versão On-line ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde vol.24 no.1 Brasília jan./mar. 2015
http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742015000100011
to describe the epidemiological aspects of visceral leishmaniasis (VL) cases reported in the municipality of Bauru, state of São Paulo, Brazil, 2004-2012.
this was a descriptive study using data from the Notifiable Diseases Information System (SINAN) managed by the Municipal Health Department.
381 cases of VL were reported in the period and were distributed over 100 of the city's districts (28.6%); 61.7% of the studied cases were male; 43.8% were children aged ≤10 years; 98.4% lived in urban areas; VL/HIV co-infection rate was 9.2%; 8.1% of cases died.
there were more cases among men and those living in the city's urban area, in low-income neighborhoods and those with low education; the diversification of these characteristics point to the need to optimize disease surveillance and control.
Key words: Leishmaniasis; Leishmaniasis, Visceral; Information Systems; Epidemiology, Descriptive
describir las características epidemiológicas de los casos de leishmaniasis visceral (LV) notificados en el municipio de Bauru, estado de São Paulo, Brasil, en el período de 2004 a 2012.
estudio descriptivo, sobre datos obtenidos del Sistema de Información de Agravamientos de Notificación (Sinan), gestionado por la Secretaría Municipal de Salud.
en el período estudiado, fueron notificados 381 casos de LV, distribuidos en 100 (28,6%) barrios de la ciudad; 61,7% de los casos estudiados pertenecían al sexo masculino; 43,8% era de niños con edad ≤10 años; 98,4% era habitante de la zona urbana; la tasa de coinfección LV/HIV encontrada fue de 9,2%; y 8,1% de los casos evolucionó a óbito.
entre los casos, predominaron hombres, residentes en el área urbana, en barrios de la periferia y de baja escolaridad; la diversificación de esas características señala la necesidad de optimizar las acciones de vigilancia y control de la enfermedad.
Palabras-clave: Leishmaniasis; Leishmaniasis Visceral; Sistemas de Información; Epidemiología Descriptiva
A leishmaniose visceral (LV) encontra-se entre as seis endemias consideradas prioritárias no mundo.1 Aproximadamente 300 mil novos casos da doença surgem a cada ano, mais de 90% deles em seis países: Índia, Bangladesh, Sudão, Sudão do Sul, Etiópia e Brasil.2
A referida parasitose é causada por protozoários do gênero Leishmania - no Brasil, mais especificamente, Leishmania (Leishmania) infantum chagasi e, raramente, Leishmania (Leishmania) amazonensis - e é transmitida por meio da picada de mosquitos vetores - Lutzomyia longipalpis e Lutzomyia cruzi - denominados flebotomíneos.3
Além do homem, a LV também acomete outras espécies de animais, incluindo roedores, marsupiais, edentados e canídeos.4 O cão é considerado o principal reservatório doméstico da doença e, consequentemente, a principal fonte de infecção humana.5
O período de incubação da doença é bastante variável, podendo durar de dez dias a 24 meses, com média entre dois e seis meses.6
As principais manifestações clínicas, que podem ser discretas ou acentuadas, incluem febre, hepatomegalia associada ou não à esplenomegalia, palidez cutâneo-mucosa, diarreia e perda de peso.7 Frequentemente, os exames complementares evidenciam, em diferentes graus, anemia, trombocitopenia, leucopenia, hipoalbuminemia e hipergamaglobulinemia.8
Quando não tratada, a LV quase sempre evolui para óbito,9 e mesmo quando tratada, a doença pode resultar em taxas de letalidade ao redor de 10 a 20%.10 Frequentemente, o óbito é determinado por infecções bacterianas e/ou hemorragias.11
Os dados mundiais de vigilância indicam que o número de casos de LV aumentou a partir da década de 19909 e, embora seja uma doença predominantemente rural, esses registros revelam um processo de urbanização da LV.6
No Brasil, entre os anos de 2005 e 2009, a média de casos da doença foi de 3.679 casos/ano, alcançando uma taxa de letalidade de 5,8% (2009).12
Considerando-se que os estudos epidemiológicos podem trazer contribuições relevantes para as atividades de informação sanitária, controle e prevenção das leishmanioses junto à comunidade, o objetivo do presente estudo foi descrever as características epidemiológicas dos casos de leishmaniose visceral - LV - notificados no município de Bauru, estado de São Paulo, Brasil, no período de 2004 a 2012.
Foi realizado um estudo descritivo de série de casos, sobre dados obtidos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), gerido pela Secretaria Municipal de Saúde. Foram incluídos todos os casos novos humanos notificados no período de janeiro de 2004 a dezembro de 2012. Casos notificados em Bauru-SP e provenientes de outros municípios e casos de recidivas foram excluídos da pesquisa.
Bauru-SP está localizada no interior do estado de São Paulo, a noroeste da capital, distando desta aproximadamente 326 km. Em 2010, a população do município foi estimada pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 346.076 habitantes, 98,5% deles vivendo na zona urbana.13
Os dados coletados incluíram ano de notificação, sexo (masculino ou feminino), raça/cor da pele (branca, negra, amarela, parda e indígena), idade (em anos completos), escolaridade (em anos de estudo concluídos: nenhum; um a três anos - Ensino Básico -; quatro a sete anos - Ensino Fundamental -; oito a 11 anos - Ensino Médio -; e 12 anos ou mais - Ensino Superior), zona (urbana ou rural) e bairro de residência, ocupação, manifestações clínicas (febre, fraqueza, emagrecimento, tosse e/ou diarreia, esplenomegalia e hepatomegalia), infecções associadas (HIV, tuberculose e outras) e evolução do caso (cura ou óbito).
As avaliações das frequências foram realizadas utilizando-se o programa Microsoft Office Excel 2007(r) e as taxas de letalidade (por sexo, idade e infecção pelo HIV) foram calculadas dividindo-se o número de óbitos pelo número total de doentes e multiplicando-se por 100.
O estudo foi aprovado pela Secretaria Municipal de Saúde de Bauru-SP e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Anhanguera Educacional (CEP/Aesa) em 5 de junho de 2013, sob o Parecer nº 303.093/2013.
No período de 2004 a 2012, foram notificados 381 novos casos de LV em Bauru-SP, sendo a média de notificação de 42,3 ± 6,6 casos/ano. O menor número de casos foi registrado em 2010 (23); e o maior número, em 2008 (79) (Figura 1).
Figura 1 Distribuição anual do número de casos de leishmaniose visceral no município de Bauru, São Paulo, 2004 a 2012
Dos 381 casos notificados, 235 (61,7%) eram do sexo masculino, 188 (49,3%) indivíduos eram de raça/cor da pele branca e 167 (43,8%) eram crianças com idade ≤10 anos; e entre os indivíduos com idade ≥18 anos, a maioria, 118 (63,1%), possuía no máximo sete anos de estudos concluídos (Ensino Fundamental), sendo que 18 (9,6%) pessoas haviam estudado por mais de 12 anos (além do Ensino Médio completo). Quanto ao processo de urbanização da doença, 375 (98,4%) indivíduos atingidos pela LV em Bauru-SP eram moradores da zona urbana (Tabela 1).
Tabela 1 Características epidemiológicas dos casos de leismaniose visceral (N=381) no município de Bauru, São Paulo, 2004 a 2012
a) Avaliação realizada entre os 187 indivíduos acometidos com idade ≥18 anos
b) Frequência cumulativa
c) HIV: vírus da imunodeficiência humana
Foram notificados casos em 100 (28,6%) bairros (Tabela 2), distribuídos principalmente na zona oeste e na zona norte da cidade. Os bairros com maior incidência da doença foram Parque Jaraguá (22), Parque Santa Edwirges (16), Jardim Ouro Verde (15), Vila Dutra (14), Pousada da Esperança (13), Vila Alto Paraíso (13), Núcleo Habitacional Vereador Édson Francisco da Silva (Bauru XVI) (12) e Vila Carolina (11) (Figura 2).
Tabela 2 Distribuição geográfica dos 375 casos de leishmaniose visceral notificados na zona urbana do município de Bauru, São Paulo, 2004 a 2012
Figura 2 Bairros com os maiores números de casos de leishmaniose visceral no município de Bauru, São Paulo, 2004 a 2012
Em relação à ocupação profissional dos infectados, os dados revelaram bastante diversificação. As profissões mais acometidas foram as de empregada doméstica (19), pedreiro (15), dona de casa (14) e ajudante geral (13).
Quanto às manifestações clínicas, 358 (94%) doentes apresentaram febre, 318 (83,5%) esplenomegalia, 288 (75,6%) hepatomegalia, 293 (76,9%) fraqueza, 262 (68,8%) emagrecimento e 200 (52,5%) tosse e/ou diarreia (Tabela 1). Entre todos os casos, 23 indivíduos (6%) não tinham registro de manifestações clínicas no Sinan.
A investigação de possíveis infecções associadas apontou que 35 (9,2%) indivíduos acometidos pela LV eram HIV-positivos e um indivíduo (0,3%) tinha tuberculose (Tabela 1).
Dos 381 casos incluídos no estudo, 344 (90,3%) evoluíram para cura e 31 (8,1%) para óbito; em 6 casos, o registro da evolução apresentava-se como ignorado (1,6%) (Tabela 1).
Em relação aos óbitos (Tabela 3), 19 pessoas eram do sexo masculino e 12 do sexo feminino, sendo que a taxa de letalidade observada entre os homens foi de 8,1%, e entre as mulheres, de 8,3%. Considerando-se a faixa etária, as maiores taxas de letalidade associadas à doença foram encontradas entre os indivíduos com mais de 60 (23,1%), entre 41 e 60 (13,5%) e com menos de 1 ano (11,5%). Ademais, entre todos os indivíduos, 8 (25,8%) eram HIV-positivos, sendo de 22,9% a taxa de letalidade observada entre as pessoas infectadas pelo HIV, frente à taxa de letalidade de 6,6% entre pessoas não infectadas pelo vírus da imunodeficiência humana.
A maior parte dos casos notificados com LV era do sexo masculino, principalmente indivíduos de raça/cor branca e crianças com idade ≤10 anos. Entre os indivíduos afetados com idade ≥18 anos, a maioria possuía no máximo sete anos de estudos concluídos (Ensino Fundamental). Refletindo importante processo de urbanização da doença, quase todos os casos eram moradores da zona urbana.
Segundo dados do IBGE, nos últimos anos, a população urbana no Brasil alcançou a taxa de 85%, o que propiciou a emergência e reemergência de parasitoses como a LV.14 Além disso, o desmatamento e erguimento de novas construções na periferia das cidades tem contribuído significativamente para a crescente urbanização da doença.15
Em Bauru-SP, o aumento da transmissão da LV acompanhou a expansão urbana e a intensa mobilidade populacional. Ao se percorrer os eixos rodoviários e ferroviários de São Paulo, observam-se padrões semelhantes de expansão urbana e mobilidade da população em outras cidades do interior paulista, como Araçatuba-SP, Presidente Prudente-SP e Dracena-SP.16 , 17
O predomínio de casos masculinos, como descrito em outros trabalhos disponíveis na literatura,18 , 19 sugere que homens estariam mais expostos ao vetor, provavelmente em função de desempenharem atividades ocupacionais e comportamentais mais próximas à fonte de infecção.20
Considerando-se que cerca de 40% dos casos foram registrados em crianças com menos de 10 anos e que esse segmento etário corresponde a menos de 15% da população de Bauru-SP, fica evidente a alta carga de morbidade nessa faixa etária. Tal dado corrobora os resultados de pesquisas realizadas nos estados do Rio de Janeiro, Alagoas e Minas Gerais,21 - 23 e reforça a ideia de que a transmissão da LV é mais facilmente difundida nos ambientes peridomiciliar e intradomiciliar.24 Deve-se considerar, outrossim, que fatores como maior contato com cães (principal reservatório doméstico), carência nutricional e sistema imunológico imaturo também contribuem para a elevada incidência da doença nessa faixa etária.25
Como já esperado, a maioria dos casos notificados em Bauru-SP engloba indivíduos com baixa escolaridade e moradores de bairros localizados na periferia da cidade, sob condições precárias de infraestrutura. Muitos estudos mostram que a LV atinge, principalmente, pessoas de baixo nível socioeconômico,26 pois as baixas condições socioeconômicas e a maior exposição ao vetor propiciam a transmissão da parasitose.6 Entretanto, como demonstrado nesta pesquisa, nos últimos anos, tem-se observado uma maior diversificação das características epidemiológicas da doença, atingindo pessoas que vivem nos centros urbanos e com maior escolaridade.
Corroborando com outros trabalhos,18 , 22 , 27 a maior parte dos acometidos exibiram manifestações clínicas clássicas, incluindo febre, hepatoesplenomegalia, fraqueza e emagrecimento. Vale ressaltar que 6% dos indivíduos apresentaram a forma assintomática da doença, o que exige maior atenção no diagnóstico da parasitose ou no registro dos dados no sistema de informação.
Pelo menos 9,2% dos indivíduos atingidos pela LV eram HIV-positivos. Segundo a Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, pacientes imunodeprimidos pelo HIV são mais propensos a adquirir LV.3 Estudo realizado em Aracajú-SE encontrou uma taxa de coinfecção LV/HIV de 6,9%,27 pouco inferior à encontrada nesta pesquisa.
Quanto à evolução dos casos notificados em Bauru-SP, 8,1% dos indivíduos evoluíram para óbito. Maiores taxas de óbito por LV já foram encontradas em outros estudos: por exemplo, em Campo Grande-MS, onde a taxa de letalidade relatada foi de 18,4%.19
A análise dos óbitos decorrentes da LV revelou que as maiores taxas de letalidade foram registradas entre os indivíduos com menos de 1 ano e com mais de 40 anos de idade, e entre as pessoas infectadas pelo HIV. Tais resultados já eram esperados. Vários trabalhos têm mostrado que a letalidade por LV aumenta em crianças com menos de 2 anos e em indivíduos com mais de 45 anos de idade, possivelmente em função da imaturidade e do declínio imunológico, respectivamente;28 , 29 e quando há comorbidades associadas, como desnutrição, anemia e, especialmente, infecção pelo HIV.30
As limitações do presente estudo referem-se ao uso de dados secundários, sobretudo à qualidade das informações registradas nas fichas de notificação e à possível ocorrência de subnotificação.
Por fim, diante dos 381 casos de LV notificados em Bauru-SP no período de 2004 a 2012, conclui-se que as medidas de controle realizadas na cidade até aquele momento - como ações de vigilância epidemiológica de casos humanos e casos caninos, controle da população de reservatórios e vetores, e diagnóstico e tratamento precoce dos casos humanos - não tinham sido capazes de eliminar a transmissão da parasitose.
Chama a atenção a diversificação das características epidemiológicas da doença, atingindo também pessoas que vivem nos centros urbanos e com maior nível de instrução.
Tornam-se necessários esforços conjuntos das diversas áreas do conhecimento científico e dos serviços de Saúde Pública no sentido de otimizar a efetividade das ações de vigilância e controle da leishmaniose visceral. A própria população deve estar permanentemente inserida nesse complexo processo de prevenção e controle da doença, por meio de ações educativas em saúde e meio ambiente.