonatos infectados sem anomalias detectáveis no nascimento? Essas e outras perguntas só podem ser respondidas com a Epidemiologia, ciência voltada para analisar e solucionar problemas de Saúde Pública. Uma recente publicação aborda a emergência do ZIKV, sua dispersão e as lacunas do conhecimento na perspectiva brasileira 79. Acreditamos que projetos de pesquisa desenvolvidos no âmbito de consórcios nacionais e internacionais em andamento, como por exemplo Clinical Cohort of Children with Microcephaly and Other Manifestations of Zika Congenital Syndrome in Brazil, patrocinado pelo consórcio de pesquisa Preparedness Latin America Network (ZikaPlan), e o estudo de coorte multicêntrico Zika in Infants and Pregnancy (ZIP study) têm muito a contribuir. São delineamentos prospectivos de pesquisas que podem ter como produto respostas às questões ainda não esclarecidas, anteriormente mencionadas. Trata-se não só de um marco científico, mas de incentivo em realizar pesquisas multicêntricas que reduzam as duplicidades, otimizem os recursos financeiros e produzam evidências sólidas em curto espaço de tempo, visando à implantação de políticas públicas.
O conhecimento até agora construído, no âmbito do paradigma epidemiológico do risco, recebeu a chancela da comunidade científica, personificada em nossos dias pela ação de pareceristas e editores de periódicos científicos, o que constitui um dos indicadores do pacto ou compartilhamento de valores entre pesquisadores para a construção do consenso 80. Fazer ciência em épocas de crise significa manter o rigor metodológico dos estudos para garantir a validade dos achados, porém acelerando os processos tradicionais de planejamento, preparação, financiamento e desenvolvimento de pesquisas para dar respostas imediatas às demandas urgentes de saúde pública. É muito raro que pesquisadores tenham a oportunidade de participar da investigação de uma nova entidade nosológica e da construção do seu conhecimento, principalmente em um contexto de emergência em saúde pública nacional e internacional. Os trabalhos foram desenvolvidos em um clima de comoção nacional e intenso vigor de discussões e controvérsias sobre a etiologia do fenômeno. A infecção pelo ZIKV ainda não tinha sido associada a malformações congênitas. Para os neurologistas e demais profissionais de saúde que prestaram assistência aos casos, sanitaristas que criaram sistemas de vigilância para a sua notificação e acompanhamento, e epidemiologistas que no “momento zero” elaboraram e desenvolveram pesquisas para esclarecer sua etiologia, foi uma experiência única, a de escrever ciência em uma página em branco.