versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.41 no.2 São Paulo abr./jun. 2019 Epub 14-Nov-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0127
A lesão renal aguda (LRA) é definida como a redução súbita da função renal que pode causar desde alterações discretas em marcadores bioquímicos até falência renal com necessidade de suporte renal artificial (SRA). Trata-se de complicação grave, com alta morbimortalidade em pacientes criticamente enfermos, e frequentemente de etiologia multifatorial.1
Até o início da década de 2000, a ausência de padronização para o diagnóstico, com a existência de mais de 30 definições publicadas para LRA,2 impossibilitou a determinação de sua magnitude, bem como a comparação entre os diferentes estudos sobre o assunto. Os estudos mais amplamente disponíveis tratam principalmente de LRA com necessidade de SRA, relatando mortalidade entre 11% e 63% em pacientes pediátricos.3,4 Crianças que apresentaram LRA têm tempo de internação e de permanência em centro de terapia intensiva pediátrica (CTIP) mais longo e maior necessidade de ventilação mecânica.5,6 Além disso, crianças que sobrevivem a um episódio de LRA podem evoluir com doença renal crônica (até 60% das crianças permanecem com proteinúria, hipertensão e algum grau de redução da taxa de filtração glomerular - TFG).7-9
A necessidade de uniformização na definição de LRA resultou na criação da primeira definição padronizada publicada em 2004, denominada RIFLE (do inglês Risk, Injury, Failure, Loss, End-stage).2 Três anos depois, esses critérios foram adaptados para a população pediátrica, dando origem ao RIFLE pediátrico (pRIFLE).10 Desde então, esse critério sofreu outras duas modificações, sendo a mais recente o sistema de classificação do KDIGO (do inglês Kidney Disease: Improving Global Outcome), publicada em 2012.11
O SRA é o tratamento mais efetivo para LRA grave em pacientes criticamente enfermos. Os primeiros relatos do uso de hemodiálise (HD) em humanos datam da década de 1940, quando Kolff et al. descreveram o uso do então denominado "rim artificial" em uma paciente de 29 anos com glomerulonefrite crônica e uremia.12 Em 1957, o mesmo autor descreveu os avanços nos equipamentos desenvolvidos até então e citou as indicações para o uso do rim artificial, incluindo LRA secundária a choque.13 O uso de HD em crianças necessitou de mais tempo para ser implementado, devido a dificuldades que ainda persistem, tais como o pequeno calibre dos vasos em pacientes pediátricos e necessidade de grandes volumes para preenchimento do circuito extracorpóreo.14 Em 1957, foi publicado o primeiro relato de casos de HD em crianças, descrevendo melhora clínica e maior facilidade no manejo conservador após seu uso em cinco crianças de 2 a 14 anos de idade.14 No entanto, essa modalidade não se mostrou segura para lactentes e crianças pequenas. Nesse contexto, Segar et al. descreveram a importância do uso da diálise peritoneal em pacientes menores de 1 ano e/ou com menos de 15kg.15
Desde os primeiros relatos de LRA até os dias atuais houve melhora significativa nas técnicas e na disponibilidade dos procedimentos dialíticos, bem como mudanças dramáticas na epidemiologia, principalmente nas causas da LRA. Inicialmente predominavam as doenças renais primárias, como glomerulonefrite aguda e síndrome hemolítico-urêmica. Após o advento da terapia intensiva, sepse, cirurgias de grande porte (destacando-se as cardíacas) e problemas oncológicos tornaram-se as causas mais frequentes,16,17 embora, em países em desenvolvimento, a desidratação ainda constitua causa relevante de LRA.18-20 Além disso, também ocorreram avanços tecnológicos para atendimento a crianças menores. Em 2015, foi descrita a primeira hemodiálise em neonato com LRA usando um novo equipamento desenvolvido especificamente para essa faixa etária.21
O objetivo deste artigo é fazer uma revisão histórica e descrever as principais informações sobre a epidemiologia da LRA em pacientes pediátricos.
Para esta revisão foi realizada inicialmente uma busca na base de dados MEDLINE por meio do portal PUBMED utilizando o termo MeSH (do inglês Medical Subject Headings) "Acute Kidney Injury", selecionando o subtópico "Epidemiology". Foram aplicados em seguida os filtros de idade (0 a 18 anos) e ano de publicação (últimos 5 anos). A busca, realizada em abril de 2017, resultou em 306 artigos. Também foram realizadas buscas pelos termos "acute renal failure" e "epidemiology", "acute tubular necrosis" e "epidemiology" nos campos "título" e "resumo" com os mesmos filtros (idade e ano de publicação), selecionando 8 e nenhum artigo, respectivamente. Todos os resumos foram avaliados pelos autores, e os artigos considerados mais relevantes foram examinados na íntegra. Visando buscar maior número de artigos sobre a epidemiologia da LRA no Brasil e América Latina, foi realizada uma segunda busca na base de dados LILACS (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde) no portal da Biblioteca Virtual em Saúde utilizando a busca por palavras com os termos "lesão renal aguda", "insuficiência renal aguda" ou "injuria renal aguda" e o filtro de idade (0 a 18 anos). Essa segunda busca selecionou 302 artigos, cujos resumos foram examinados pelos autores. Os artigos considerados mais relevantes foram avaliados na íntegra; e os selecionados, incluídos nesta revisão. Além disso, foram realizadas pesquisas diretas para a obtenção de artigos históricos sobre o tema. Artigos citados pelos autores selecionados considerados relevantes também foram incluídos nesta revisão.
A primeira definição padronizada para LRA foi a classificação de RIFLE publicada em 2004. Trata-se de um acrônimo com as iniciais das 5 fases propostas para a classificação da LRA: risco ("risk"), injúria ("injury"), falência ("failure"), perda da função ("loss") e doença renal em estágio terminal ("end stage renal disease"). Essa classificação baseou-se em dois marcadores para a função renal amplamente disponíveis: mudanças na creatinina sérica ou taxa de filtração glomerular e débito urinário.2 Os valores considerados na sua elaboração, no entanto, contemplavam mudanças na TFG e na creatinina sérica em pacientes adultos, impossibilitando sua aplicação na faixa etária pediátrica. Nesse contexto, em 2007, foi publicada uma adaptação dessa classificação para a faixa etária pediátrica. O p-RIFLE utilizou a redução no clearance de creatinina (ClCr) estimado para aferição de alteração na função renal.10
Os avanços nos estudos sobre as consequências da LRA em pacientes criticamente enfermos evidenciaram que mesmo pequenos aumentos na creatinina sérica ocasionaram maior mortalidade, o que levou ao desenvolvimento da classificação AKIN (do inglês, Acute Kidney Injury Network) para LRA. Esse novo modelo classificou a LRA em 3 estágios, de acordo com sua gravidade, sendo o estágio 1 definido como aumento de 0,3 mg/dL na creatinina sérica em relação ao valor basal.22
Em 2012, a classificação do KDIGO foi estabelecida, visando unificar as 3 classificações existentes até então para simplificar e universalizar seu uso, uma vez que pode ser usada para pacientes adultos e pediátricos. Essa definição, a mais atual disponível na literatura, também leva em conta duas características de fácil aferição: creatinina sérica (ou ClCr estimado para pacientes menores que 18 anos) e débito urinário.11 Embora seja a classificação mais atual e adequada para a faixa etária pediátrica, houve ainda a necessidade de adaptação para o período neonatal, fase em que a fisiologia renal tem particularidades. Assim, foi publicada em 2015 a classificação de KDIGO para LRA no período neonatal,23 na qual considera-se como LRA estágio 2 a redução do débito urinário por um período menor, e o valor absoluto de creatinina sérica maior ou igual a 2,5mg/dL é considerado estágio 3, uma vez que representa um ClCr menor que 10 mL/min/1,73 m2 em neonatos. Outra particularidade é que o valor basal de creatinina é definido como o menor valor prévio, haja vista que a creatinina ao nascimento reflete a creatinina materna e fisiologicamente evolui com queda ao longo dos primeiros dias de vida.23
O cálculo do ClCr estimado é feito utilizando-se a fórmula de Schwartz, que considera o ClCr o resultado da multiplicação da estatura do paciente em centímetros por uma constante k, dividida pela creatinina sérica em mg/dL.24,25 A fórmula original utiliza a creatinina sérica medida pelo método de Jaffe e a constante k variando de acordo com a faixa etária do paciente.24 A versão mais atual da fórmula de Schwartz utiliza um valor único para a constante k = 0,413, independentemente da faixa etária e a creatinina sérica aferida pelo método enzimático.25
Clearance de creatinina estimado (mL/min/1,73 m2) = k X altura (cm)/creatinina sérica (mg/dL)
A Tabela 1 ilustra as classificações para LRA descritas.
Tabela 1 Classificações disponíveis para LRA
Classificação | Ano | Estágio | Creatinina | Débito urinário |
---|---|---|---|---|
RIFLE2 | 2004 | R I F L E |
Aumento ≥ 1,5 x ou redução TFG ≥ 25% Aumento ≥ 2 x ou redução TFG ≥ 50% Aumento ≥ 3 x ou creatinina ≥ 4 mg/dL Falência persistente por > 4 semanas Falência persistente por > 3 meses |
< 0,5mL/kg/h por 6 h < 0,5mL/kg/h por 12 h < 0,3mL/kg/h por 24 h ou anúria por 12 h |
p-RIFLE10 | 2007 | R I F L E |
Redução do ClCr estimado ≥ 25%Redução do ClCr estimado ≥ 50% Redução do ClCr estimado ≥ 75% ou ClCr estimado < 35mL/min/1,73m2 Falência persistente por > 4 semanas Falência persistente por > 3 meses |
< 0,5mL/kg/h por 8 h < 0,5mL/kg/h por 16 h < 0,3mL/kg/h por 24 h ou anúria por 12 h |
AKIN22 | 2007 | 1 2 3 |
Aumento ≥ 0,3 mg/dL ou aumento para 150-200% do valor basal Aumento para 200-300% do valor basal Aumento para ≥ 300% do valor basal ou Cr ≥ 4 mg/dL com aumento agudo de 0,5 mg/dL |
< 0,5mL/kg/h por 6 h < 0,5mL/kg/h por 12 h < 0,3mL/kg/h por 24 h ou anúria por 12 h |
KDIGO11 | 2012 | 1 2 3 |
Aumento de 0,3 mg/dL (em 48 h) ou 150-200% (em 7 dias) Aumento ≥ 200-300% Aumento ≥ 300%, Cr ≥ 4 mg/dL ou diálise ou TFG estimada < 35mL/min/1,73 m2 para < 18 anos |
< 0,5mL/kg/h por 8 h < 0,5mL/kg/h por 16 h < 0,3mL/kg/h por 24 h ou anúria por 12 h |
KDIGO neonatal23 | 2015 | 0 1 2 3 |
Sem aumento ou aumento < 0,3 mg/dL Aumento ≥ 0,3 mg/dL em 48 h ou aumento ≥ 1,5-1,9x valor de referência em 7 dias Aumento ≥ 2,0-2,9x valor de referência Aumento ≥ 3x valor de referência ou Cr ≥ 2,5 mg/dL ou diálise |
≥ 0,5mg/kg/h < 0,5mg/dL por 6-12 h < 0,5mg/dL por ≥ 12 h < 0,3mg/dL por ≥ 24 h ou anúria por ≥ 12 h |
Dados epidemiológicos demonstrando o significativo custo financeiro e elevada morbimortalidade associados à LRA26 foram reportados nos estudos sobre o tema em pacientes pediátricos na literatura nos últimos anos. No entanto, esses estudos ainda se concentram em países desenvolvidos. Os dados sobre as características da LRA em países em desenvolvimento permanecem escassos.
O primeiro amplo estudo epidemiológico envolvendo grande número de pacientes pediátricos foi publicado em 2010, usando o p-RIFLE para o diagnóstico de LRA.5 Foi demonstrada incidência de LRA de 11% em pacientes entre 31 dias e 21 anos de vida admitidos em CTIP em um único centro norte-americano. Um estudo multicêntrico posterior no mesmo país descreveu incidência de 3,9 casos/1.000 hospitalizações, tendo havido necessidade de TRS em 8,8% dos casos. Os autores também relataram maior mortalidade no grupo que necessitou de TRS (27,1% versus 14,2%, p < 0,001).27 Em avaliação prospectiva de 226 crianças entre 0 e 14 anos submetidas a TRS em centro único na Nova Zelândia, no período de 2001-2006, os autores reportaram mortalidade de 11%.16
Novos estudos vêm sendo publicados utilizando a classificação do KDIGO como critério para o diagnóstico de LRA. Numa coorte retrospectiva de 8.260 pacientes admitidos em CTI, dos quais 974 tiveram o diagnóstico de LRA de acordo com os critérios do KDIGO, observou-se mortalidade de 25,3% em 28 dias, maior nos pacientes que não se recuperaram no período de observação (40,5% x 11,2%, p < 0,01).28 Mais recentemente, em análise prospectiva de 4.984 pacientes entre 3 meses e 25 anos admitidos em 32 CTIPs em 4 continentes, foi encontrada incidência de 26,9% de IRA em qualquer estágio e mortalidade de 11% em pacientes com LRA estágios 2 ou 3 versus 3,4% nos pacientes que não desenvolveram LRA.29 Em outro grande estudo epidemiológico conduzido nos Estados Unidos, publicado em 2014, foram avaliados neonatos prematuros de extremo baixo peso e reportou-se incidência de LRA de 39,8%, de acordo com a classificação do KDIGO modificada para o período neonatal, além de maior mortalidade e tempo de internação ajustados para a gravidade do paciente.30
Os estudos disponíveis sobre a epidemiologia da LRA pediátrica em países em desenvolvimento são, em sua maioria, estudos observacionais conduzidos em centro único. Uma exceção é um estudo envolvendo 388.736 pacientes menores de 18 anos admitidos em 27 hospitais chineses, no qual foi relatada incidência de LRA (definida pelo critério AKIN) de 0,32% e mortalidade de 3,4% em pacientes que desenvolveram LRA em qualquer estágio.18 Estudos realizados na Nigéria, Índia, Tailândia e Paquistão demonstraram mortalidade de 41,5%, 50,4% e 30%, respectivamente.19,20,31,32
Os dados sobre a epidemiologia mundial da LRA estão descritos na Tabela 2.
Tabela 2 Epidemiologia mundial da LRA pediátrica
País | Ano | Desenho do estudo | Critério diagnóstico de LRA | Características dos pacientes | Número de pacientes | % TRS* | Incidência (%) | Mortalidade (%) |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Nigeria54 | 2004 | ProspectivoCentro único | Definição não padronizada | Pacientes 0-15 anos admitidos com diagnóstico de IRA | 123 | 53 | --- | 43,9 |
Tailândia19 | 2006 | RetrospectivoCentro único | Definição não padronizada | Pacientes 1 mês-17 anos com diagnóstico de IRA em hospital tailandês | 311 | 17,6 | --- | 41,563,6 se TRS |
Nova Zelândia16 | 2008 | RetrospectivoCentro único | Apenas pacientes que necessitaram de TRS | Pacientes 0-15 anos submetidos a TRS por IRA | 226 | 100 | --- | 11 |
Estados Unidos5 | 2010 | RetrospectivoCentro | RIFLE | Pacientes 31 dias-21 anos admitidos em CTIP | 3.396 | 1,2 | 10 | 30-3242,5 se TRS |
United States27 | 2013 | RetrospectivoMulticêntrico | Pacientes com diagnóstico de IRA pelo CID** | Pacientes 0-18 anos internados em 4121 hospitais do país em 2009 | 2.644.263 | 8,8 | 0,39 | 15,3 |
China18 | 2013 | ProspectivoMulticêntrico | AKIN | Pacientes 15 dias-18 anos admitidos em 27 hospitais em 2008 | 388.736 | 15,1 | 0,32 | 3,4 |
United States30 | 2014 | RetrospectivoCentro único | KDIGO | Recém-natos com peso ≤ 1500 g admitidos em UTIN de 2008-2011 | 455 | 0,55 | 39,8 | 14,4 |
United States28 | 2015 | RetrospectivoCentro único | KDIGO | Pacientes 1 mês-21 anos admitidos em CTIP 2003-2012 | 8260 | 17,7 | 11,8 | 25,3 |
Estados Unidos29 | 2017 | ProspectivoMulticêntrico | KDIGO | Pacientes 3 meses-25 anos admitidos em 32 CTIPs em 4 continentes | 4984 | 1,5 | 26,9 | 5,511 se estágio 2 ou 3 |
Paquistão31 | 2017 | ProspectivoCentro único | pRIFLE | Pacientes 1 mês-15 anos com diagnóstico de IRA admitidos em 1 ano | 116 | 53 | --- | 5,3 |
India32 | 2017 | ProspectivoCentro único | pRIFLE | Pacientes 2 meses-18 anos admitidos em CTIP em 1 ano | 380 | 19 | 14 | 36 |
Estudos sobre a epidemiologia da LRA em pacientes pediátricos no Brasil são raros. Em um estudo retrospectivo publicado em 2008, observou-se mortalidade global de 53,3% em crianças de 0 a 12 anos com LRA dialítica submetidas a diálise peritoneal, sendo ainda mais elevada (73,9%) no período neonatal.33 Outro estudo, publicado em 2009, selecionou 110 crianças de 1 mês a 15 anos de idade, usando como critério de inclusão valor de creatinina sérica acima do valor de referência normal para a idade e estatura, tendo observado mortalidade global menor (33,6%), provavelmente devido ao fato de os pacientes menores de 1 mês terem sido excluídos, e também pela inclusão de pacientes que ainda não haviam atingido o estágio mais grave da LRA.34 Estudos que utilizaram o pRIFLE para diagnóstico e classificação do estágio da LRA em pacientes admitidos em unidades de terapia intensiva pediátrica mostraram que os pacientes que desenvolveram LRA durante a internação apresentaram maior taxa de mortalidade e tempo de internação do que os pacientes que mantiveram função renal normal.35,36 Em pesquisa mais recente, limitada à LRA relacionada à sepse, foi evidenciada mortalidade de 33,7%, tendo como principais fatores de risco para mortalidade a duração da internação, uso de ventilação mecânica, hipoalbuminemia e necessidade de diálise.37 Em estudo epidemiológico prospectivo, no qual foram utilizados pRIFLE e os critérios do KDIGO para o diagnóstico de LRA, encontrou-se prevalência similar de LRA com o uso de ambos (49,4 e 46,2%, respectivamente).36 A mortalidade observada foi 11,4% em pacientes com IRA diagnosticada pelo pRIFLE e 12,2% em pacientes com diagnóstico de LRA pelos critérios do KDIGO.38
A Tabela 3 resume os dados epidemiológicos disponíveis sobre a LRA pediátrica no Brasil.
Tabela 3 Epidemiologia da LRA no Brasil
Ano | Desenho do estudo | Critério diagnóstico de LRA | Características dos pacientes | Número de pacientes | % TRS | Incidência | Mortalidade |
---|---|---|---|---|---|---|---|
200833 | Retrospectivo Centro único |
Pacientes submetidos a diálise peritoneal | Pacientes 0-12 anos admitidos em CTIP ou UTIN que necessitaram de DP entre 2002 e 2006 | 45 | 100 | --- | 53,3 |
200934 | Prospectivo Centro único |
Creatinina acima do valor de referência para idade/estatura | Pacientes 0-15 anos com LRA admitidos em CTIP entre 2002-2004 | 110 | 49,1 | 8 | 33,6 |
201335 | Prospectivo Centro único |
pRIFLE | Pacientes 28 dias-15 anos admitidos em CTIP durante 3 meses | 126 | 12 | 46 | 36,2 |
201536 | Retrospectivo Centro único |
pRIFLE | Pacientes 29 dias-18 anos admitidos em CTIP em 1 ano | 375 | --- | 54,9 | 16 |
201638 | Prospectivo Centro único |
pRIFLE/KDIGO | 0-20 anos admitidos em CTIP em 6 meses | 160 | ---- | 51,3% (pRIFLE) 42% (KDIGO) |
11,4% (pRIFLE) 12,2% (KDIGO) |
201737 | Retrospectivo Centro único |
pRIFLE | Pacientes 1 mês-11 anos admitidos em CTIP em 4 anos com diagnóstico de sepse e LRA | 77 | 42,8 | --- | 33,7 |
Os primeiros estudos epidemiológicos sobre LRA relatavam doenças renais primárias como causa frequente.39 Com o advento da terapia intensiva e dos avanços tecnológicos que melhoraram a assistência ao paciente criticamente enfermo, as etiologias da LRA mudaram notavelmente. Atualmente a LRA multifatorial é uma realidade, pois, no ambiente da terapia intensiva, é comum o mesmo paciente permanecer exposto, por exemplo, a sepse, choque e nefrotoxicidade por drogas. Além disso, complexas cirurgias cardíacas e tratamento quimioterápico para neoplasias também evoluíram e se tornaram mais amplamente disponíveis, deixando esses pacientes também expostos ao risco de LRA relacionada a esses cuidados de saúde.
Essas mudanças etiológicas são mais evidentes em países desenvolvidos, onde mais estudos sobre LRA estão disponíveis. Em um deles, envolvendo pacientes admitidos entre 1999 e 2001, em centro terciário nos Estados Unidos, ainda relatava-se isquemia como principal causa de LRA (21%) seguida por nefrotoxicidade (16%) e sepse (11%).40 Esses casos ocorreram antes da difusão dos conceitos publicados pela "Campanha sobrevivendo à sepse" (em inglês, Survinving sepsis campaign), quando o início de antibioticoterapia parenteral e expansão volêmica precoces passaram a ser recomendados como terapia indispensável para a redução da mortalidade a ela relacionada.41 Em países desenvolvidos, dados atuais apontam a sepse e cirurgias cardíacas como agentes etiológicos relacionados à LRA em pacientes criticamente enfermos.27,42 Quando estendemos a avaliação a pacientes hospitalizados em setores de menor complexidade, a importância da nefrotoxicidade como fator etiológico se torna mais evidente, pois, embora muito presente no ambiente de terapia intensiva, seu papel no desenvolvimento da LRA fica mais claro se avaliada na ausência de outros fatores de risco. Goldstein et al. descreveram o desenvolvimento de LRA em um terço das admissões em setor de baixa complexidade, em pacientes recebendo aminoglicosídeos por ≥ 3 dias ou pacientes que receberam ≥ 3 drogas nefrotóxicas durante a internação.43 Em neonatos, além da sepse, nefrotoxicidade e cirurgia cardíaca, a asfixia perinatal também tem um papel importante como etiologia da LRA.44
Em países em desenvolvimento, as doenças renais primárias ainda são causas importantes de LRA na população pediátrica. Em estudo multicêntrico na China, publicado em 2013, observou-se a glomerulonefrite aguda como principal responsável pela LRA na população estudada, seguida por desidratação severa.18
A Tabela 4 destaca as principais etiologias de LRA de acordo com o local e o ano em que o estudo foi conduzido.
Tabela 4 Etiologias de IRA de acordo com o local e ano de estudo
Ano | Local do estudo | Características dos pacientes | Principais etiologias da LRA |
---|---|---|---|
200540 | Estados Unidos | Pacientes 0-21 anos com diagnóstico de LRA. | isquemia, nefrotoxicidade e sepse |
200619 | Tailândia | Pacientes 0-17 anos com diagnóstico de LRA | sepse, hipovolemia e GNDA |
200710 | Estados Unidos | Pacientes 0-21 anos com LRA. | pneumonia, sepse e choque |
20074 | Estados Unidos | Pacientes 0-25 anos que receberam Terapia Substitutiva Renal Contínua | sepse, transplante de medula óssea e doenças cardíacas |
200816 | Nova Zelândia | Pacientes 0-15 anos que receberam Terapia Substitutiva Renal | cirurgia cardíaca, síndrome hemolítico-urêmica e sepse |
201042 | Espanha | Pacientes com idade média de 52 meses que receberam Terapia Substitutiva Renal Contínua | doenças cardíacas, sepse e exacerbação de falência renal |
201327 | Estados Unidos | Pacientes de 0-18 anos admitidos em 4121 hospitais | choque, sepse e doenças hepáticas |
201318 | China | Pacientes 0-17 anos admitidos em 27 hospitais | glomerulonefrite aguda, desidratação severa e síndrome nefrótica |
201632 | Índia | Pacientes 0-18 anos admitidos em CTIP em 1 hospital | choque, sepse e falência respiratória |
201631 | Paquistão | Pacientes de 0-15 anos admitidos em 1 hospital | glomerulonefrite pós-infecciosa, urolitíase e GN crescêntica |
Atualmente, estão sendo desenvolvidas amplas pesquisas na busca de fatores preditores de LRA, cujo objetivo é encontrar fatores que possam prever ou detectar riscos para a ocorrência da LRA, possibilitando que o problema seja evitado ou atenuado. A creatinina, marcador de função renal amplamente utilizado, sofre restrições devido ao aumento tardio no curso da LRA, bem como por sua susceptibilidade a mudanças por fatores não renais, como sexo, idade e massa muscular.45 Os novos biomarcadores surgiram como uma grande promessa nesse sentido. Dentre eles, o mais amplamente estudado é a NGAL (do inglês, neutrophil gelatinase-associated lipocalin), que mostrou boa acurácia para a detecção de LRA horas após insulto em pós-operatório de cirurgias cardíacas, sepse e uso de contraste.46-49
Visando melhorar a probabilidade pré-teste dos biomarcadores disponíveis, em 2010 foi desenvolvido o conceito de "angina renal", que utiliza características que indicam risco para LRA e sinais clínicos precoces de lesão renal para seu cálculo, criando um escore preditor de ocorrência de LRA que poderia servir como triagem para determinar quais pacientes devem ter seus biomarcadores dosados.50,51 Para o cálculo do "Índice de Angina Renal" (IAR), os autores definiram fatores que tornam a criança susceptível à LRA (risco) e sinais clínicos precoces de LRA (lesão). A presença de cada característica confere uma pontuação, e a pontuação obtida em "risco" é multiplicada pela pontuação obtida em "lesão", sendo seu resultado o "Índice de Angina Renal". Um resultado maior ou igual a 8 apresentou predição para LRA no 3º dia de admissão com uma área sob a curva de 0.74-0.81.52 Na Figura 1 está ilustrado como é feito o cálculo do IAR.
Fonte: traduzido e adaptado de Basu et al.50
Figura 1 Calculo do Indice de Angina Renal. Nota: O resultado pode variar de 1 a 40. Valor ≥ 8 determina a presenca de angina renal
Em estudo prospectivo recente, incorporou-se a NGAL urinária ao IAR e observou-se que o modelo combinado conseguiu prever LRA severa e persistente (KDIGO 2 ou 3) com uma área sob a curva ROC de 0,97.53 Embora promissoras, essas observações ainda necessitam ser replicadas em outros locais.
A LRA é uma condição grave, de etiologia multifatorial em muitos casos e com mortalidade variável, podendo chegar a mais de 60% em pacientes submetidos à diálise. Do ponto de vista epidemiológico, ainda há carência significativa de estudos robustos sobre a incidência, a prevalência e os desfechos da LRA na população pediátrica, notavelmente em países em desenvolvimento, como o nosso. Estudos promissores que visam diagnóstico e intervenção precoces podem prevenir sua ocorrência ou atenuar seus efeitos.